Creia: você pode ter sido cúmplice do tráfico quando votou pra vereador
O PCC está investindo alto nas eleições. Segundo investigação da Polícia Federal, só em 2024, e só no estado de São Paulo, podem ter sido 42 cidades a um custo de R$8 bilhões. Podemos estar diante não mais da democracia, mas da narcodemocracia
Por Pablo Reis.
Imagine uma balança em que, de um lado, pesam R$ 4,9 bilhões do fundo eleitoral (ou Fundo Especial de Financiamento de Campanha) destinado aos 29 partidos nas eleições de 2024 — e, do outro, nada menos que R$ 8 bilhões movimentados por um banco digital controlado por uma facção criminosa apenas em São Paulo. O contraste entre esses números não é apenas matemático: é simbólico do desvio de rota que vem tomando o que convencionamos, no Brasil, de chamar processo democrático.
Os partidos que ficaram com a maior fatia desse financiamento oficial são o PL (R$886 milhões) , o PT (R$619 milhões) e o União Brasil (R$536 milhões). Ou seja, a facção pode estar investindo em eleições mais do que o dobro… de todos as siglas juntas. É o principal fomentador de políticos no país. Infelizmente, tá tudo dominado.
Em 2016, uma apuração da revista Veja chegou à conclusão de que a organização criminosa transnacional que nasceu no presídio do Carandiru, em São Paulo, conseguiu, apenas com a venda de drogas para consumo no território nacional, um faturamento anual da ordem de R$20,3 bilhões. Isso sem incluir o dinheiro de roubos de cargas de quase mil assaltos a banco naquele ano. Se as dezenas de bilhões estivessem documentados em balancete, o PCC seria, naquela época, a 16a maior empresa do país, superando até a montadora Volkswagen. Perceba que estamos falando de uma década atrás. Se você tivesse que apostar, diria que a receita diminuiu ou explodiu?
É um abismo entre o financiamento oficial e o dinheiro clandestino que é despejado para eleger figuras ligadas a organizações criminosas. A narcodemocracia é montada num tripé: fragilidade dos mecanismos de controle, apetite dos bandidos para tomar conta do Estado (por onde passa 40% do nosso PIB) e uma endêmica falta de educação política do cidadão.
Temos toda razão para repudiar o FEFC, como uma gastança com dinheiro público para sustentar o circo de candidatos e as propagandas que, quando servem de alguma coisa, são para rir. Mesmo assim, exige prestação de contas, limites de gastos e fiscalização pelo Tribunal Superior Eleitoral. Já o dinheiro do crime opera em sombras, por meio de estruturas financeiras opacas e contas concentradas em empresas de fachada. O relatório sigiloso da Polícia Federal, a que o Fantástico teve acesso, identificou que o Primeiro Comando da Capital (PCC) usou um banco digital, 4TBank, na campanha de 2024, para lavar e realocar recursos. O montante chegou a R$ 8 bilhões apenas naquele ano - com saques de R$100 milhões em espécie em apenas cinco anos.
Esse fluxo paralelo de recursos gera um círculo vicioso: quanto mais dinheiro ilegal ingressa na política, maior é a capacidade das organizações criminosas de capturar cargos públicos, influenciar licitações e corromper agentes estatais. Em São Paulo, contratos de transporte público chegaram a movimentar R$827 milhões em favor de empresas sob suspeita de ligação com o PCC. Com prefeitos e vereadores cooptados, as portas do poder se abrem para interesses que nada têm a ver com o bem comum.
As consequências vão muito além do desvio de verbas. Quando o crime organizado decide onde empregar recursos bilionários em campanhas, redefine-se o conceito de escolha livre do eleitor. Em territórios dominados por milícias ou facções, o pleito eleitoral torna-se um palco encenado, no qual apenas candidatos aprovados pelos grupos armados têm permissão para realizar campanha, cerceando a alternância de poder e aprofundando a sensação de impotência cidadã.
A investigação da PF identificou pelo menos 42 cidades onde a atuação de organizações criminosas pode ter sido decisiva no resultado das eleições. Não quis revelar quais são os municípios porque a apuração continua. Nada garante que esteja restrita a essas dezenas de cidades. Ao contrário, a julgar por relatos de políticos que consultei, esse tipo de investida pode estar muito mais próximo do que parece.
Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro. Na Itália, a influência de quadrilhas mafiosas em prefeituras do sul do país já levou à intervenção do governo central em diversas administrações municipais. No México, cartéis locais recorrem ao “voto de cabresto” — coerção de eleitores por meio de violência ou suborno — para garantir mandatos favoráveis a seus negócios ilícitos. Esses exemplos internacionais comprovam: onde a democracia se enfraquece, o crime organizado enraíza-se como erva daninha.
Então, fica a pergunta inquietante: será que nós, eleitores, somos realmente livres para escolher seus representantes, ou estamos sendo manipulados — ainda que de forma subliminar — a eleger cúmplices do crime? A resposta não está apenas nas urnas, mas na transparência e na solidez das instituições que garantem que cada voto represente, de fato, a vontade soberana do povo.
Para resgatar a credibilidade perdida, torna-se urgente repensar o financiamento democrático. Medidas como a fiscalização em tempo real de transações financeiras atreladas a campanhas, o fortalecimento de órgãos de compliance eleitoral e a adoção de tecnologias de blockchain para rastrear doações podem servir como antídotos. Sem isso, continuaremos a regar, inadvertidamente, as raízes de um sistema em que o poder se compra no submundo, e a democracia — esse frágil broto de esperança — murcha sob o peso do dinheiro sujo.
Há que se cobrar também um empenho do judiciário para tentar - se é que ainda tem tempo - desarticular todo o poderio dos malfeitores, que estão espalhados, sob laranjas ou de cara limpa, por palácios, assembleias, tribunais… Muito já foi mostrado em reportagem como o crime organizado financia carreiras de advogados, que fortalecem bastante o currículo para depois oferecerem salvo conduto legal a quem deveriam ajudar a botar atrás das grades. Esses advogados estagnaram na carreira? Ou cresceram, prestaram concurso público, estão em comarcas, já tiveram tempo de galgar a desembargadores? Foram ainda mais além na hierarquia das cortes nacionais?
Pode ser que a gente ainda nem esteja mesmo preparado para essa conversa…
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