Marias na Construção: as mulheres que estão mudando o canteiro de obras

Projeto 'Marias na Construção' homenageia a primeira mulher mestre de obras da Bahia

Por Juana Castro.

"Estava aplicando um brilho numa parede agora”, disse ela, no meio da tarde de um domingo, ao atender a ligação da reportagem do Aratu On. A correria é parte da rotina de Tatiane Santana de Souza Medeiros, mais conhecida como Tati Pereirão, que sempre sonhou trabalhar na construção civil. 

Mas sua história com o ramo vem muito antes dos certificados. “Com 7 anos de idade, fui morar no final de linha do Uruguai, com meus pais e irmã. A gente vivia em palafitas, literalmente na maré, numa casa de taipa, daquelas de madeirite. Começou aí a luta: entulhando, carregando carros de mão, derrubando entulho, virando várias caçambas com minha mãe, de domingo a domingo, até conseguirmos entulhar a casa”, relembra.

Ainda assim, a maré levou a casa da família três vezes. “A gente entulhava, e a maré levava tudo, com tudo dentro. Era aquela luta, agonia, corre-corre. O que dava pra salvar, tirava da casa. O que não conseguia, era correr atrás de novo.”

Com o tempo, foi se aperfeiçoando na marra. “Fui crescendo nesse ramo, aprendendo de tudo um pouco, na cara e na coragem”.

Foi o ex-marido quem a apresentou ao "Marias na Construção". “Ele viu o projeto e me falou. Como eu já fazia de tudo em casa - assentava cerâmica, levantava murinho pra armário da cozinha, rebocava parede, mexia na hidráulica… Só não mexia na elétrica, porque tinha medo.” Hoje, superou esse receio: “Sou eletricista, técnica em eletrotécnica e estudante de engenharia elétrica. Eu, que tinha pavor de eletricidade, graças a Deus, não tenho mais.”

E não tem mesmo. Hoje, inclusive, Tati cursa Engenharia Elétrica. Precisou trancar devido a um acidente de trabalho, mas pretende retornar no segundo semestre e, "se Deus quiser", concluir daqui a quatro anos.

Marias na Construção

O "Marias na Construção" oferece cursos no Senai Dendezeiros, em Salvador. O nome é uma homenagem à primeira mestre de obras da Bahia, Maria do Amparo Xavier, hoje com 70 anos. Segundo a coordenadora dos cursos, a tecnóloga em processos gerenciais Aline Sodré, “para além de capacitar essas mulheres, o projeto tem como propósito desconstruir essa imagem de que as áreas da construção civil e automotiva são áreas só para homens”.

Maria do Amparo Xavier, primeira mestre de obras da Bahia | Foto: arquivo/Museu da Pessoa

O projeto começou em 2019 em formato experimental, de forma itinerante em bairros de Salvador. Após a pandemia, passou a acontecer no Senai Dendezeiros. “Nos últimos anos, o projeto contou com um contrato de parceria com a Prefeitura de Salvador, por meio da SPMJ [Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude]”, relata. “As alunas têm direito a transporte, fardamento, toda a parte educacional do Senai e, ao final, uma cerimônia de conclusão", explica.

Madalena Paixão Costa, 37 anos, é uma das ex-alunas. Moradora do bairro do Uruguai, ela fez três cursos: pedreira polivalente, pintora de obras e gesseira. “Sempre tive o sonho de estudar lá, desde muito jovem, mas todos os cursos eram pagos e eu nunca tive condição financeira. Quando surgiu a oportunidade, abri mão de tudo e fui. Me joguei de cabeça.”

A paixão pela construção civil vem de família. O pai era carpinteiro e marceneiro, e o avô, já falecido, mestre de obras. "De certa forma, é um legado", reflete.

Para Madá, como também é chamada, o projeto vai além da técnica. É resistência e sobrevivência. “A gente precisa entender que a mulher não é só aquela que está em casa, que faz comida, limpa a casa e cuida de filho. Ela pode muito mais. A mulher empoderada, hoje, vai além.”

O preconceito, todavia, não dá descanso. Interferiu até em uma entrevista de emprego, quando escutou de um encarregado que "não gostava de trabalhar com mulher". Mas Madá respondeu: “O senhor tem mãe? Irmãs? Esposa? Como o senhor abre a boca e diz isso se o senhor é filho e marido de uma mulher?”

Essa resistência no mercado é familiar para Tati também, que confirma a presença do machismo. "Quando me veem nas obras, dizem: ‘Ah, nunca vi pedreira, nunca vi pintora, nunca vi eletricista mulher…’. Como não sou nada ousada, já respondo: ‘Então está vendo pela primeira vez’.”

"Quando veem uma mulher dominando, crescendo no mercado, muitos se sentem envergonhados ou, talvez, humilhados", acrescenta Tati Pereirão. O apelido - que ela mesma escolheu - vem da personagem de Lilia Cabral na novela "Fina Estampa" (2011), da Globo. "Ela era pedreira, pintora, eletricista e encanadora. Quando vi a personagem, disse: 'ê, menina, eu sou igual a ela. Sei fazer as mesmas coisas que ela faz'. E, por incrível que pareça, tenho um macacão igualzinho ao dela", conta, divertindo-se.

Maria do Amparo Xavier: pioneira

Maria do Amparo Xavier, hoje aposentada, acompanha de perto o projeto que leva seu nome. A primeira mestre de obras da Bahia se emociona ao ver tantas mulheres tomando o espaço que ela precisou conquistar sozinha, décadas atrás.

“Quando comecei, era só eu. Hoje vejo muitas. Isso é uma vitória para todas nós”, afirmou D. Maria ao Aratu On. Hoje, o projeto já formou mais de 2,5 ml mulheres e segue capacitando novas turmas a cada ano.

Tati reconhece: “Ela esteve presente em vários encontros. É a Pereirão Mestra.”

Siga a gente no InstaFacebookBluesky e X. Envie denúncia ou sugestão de pauta para (71) 99940 – 7440 (WhatsApp).

Comentários

Importante: Os comentários são de responsabilidade dos autores e não representam a opinião do Aratu On.

Nós utilizamos cookies para aprimorar e personalizar a sua experiência em nosso site. Ao continuar navegando, você concorda em contribuir para os dados estatísticos de melhoria. Conheça nossa Política de Privacidade e consulte nossa Política de Cookies.