É de conhecimento público que a violência contra a mulher é um dos grandes problemas do Brasil. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 2024, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que 1.467 mulheres foram mortas no país em razão do gênero, o maior número registrado desde a publicação da lei que tipifica o crime, em 2015.
Na Bahia, até o dia 21 de outubro, 80 feminicídios foram contabilizados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP), apenas cinco a menos que o mesmo período em 2023.
Um dos casos recentes – e de grande repercussão – aconteceu em Teixeira de Freitas, no Extremo Sul do estado, quando as irmãs Elaine e Hiane Miranda de Araújo, de 41 e 35 anos, respectivamente, foram mortas a tiros pelo ex-marido da primeira, dentro de uma loja na cidade. O alvo do ataque, inclusive, possuía medida protetiva contra o suspeito, que não teve o nome divulgado.
>> Homem mata irmãs a tiros dentro de loja em Teixeira de Freitas; suspeito foi preso
Mesmo com a legislação mais rígida e delegacias especializadas, por que crimes de violência contra a mulher, especialmente os feminicídios, continuam em números alarmantes?
Advogado e pesquisador associado do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Eduardo Carvalho*, de 37 anos, tem se debruçado sobre o tema desde 2010. Ele se dedicou a estudar programas voltados para homens autores de violência, chegando a ouvi-los em alguns trabalhos, mas os projetos mais recentes focam na reflexão sobre a responsabilização desses homens.
“Alguns elementos podem ser destacados. O feminicídio e a violência contra a mulher, de uma forma geral, são específicos porque encontram tolerância social. Nossa sociedade, de certa forma, ainda tolera ou legitima essa violência, devido ao nosso processo de socialização de gênero, que coloca as mulheres em uma condição de subordinação e discriminação”, analisa Carvalho. Ele pondera, contudo, que também é evidente, nos últimos anos, um enfrentamento do tema nas esferas pública e política.
No combate à violência contra a mulher, a Lei nº 14.994/2024, também conhecida como “Pacote Antifeminicídio”, promove uma série de mudanças na legislação penal ao tornar o feminicídio um crime autônomo, ou seja, independente e com características próprias.
“O feminicídio já aparecia anteriormente como circunstância qualificadora do crime de homicídio mas, agora, com essa lei, passa a ser um crime autônomo. A estrutura é basicamente a mesma da lei de 2015, o que muda efetivamente é a pena. A pena do homicídio qualificado, onde o feminicídio se inseria, era de 12 a 30 anos, e agora passa a ter um mínimo de 20 anos e um máximo de 40 anos”, explica o advogado e pesquisador.
Embora considere importante investir no direito penal, reforçando que se trata de um crime grave, que não será tolerado pelo Estado Brasileiro, Eduardo acredita que “o direito penal, por si só, não resolverá nossos problemas sociais”.
Isso porque, de acordo com o estudioso, “o aumento dos casos de feminicídio também tem relação direta com a ineficiência do Estado em garantir a proteção e a segurança dessas mulheres”.
“Toda a estrutura de políticas públicas prevista na Lei Maria da Penha, que é fundamental para abordar a violência contra as mulheres, ainda não está plenamente desenvolvida, principalmente nas cidades do interior, onde as mulheres encontram mais dificuldade para acessar redes de serviços estruturadas e preparadas para atender suas demandas e garantir a segurança necessária”, pontua.
MEDIDAS PROTETIVAS
Quando a vítima possui medida protetiva contra o agressor, como a situação em Teixeira de Freitas, existe uma causa para o aumento da pena (um agravante, na linguagem popular). Ainda assim, mesmo quando os homens são intimados, não há garantia de que um policial ou outra estrutura do poder público impeça ele de se aproximar e desrespeitar a decisão.
>> Mulher morta pelo ex-marido em Teixeira de Freitas tinha medida protetiva; homem matou ela e a irmã
“Dentre as medidas protetivas de urgência, temos, por exemplo, as ordens de afastamento para o agressor e proibição de contato. Mas, se não temos uma estrutura estatal que garanta a eficácia dessas medidas, não temos a segurança necessária”, afirma Eduardo. “O trabalho da Polícia Militar e dos batalhões especializados também não consegue atender a todos os casos de violência doméstica e familiar”, acrescenta.
‘O FEMINICÍDIO PODE SER O PRIMEIRO ATO DE VIOLÊNCIA’
Outra questão levantada pelo pesquisador é o fato de muitas pessoas atrelarem o feminicídio ao resultado de um processo contínuo de violência. Na maioria dos casos, antes do crime fatal, a mulher pode já ter sido vítima de violências diversas (física, psicológica, patrimonial, entre outras). Mas Eduardo ressalta que, “às vezes, o feminicídio pode ser o primeiro ato de violência”.
Cabe salientar que nem sempre o homicídio de uma mulher configura feminicídio. Esse tipo de crime ocorre diante de circunstâncias específicas previstas na lei: quando o crime resulta de violência doméstica e familiar ou quando há menosprezo ou discriminação à condição de sexo feminino.
“Não considero ‘sexo feminino’ o melhor termo, pois transmite a ideia do biológico e estamos tratando de identidade de gênero, mas esse é o termo da lei. Na interpretação, entendemos como menosprezo ao gênero feminino”, frisa o advogado.
Ele traz ainda que, para caracterizar o feminicídio, é preciso considerar uma dessas hipóteses em contextos de violência doméstica e familiar. A Lei Maria da Penha define a violência doméstica e familiar como aquela que ocorre em três contextos específicos:
1. No âmbito doméstico, entendido como o espaço de coabitação. Não é necessário vínculo familiar, mas apenas que pessoas coabitem “sob o mesmo teto”. Podemos considerar essa violência, por exemplo, entre patrão e empregada doméstica, pois eles coabitam o mesmo espaço;
2. No contexto familiar, ou seja, em relações familiares, sejam elas consanguíneas ou por parentesco;
3. Em qualquer relação íntima de afeto. Esse termo é utilizado na lei para incluir casos envolvendo “ex”. Mesmo sem coabitação ou parentesco, a situação de violência pode ocorrer em função de uma relação passada, a exemplo do caso das irmãs em Teixeira de Freitas.
SUBNOTIFICAÇÃO
Ainda de acordo com Eduardo Carvalho, os dados de violência doméstica costumam ser subnotificados em cerca de 60%. “Falamos apenas da ‘ponta do iceberg’. O problema é muito maior do que esses dados revelam”, diz.
Isso porque a dificuldade de reconhecer a violência é compartilhada pelos homens e pelas próprias vítimas. Muitas mulheres podem reproduzir o discurso social que naturaliza a violência, não compreendendo esses atos como violentos e até mesmo não se reconhecendo como vítimas. Consequentemente, não procuram o sistema de Justiça. Há, ainda, outro problema: às vezes, elas procuram o sistema e são revitimizadas por ele próprio.
AUTORES DE VIOLÊNCIA TÊM PADRÕES
Nos trabalhos em que ouviu homens autores de violência contra mulheres, Eduardo notou que, primeiro, “existe dificuldade, por parte deles, em reconhecer a violência como violência“. E, embora pareça óbvio, esses homens foram educados a naturalizar comportamentos violentos. “Aquelas violências que deixam marcas visíveis nos corpos das mulheres são mais facilmente identificadas como atos violentos. Já as violências psicológica, moral e patrimonial não são facilmente reconhecidas por esses sujeitos”, comenta.
Superado o primeiro padrão de comportamento desses homens – de negar a violência e não se responsabilizar por ela, por não a entenderem como um ato violento -, o segundo padrão é a culpabilização da mulher. “Eles entendem que a violência praticada é, na verdade, uma resposta a um comportamento provocador da mulher. Esses homens utilizam o discurso de que ‘revidaram uma agressão anterior dessas mulheres'”.
“Eles também tentam transferir a responsabilidade para fatores que, embora potencializem o risco da violência, não são sua causa, como o consumo de álcool ou drogas. Falam que não agiram porque quiseram, mas porque foram ensinados a resolver problemas dessa forma”.
COMO OS HOMENS DEVEM AGIR
Há uma frase de Angela Davis que é bastante utilizada: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. A lógica também pode ser aplicada ao enfrentamento à violência contra a mulher, segundo Carvalho.
“Não basta apenas se colocar como uma pessoa aliada aos princípios feministas; é preciso combater, de forma efetiva, essas manifestações de machismo no dia a dia. Quando permanecemos em silêncio e não reagimos a comportamentos machistas, especialmente em interações que ocorrem exclusivamente entre homens, estamos corroborando para a perpetuação dessa prática”, inicia.
“Ser aliado é, fundamentalmente, estar atento às manifestações desse machismo que estrutura nossa sociedade, a esse machismo cotidiano, e repreender sempre que tais comportamentos machistas e sexistas forem identificados nas ações de outros homens. É repreender o amigo quando ele faz uma piada sexista ou misógina, é promover uma educação inclusiva. É por esse caminho que podemos pensar no papel e no engajamento dos homens na luta contra a violência contra as mulheres”, continua.
“Entender que o machismo e essa forma hegemônica de masculinidade, presentes em nossa sociedade, também é perversa para os homens. É óbvio que em medidas diferentes, mas nós, homens, também temos nossas potencialidades inviabilizadas enquanto seres humanos, devido a essa conformação de uma masculinidade hegemônica. Esse modelo traz um padrão de opressão e vitimização das mulheres, mas também causa aprisionamentos para nós, homens”, completa.
Apesar de ser voltado diretamente à mulher, o feminicídio também tem um impacto muito significativo sobre as crianças. “Os filhos se tornam uma espécie de ‘vítimas invisíveis’ do feminicídio, pois a violência doméstica e/ou familiar desestrutura toda a família. Temos estudos que mostram altas taxas de ideação suicida, problemas com consumo de álcool e outras drogas e, de modo geral, questões recorrentes de saúde mental em crianças que foram expostas a esse tipo de situação ao longo de suas vidas”, conclui o pesquisador.
SAIBA COMO DENUNCIAR E ONDE PROCURAR AJUDA EM CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER:
> Ligue 180, serviço telefônico gratuito disponível 24 horas em todo o país;
> Clique 180, aplicativo para celular;
> Ligue 190, se houver uma emergência;
> Delegacias de polícia;
> Delegacias da Mulher (se não funcionar 24 horas, o boletim de ocorrência pode ser feito em uma delegacia normal e depois transferido);
> Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, para os casos em que a mulher não se sente segura em procurar a polícia;
> Serviços de Atenção Integral à Mulher em Situação de Violência Sexual, como abrigos de amparo;
> Defensoria Pública, que atende quem não possui recursos para contratar um advogado;
> Promotorias Especializadas na Defesa da Mulher
*Anderson Eduardo Carvalho de Oliveira é natural de Maceió, Alagoas, mora em Salvador há 15 anos, é pesquisador associado do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA) e bacharel em Direito pela Faculdade de Alagoas (FAL); licenciado em Ciências Sociais pela UFBA; pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pelo Complexo Educacional Renato Saraiva (CERS); Mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA); pós-doutor pela Escola de Trabalho Social e Criminologia da Universidade Laval (Québec, Canadá).
LEIA MAIS: ‘Mulheres são as maiores vítimas do racismo religioso’, diz pesquisadora
Acompanhe nossas transmissões ao vivo no www.aratuon.com.br/aovivo. Siga a gente no Insta, Facebook, Twitter e Bluesky. Envie denúncia ou sugestão de pauta para (71) 99940 – 7440 (WhatsApp).