Cannabis no autismo: o que a ciência já sabe e quais são os desafios
Diante dos relatos pessoais e expectativas, pesquisadores questionam: o que a ciência já comprovou sobre cannabis no autismo?
Por Bruna Castelo Branco.
Nos últimos anos, a cannabis medicinal deixou de ser um tema restrito a especialistas e passou a integrar conversas em famílias, consultórios e debates públicos. Histórias de melhora do sono, redução de crises de agressividade e maior engajamento social de pessoas com autismo circulam nas redes, despertando curiosidade e esperança.
Diante de relatos pessoais e expectativas, pesquisadores questionam: o que a ciência já comprovou e até onde é seguro avançar?
Nesta semana, o autismo voltou a ocupar um grande espaço no debate público. Na última terça-feira (23), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou, uma nota de esclarecimento após declarações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que associou o uso de Tylenol (paracetamol) durante a gravidez ao desenvolvimento de autismo em crianças. A fala aconteceu durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).
Sistema endocanabinoide e o autismo
O interesse em entender como os extratos da cannabis atuam no tratamento de diferentes condições, incluindo o autismo, levou a maior atenção ao sistema endocanabinoide, como explica a pediatra Fabiana Feijão em artigo publicado pelo SBT News. Presente em todo o corpo, ele regula humor, sono, memória, apetite, resposta ao estresse e processos inflamatórios.
Esse sistema funciona por meio de receptores: o CB1, mais concentrado no cérebro e ligado à memória, comportamento e emoções, e o CB2, predominante no sistema imunológico e relacionado à regulação de inflamações. Também envolve endocanabinoides produzidos naturalmente pelo corpo, como a anandamida, além das enzimas que controlam sua produção e degradação.
Um estudo da Universidade de Stanford identificou que pessoas no espectro autista apresentam níveis reduzidos de anandamida e sinais de disfunção nos receptores CB1. Os achados, semelhantes aos de pesquisas em animais, reforçam a hipótese de que alterações nesse sistema estejam relacionadas ao autismo. Isso abre a possibilidade de que compostos da cannabis, ao modularem o sistema endocanabinoide, possam contribuir para aliviar sintomas.
Variedades da cannabis e experiências clínicas
A planta possui cerca de cem canabinoides conhecidos, mas menos de dez foram estudados em profundidade.
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CBD (canabidiol): o mais pesquisado, não é psicoativo e já tem efeitos comprovados como ansiolítico, anti-inflamatório e anticonvulsivante.
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THC (tetra-hidrocanabinol): componente psicoativo mais conhecido. Em altas doses, pode causar prejuízos cognitivos, alterações de humor e risco de surtos psicóticos, sobretudo em jovens. Contudo, em doses controladas e com acompanhamento médico, pode auxiliar no manejo de sintomas difíceis e até reduzir o uso de outros medicamentos com efeitos colaterais importantes.
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CBG (cannabigerol): pode melhorar foco e atenção.
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CBN (canabinol): tem efeito sedativo, útil para distúrbios do sono.
Médicos que utilizam cannabis no tratamento do autismo relatam bons resultados quando o uso é bem indicado e monitorado.
Um caso citado é o de um adolescente com autismo severo, que se mordia de forma grave e corria risco de infecção. Ele utilizava três medicamentos — ansiolítico, antidepressivo e antipsicótico — com pouco controle das crises e apresentava apatia.
Com a introdução de um extrato full spectrum, combinando CBD e THC em dose personalizada, foi possível reduzir para apenas um medicamento em baixa dose. O quadro evoluiu com cicatrização das lesões, maior interação social, melhora do sono e estabilização do peso. Casos semelhantes têm sido documentados em diferentes contextos clínicos.
Desafios e regulamentação
No Brasil, a Anvisa autoriza a prescrição de produtos à base de cannabis mediante receita médica especial. Esses produtos podem ser comprados em farmácias autorizadas ou importados com autorização prévia.
Não há protocolos específicos para o autismo, o que torna indispensável a avaliação individualizada, considerando histórico clínico, segurança e expectativa de benefício.
Apesar dos relatos positivos, persistem lacunas científicas: definição da dose ideal, padronização de formulações, garantia de qualidade entre lotes e identificação dos perfis de pacientes que respondem melhor. Essas questões exigem estudos rigorosos e de longo prazo.
Perspectivas
Enquanto a ciência avança, especialistas defendem que o uso da cannabis no autismo seja conduzido com prudência, acompanhamento médico e individualização do tratamento. Como apontam os pesquisadores, “a esperança é real, mas precisa caminhar junto com a responsabilidade, para que os avanços sejam sólidos, seguros e baseados em evidências”.
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