O “Trump doidão” e o jornalismo da carochinha

Por que rotular virou mais importante do que compreender? talvez os EUA estejam mesmo declinando — não por incompetência, mas por esgotamento. E talvez Trump seja, mais do que causa, um sintoma. Um império exausto que faz barulho para não parecer fraco.

Por Pablo Reis.

No teatro geopolítico global, parece haver sempre uma plateia ansiosa por vilões e mocinhos. O noticiário vira novela. O debate, caricatura. E o jornalismo político — que deveria iluminar zonas complexas da realidade — acaba muitas vezes recorrendo ao modo “carochinha” de contar histórias: com pastelões, rótulos simplistas e uma urgência por moralizar o mundo como se fosse um conto de fadas às avessas.

Só na última semana, li e ouvi colegas aqui no Brasil qualificando Donald Trump como "doidão", "lunático", "esquizofrênico". E tudo isso dentro de colunas e análises supostamente neutras. Críticas são legítimas. Mas quando o adjetivo suplanta o argumento, o jornalismo se apequena — e o entendimento se desfaz.

O jornalista graduado, com uma especialização e, talvez, um mestrado na área de humanas, se desafia a “ensinar” a um chefe de estado, que pode estar sendo assessorado por um ou dois candidatos ao Nobel de Economia. E, dessa maneira, vão elencando que essa ou aquela medida vai causar inflação, vai provocar turbulência mundial. Sempre adornando os comentários com um excesso de adjetivos, muitos deles pejorativos. Nós, graduados em comunicação, que lemos dois ou três artigos da mídia internacional, que ouvimos um podcast a caminho para o trabalho, estamos nos autorizando a faniquitos públicos em nome apregoar nossa visão solo de mundo. 

Há algo desconfortavelmente arrogante na forma como parte da imprensa, mesmo aquela qualificada, encara o poder global. Nós lidamos com informação, muitas delas de segunda ou terceira mão. Eles estão lidando com dados brutos, os mais sensíveis e exclusivos possíveis, muitos deles que só chegaram ao conhecimento dos integrantes de uma sala de reunião com seis cadeiras. Enquanto isso, as visões pragmáticas, essas, ficam em segundo plano. 

Mas há uma diferença brutal entre quem lida com informação de segunda ou terceira mão e quem tem acesso a dados brutos, relatórios confidenciais e reuniões estratégicas com seis cadeiras e nenhuma câmera. O que se perde, nesse fosso entre o que é dito e o que é sabido, é a chance de uma análise real: crítica, mas não histérica; profunda, mas não panfletária.

Trump é chamado de Doidão

As potências passam. O tom professoral, não.

Ao longo de dois milênios, o mundo já viu impérios surgirem e ruírem: Roma, Bizâncio, Otomanos, Portugal, Espanha, França, Reino Unido. Todos, a seu tempo, foram donos do pedaço. Todos também pensaram que durariam para sempre. Até chegar a supremacia americana.

O Império Romano, que controlou vastas áreas na Europa, Norte da África e Oriente Médio, prevaleceu por 500 anos até começar a ruir em 476 d.C. desestabilizado por invasões, corrupção e intrigas políticas. Mas cedeu espaço para uma auto fragmentação, que foi o Império Bizantino, preservando a cultura romana e cristã no Mediterrâneo Oriental, até a queda de Constantinopla, em 1453. Por uma sucessão de guerras, foi suplantado pelo Império Otomano, que resistiu até a Primeira Guerra Mundial, em 1918.  

Enquanto isso, no vácuo deixado pela Roma Ocidental, as nações europeias formaram os impérios coloniais, ocupando terras na América e na África. Portugal e Espanha liderando as grandes navegações, seguidos por França e Holanda. o Reino Unido tornou-se a maior potência do século XIX, lastreado pela poderosa frota marítima e pela industrialização. No auge, em 1870, controlava ¼ da população e do território do planeta.  

A “transmissão de faixa” para os Estados Unidos, no século XX, não foi tão traumática. Era como passar o império de um tio aristocrata para um sobrinho querendo modernidade e com possibilidade estratégica de um continente inteiro protegido por dois oceanos, e de muitos mais recursos naturais. Entre 1870 e 1913, o PIB americano saltou de cerca de 2% para 19% do total mundial, superando o Reino Unido em produção industrial já na década de 1890. 

A vitória na Segunda Guerra Mundial montou uma nova correlação de forças geopolíticas, com EUA e União Soviética. Em 1945, o PIB americano eram metade de todo o mundo (devido à destruição da Europa) e assim foi fácil assumir a liderança militar e política com o Plano Marshall e a criação da ONU.

Os russos não tiveram como manter por 70 anos o poderio bélico, com uma economia planificada e de pouca inovação em relação ao Ocidente. A indústria armamentista consumia 20% do PIB, enquanto os americanos gastavam 7%, aí sobrava pouco dinheiro para as necessidades de uma população sob regime comunista. A queda do Muro de Berlim foi só o marco simbólico para um império ruindo por dentro.  

A ascensão dos Estados Unidos não foi traumática como a queda de Constantinopla ou o colapso soviético. Foi quase uma transmissão de bastão entre um tio aristocrático e um sobrinho moderno — este com dois oceanos a protegê-lo, uma economia pulsante e uma indústria imparável.

Sob o pretexto de ser o xerife das democracias no mundo, os EUA fizeram sua ocupação global, de forma direta, ou mandando a procuração pela OTAN. Mas tem uma hora (e todos os anteriores donos do pedaço vivenciaram isso) que a conta não consegue se pagar. Há óbvios bônus econômicos, políticos e culturais em ser o chefão a quem todos recorrem no momento de aperto. Mas os ônus parecem cada vez mais temerários aos internos que, supostamente, precisam manter a fatura em dias. 

Entre Maquiavel e Sun Tzu

O jornalismo da carochinha geralmente opta por narrativas fantasiosas, ou épicos de batalhas do bem contra o mal, que podem ter visões simplistas, ingênuas ou reducionistas, enxergando as mensagens apenas com vistas ao próximo ciclo lunar, não percebendo que a mudança é de era - e não apenas de maré. 

E foi assim que, nos últimos dias, ouvi e li que Donald Trump seria controverso, agressivo, polêmico - isso em análises e reportagens mais neutras. Os mais exaltados se referiram a lunático, doidão, esquizofrênico, irresponsável, ou “faz conta de padeiro”. Ninguém é obrigado a simpatizar ou levantar bandeira de um excêntrico bilionário na Casa Branca (particularmente, aquela impostação de voz arrogante, o bronzeado artificial e o topete de mau gosto me causam espécie). Agora, usar interpretações rasas só para mascarar como análise o que é pura antipatia é desserviço. 

Seria o momento de desdobrar um raciocínio de que o pensamento ocidental é muito domesticado por ideias de Nicolau Maquiavel, em o Príncipe, o manual político do século XVI:

  • O pragmatismo acima da moral: “os fins justificam os meios” virou uma interpretação recorrente para o livro, que cita textualmente "É melhor ser temido do que amado, se não puder ser ambos"
  • Aparência e Percepção: O sucesso depende de como o príncipe é percebido. ("Os homens julgam mais pelos olhos do que pelas mãos.")
  • Adaptabilidade: Flexibilidade e audácia são essenciais para lidar com imprevistos.
  • Controle do Poder: Eliminar ameaças internas, oferecer segurança e estabilidade.

Enquanto o Oriente domina melhor Sun Tzu, militar chinês do século V a.C., e A Arte da Guerra:

  • Planejamento e Preparação: "Todo combate é baseado no engano." A vitória começa antes da batalha, com planejamento meticuloso, conhecimento do terreno, do inimigo e de si mesmo.  
  • Estratégia sobre Força Bruta: Vencer sem lutar é o ápice da habilidade. Subjugar o inimigo pela diplomacia ou enfraquecê-lo estrategicamente é superior ao confronto direto. "A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem combater."
  • Engano e Inteligência: Confundir o inimigo sobre suas intenções e capacidades é fundamental. Como a água se molda ao terreno, o líder deve ajustar suas táticas às circunstâncias.
  • Gestão de recursos: A eficiência e a rapidez são vitais para preservar a força do exército e do estado.

Nessa disputa silenciosa, quem está aplicando qual cartilha? O valentão da rua, que grita e toma esteroides para parecer mais musculoso, ou o lutador franzino que, com um golpe bem dado, imobiliza sem alarde? 

A histeria analítica e o desserviço

O competente Reinaldo Azevedo, cujos comentários em rádio e tv, e textos representam boas contribuições para a inteligência na mídia nacional, cai nessa cilada. Opta por qualificar como “doidão”, por considerar que o protecionismo tem fortes indícios de pressionar a inflação interna, sobre a rejeição da comunidade internacional - e também dos eleitores americanos - com a política tarifária mais agressiva. 

cap: mercados derretem, trump mais doidão

Trump Doidão, por Reinaldo Azevedo

Ele não apenas escorrega no juízo, mas abre mão de explicar o que de fato está acontecendo. O protecionismo trumpista não é uma excentricidade pessoal: é a resposta de um império em transição, que tenta reindustrializar à força, segurar sua classe média no cabo de aço da retórica, e reinventar o “inimigo externo” como cola social.

A antipatia pessoal, mesmo justificada, não pode substituir a análise de conjuntura. A redução caricatural, neste caso, não é apenas preguiçosa. É também perigosa, porque ajuda o público a não entender o que está em jogo. E o que está em jogo é muito mais do que a reeleição de um bilionário bronzeado. É o fim de uma era.

O ranço poderia dar espaço a uma análise mais abrangente e complexa de uma conjuntura bem difícil de cravar apostas. Por tudo o que foi resumido aqui, é natural, a períodos cada vez mais curtos, a alternância de hegemonias entre potências. 

Cá entre nós, tudo leva a crer que a China já tenha ultrapassado. Basicamente, há duas formas de entrar numa briga: querendo mostrar que é mais forte do que realmente é (e assim, intimidar - o valentão da rua, que grita e toma esteróides, mas manda melhor nas falas do que no soco) ou sugerindo que é mais frágil e inofensivo que realmente é (e assim, surpreender - como o praticamente de arte marcial, franzino, mas com toques precisos para imobilizar o adversário).

Enquanto os EUA gritam, impõem tarifas e convocam a OTAN como uma extensão de sua diplomacia armada, a China expande silêncios. Constrói estradas, influencia moedas, compra terras, financia campanhas. Uma ascensão que parece ter mais a ver com estratégia milenar do que com tweets intempestivos.

Uma era que não é mais americana

A história não caminha em linha reta — ela se dobra, tropeça, se reinventa. O século XXI, ao contrário do que prometeram os gurus de Davos, não será uma festa liberal em Manhattan. Será multipolar, turbulento, marcado por choques entre modelos, valores e narrativas.

E talvez os EUA estejam mesmo declinando — não por incompetência, mas por esgotamento. E talvez Trump seja, mais do que causa, um sintoma. Um império exausto que faz barulho para não parecer fraco. Que age mais por refluxo do que por razão. Que, como um leão velho, ainda ruge — mas já não corre.

Não será que esteja abdicando de grande parte de suas anteriores zonas de influência sob o pretexto de ser estressado demais? Alguém que esteja nessa posição de poder, autoridade máxima não apenas de um país, mas de um bloco global inteiro, poderia estar agindo de acordo com seus humores matinais, sua visão única de mundo e sob o estímulo de crises de azia e refluxo após uma sequência de três latinhas de Coca Zero?

Analisar o mundo de hoje sob esses vieses de histerias de príncipes não parece apenas antiquado. É também superficial e incomodamente ilusória. O papel do jornalismo, nesse contexto, não é rir do rugido, nem zombar do topete. É entender por que o bicho, mesmo cansado, ainda assusta. E perguntar: o que virá depois do rugido?

 

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