Educação: a terra de Castro Alves virou usina de analfabetos
É um paradoxo cruel que a Bahia, que já deu ao mundo gênios da palavra, da política, da arte e do pensamento, como Ruy Barbosa, Castro Alves, Milton Santos, hoje tem apenas uma a cada três de suas crianças sabendo ler e escrever textos simples
Por Pablo Reis.
Imagine um jardim onde apenas um terço das sementes brota. Agora, pense em levar para casa uma placa de 30 ovos, mas que só dez deles estão adequados para consumo. Agora troque o solo infértil por salas de aula públicas e os ovos estragados por crianças que não sabem ler nem escrever aos sete anos. Esse é o retrato da alfabetização na Bahia, e em Salvador, em 2024.
Os dados são do Ministério da Educação e do Indicador Criança Alfabetizada, e revelam que o estado e a capital ostentam os piores índices de alfabetização do país: apenas 36% das crianças da faixa dos sete anos conseguem ler e escrever textos simples. É uma estatística que vai além dos números — é o prenúncio de um futuro sombrio para a juventude baiana.
Salvador, a capital menos alfabetizada, viu sua situação piorar em relação ao ano anterior. No interior, cidades como Macururé apresentam números ainda mais devastadores, com taxas de alfabetização pouco acima de 10%. É como se uma floresta outrora exuberante tivesse sido reduzida a poucos arbustos, lutando para sobreviver em um solo negligenciado.
O Indicador Criança Alfabetizada mede a capacidade de estudantes do 2º ano do ensino fundamental no estado de conseguirem ler e escrever textos simples. A Bahia teve 35,98% dos estudantes, um número muito abaixo da média nacional de 59,2%. A capital, Salvador, que deveria ser a locomotiva do desenvolvimento, também está em um patamar preocupante. Com um índice de alfabetização de 36,75% em 2024, é a pior capital do Brasil no quesito alfabetização infantil. A situação piorou em relação a 2023, quando o índice era de 39,2%, e a cidade ficou abaixo de sua meta estabelecida de 45,52% para 2024. Enquanto Fortaleza desponta como líder nacional entre as capitais, com 74,81%, a capital baiana, infelizmente, se encontra na ponta inversa da tabela.
Geração condenada ao silêncio - ou ao grito
Se a situação na capital é desoladora, o interior da Bahia se assemelha a um deserto educacional. Há cidades onde a taxa de crianças de 7 anos que sabem ler e escrever não chega aos 16%. Macururé, por exemplo, um município com 7,2 mil habitantes no Vale do São Francisco, registra o alarmante índice de apenas 12,5% de estudantes do 2º ano do fundamental alfabetizados. Outros municípios como Arataca (13,11%), Pedrão (13,33%), Itaju do Colônia (15,25%) e Rio do Pires (15,62%) seguem essa triste tendência de desempenho pífio.
Uma geração condenada ao silêncio antes mesmo de aprender a nomear o mundo. Não se trata de um tropeço. É um colapso estrutural.
Para 2024, o governo federal almejava que ao menos 60% das crianças estivessem alfabetizadas até os 7 anos. Embora o Brasil tenha avançado ligeiramente, saindo de 56% em 2023 para 59,2% em 2024, a Bahia não só ficou abaixo da média nacional, como não atingiu sua própria meta de 43,4% para o ano. O estado, junto com Amazonas, Paraná, Rondônia, Rio Grande do Sul e Pará, figura entre os que tiveram queda ou pior desempenho em relação a 2023.
As mentes brilhantes... do passado
É um paradoxo cruel que esta mesma terra tenha sido o berço de mentes tão brilhantes como Castro Alves, Ruy Barbosa, Jorge Amado, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Milton Santos, Anísio Teixeira, Glauber Rocha, Manuel Querino e Gregório de Matos. Como pode a Bahia, que já deu ao mundo tantos gênios da palavra, da política, da arte e do pensamento, hoje lutar para que duas a cada três de suas crianças saibam ler e escrever textos simples? É como se o rio caudaloso da sabedoria que um dia correu por suas veias estivesse agora seco em suas fontes mais primárias, ameaçando a continuidade desse legado de grandeza.
Sem saber ler ou escrever, essas crianças ficam presas a um presente sem linguagem, a um futuro sem mapa. E o ciclo se repete: pobreza gera analfabetismo, que gera pobreza ainda mais funda, ainda mais muda. A próxima geração herda as dificuldades da anterior, e com menos recursos de conhecimento para superá-las. Uma força de trabalho mal preparada não consegue competir em um mercado global cada vez mais baseado no saber.
O texto é simples - um bilhete, uma placa de ônibus, um contrato -, mas pode parecer um enigma a ser decifrado. É como se as pontes para um futuro melhor estivessem desmoronando antes mesmo de serem atravessadas, deixando comunidades inteiras isoladas em um presente de limitações.
Já fomos berço de gênios que marcaram a história: Castro Alves, cuja poesia incendiou o movimento abolicionista; Ruy Barbosa, um jurista que moldou as leis brasileiras; Jorge Amado, que deu vida às cores e dramas da Bahia em seus romances. A música do estado ecoou pelo mundo com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Dorival Caymmi, enquanto mentes brilhantes como Milton Santos, Anísio Teixeira, Glauber Rocha, Manuel Querino e Gregório de Matos elevaram o pensamento e a cultura a patamares extraordinários.
Como, então, uma terra tão fértil em talento caiu em tamanha aridez educacional?
A sinfonia muda de livros não lidos
As consequências dessa realidade precária são vastas e profundas, projetando uma sombra sobre o futuro de milhares de crianças. A alfabetização é a porta de entrada para o conhecimento, para a participação plena na sociedade e para a construção de um futuro digno. Crianças que não aprendem a ler e escrever na idade certa ficam à margem do processo educacional, com seu potencial tolhido e suas perspectivas de vida drasticamente reduzidas. Isso não apenas perpetua ciclos de pobreza e desigualdade, mas também silencia as vozes dos Dias Gomes e Joões Ubaldos do amanhã, que poderiam nascer nas periferias de Salvador ou nos recônditos do interior.
A queda nos índices de alfabetização na Bahia não é apenas uma estatística; é um grito de alerta. É o som do silêncio de livros não lidos, de histórias não escritas e de futuros que não florescem. A meta de 80% até 2030 deve ser vista não apenas como um número, mas como a promessa de um futuro mais justo e promissor para as crianças baianas, digno da rica história de um estado que sempre soube encantar o mundo com sua inteligência e sua arte.
Os ícones culturais da Bahia não são apenas ecos de um passado glorioso; são faróis que apontam o que pode ser reconquistado. Suas obras nasceram do acesso ao conhecimento e da educação — alicerces que hoje estão frágeis, mas não destruídos. Com esforço coletivo, envolvendo governo, comunidades e sociedade civil, a crise educacional pode se tornar um chamado urgente à ação.
Assim como um jardim negligenciado pode florescer com cuidado, o sistema educacional pode ser revitalizado. A história de resiliência e criatividade do estado é um trunfo. As sementes do gênio ainda repousam no solo baiano, aguardando as condições certas para germinar. Cabe à geração atual garantir que elas tenham essa chance.
Que a Bahia reencontre em si mesma — nas ruas de Salvador, nos sertões de Canudos, nos becos de Cachoeira — a força para dizer, mais uma vez, com orgulho e voz firme: aqui se lê. Aqui se pensa. Aqui se escreve futuro.
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