Marias na Construção: mulheres que estão mudando o canteiro de obras
Projeto 'Marias na Construção' homenageia a primeira mulher mestre de obras da Bahia
Por Juana Castro.
“Estava aplicando um brilho numa parede agora”, disse ela, num domingo à tarde, ao atender à ligação da reportagem do Aratu On. Um dia antes, estava fazendo reparos hidráulicos no mesmo banheiro. É que a correria faz parte da rotina de Tatiane Santana de Souza Medeiros, mais conhecida como Tati Pereirão, que sempre sonhou em trabalhar na construção civil.
Ela acumula conhecimentos e certificados. É eletricista, técnico em eletrotécnica e, atualmente, estudante universitário de engenharia elétrica, mas começou a se familiarizar com o setor por necessidade, ainda na infância.
“Aos 7 anos, fui morar no final de linha do Uruguai, com meus pais e irmã. A gente vivia em palafitas, literalmente na maré, numa casa de taipa, aquelas de madeirite. Começou aí a luta: entulhando, carregando carrinhos de mão, derrubando entulho, virando várias caçambas com minha mãe, de domingo a domingo, até conseguirmos entulhar a casa”, relembra.
Ainda assim, a maré levou a casa da família três vezes. “A gente entulhava e a maré levava com tudo dentro. Era aquela luta, agonia, corre-corre. O que dava pra salvar, tirava a casa. O que não conseguia, era correr atrás de novo.”
Tati foi crescendo e aprendendo “de tudo um pouco, na cara e na coragem”. Mas a virada de chave aconteceu em 2019, quando o ex-marido falou sobre um projeto que tinha visto, o “Marias na Construção”, uma parceria com o Senai que homenageia a primeira mulher mestre de obras da Bahia, Maria do Amparo Xavier.
"Já fazia de tudo em casa. Assentava cerâmica, levantava murinho para armário da cozinha, rebocava parede, mexia na hidráulica... Menos elétricos, porque tinha medo." Considerando os cursos realizados e o atual de graduação, afirma que superou o tal “pavor de eletricidade”.
Vem das diversas habilidades, inclusive, o apelido — ou nome de trabalho — que escolheu e pela qual é reconhecida na rua: “Tati Pereirão”. Trata-se de uma referência à personagem Griselda (Pereirão), interpretada pela atriz Lilia Cabral na novela “Fina Estampa”, da Globo, em 2011. “Ela era pedreira, pintora, eletricista e encantadora. Quando vi a personagem, pensei: 'Menina, eu sou igual a ela. Sei fazer as mesmas coisas que ela faz'. E, por incrível que pareça, tenho um macacão igualzinho ao dela!”, diz.
Lilia Cabral como Griselda/Pereirão | Foto: Alex Carvalho/Globo
No “Marias na Construção”, no entanto, Tati iniciou no curso de “pedreira polivalente”, quando o projeto ainda era itinerante e rodava os bairros de Salvador em um caminhão-contêiner. Ia e voltava de Paripe utilizando o trem e, quando não tinha dinheiro, ia a pé.
Mas veio a pandemia e tudo parou. No retorno das aulas, Tati fez o curso de técnica em refrigeração, de fotovoltaica (instaladora de placa solar), de eletricista de baixa tensão (residencial), de técnica de manutenção predial e de gesseira.
Posteriormente, formou-se como técnica em eletrotécnica pelo Governo do Estado e, à noite, também pela gestão estadual, faz curso técnico de desenho na área da construção civil. Trancou a faculdade após um acidente de trabalho que afetou a coluna, mas pretende voltar no segundo semestre e, “se Deus quiser”, concluir esta etapa em aproximadamente quatro anos.
Marias na construção e a luta contra os preconceitos
Apesar da bagagem, Tati Pereirão sente na pele os desafios de ser mulher na construção civil. "Há muito preconceito. O machismo, infelizmente, ainda é aflorado", afirma. “Quando as pessoas passam e me veem nas obras, falam 'Ah, nunca vi pedreira; nunca vi pintora; nunca vi eletricista mulher...'. Como 'não sou nada' ousada, dou logo a resposta na lata: 'Então está vendendo pela primeira vez'.”
Alguns homens debocham ou a desafiam, por acharem que são profissões “masculinas”. “Uma vez eu estava em cima do andaime e um cara falou: 'Quero ver se você sabe mesmo pegar numa colher. Dê umas rumadas aí'. Pensei logo: 'Mais um abestalhado', e continuei chapiscando o teto, até que ele disse que eu realmente tinha noção”, lembra.
Entre críticas, elogios, piadas e até pedidos de fotos, ela diz seguir a vida. “Lugar de mulher é onde ela quiser estar. Acho que o homem fica envergonhado ou, talvez, sinta-se humilhado ao ver a mulher dominando, evoluindo e crescendo mais no mercado de trabalho”, analisa.
Hoje, como autônoma, quando está “100% da coluna”, fatura ao menos R$ 2 mil por mês. No futuro, Tatiane planeja abrir uma cooperativa externa para mulheres da construção civil, aproveitando “toda a mulherada que já fez curso no 'Marias na Construção'”. “Meu projeto de vida é esse”, garante.
Dificuldades de inserção no mercado de trabalho
Assim como Tati, Madalena Paixão Costa, de 37 anos, passou pelo “Marias na Construção”, concluindo os cursos de pedreira polivalente, pintora de obras e gesseira. "Sempre tive o sonho de estudar no Senai, desde muito jovem, mas os cursos eram pagos e eu nunca tive condição financeira. Quando surgiu a oportunidade, abri mão de tudo e fui. Me joguei de cabeça", revela.
A paixão pela construção civil vem de família. O pai é carpinteiro e marceneiro, e o avô, já falecido, era mestre de obras. “De certa forma, é um legado”, frisa Madá, como é mais conhecida.
Madá concluiu três cursos do ‘Marias na Construção’ | Fotos de arquivo pessoal
Ela acredita que o projeto é mais do que capacitação profissional. Permite entender que “a mulher pode muito mais” e que “não é só aquela que está em casa, que faz comida, limpa a casa e cuida do filho”.
Ainda assim, o preconceito, segundo Madá, retira oportunidades. “Não gosto muito de falar sobre isso, mas existe uma cultura do machismo entre os homens”, reflete. Em seguida, narra um episódio doloroso durante uma entrevista numa obra cujo nome prefere não revelar. "Um dos encarregados falou que não gostava de trabalhar com mulher. Isso me machucou muito. A mim e às outras colegas", lembra.
A recrutadora, conta, foi atenciosa e deu dicas, mas já havia alertado sobre a postura do encarregado. “Umas três vezes ele falou: 'Não gosto de trabalhar com mulher'. Isso me feriu de um jeito…”
Na ocasião, Madalena respondeu: "O senhor falou três vezes que não gosta de trabalhar com mulher. O senhor tem mãe? Irmãs? Esposa? Como o senhor abre a boca e diz isso, se o senhor é filho e marido de uma mulher? Se o senhor tem alguma frustração, é algo particular, mas não posso admitir esse tipo de fala".
Mesmo se posicionando, o impacto foi grande. "A gente estava numa alegria que você não tem noção e saiu na frustração. Nós não somos maiores nem menores que ninguém. Queremos apenas conquistar espaço".
Com a dificuldade de inserção no mercado de trabalho que tanto deseja, Madá tem vivido de “bicos”. Mãe de uma adolescente de 13 anos, mora em uma casa de dois cômodos, herdada da mãe, no bairro do Uruguai, e é beneficiária do Bolsa Família.
Ela acredita que, se houvesse incentivo dos órgãos públicos, o cenário seria diferente. "Se a prefeitura ou o governo - independente de quem apoiou nosso curso - desse oportunidade, não faltaria mão de obra. Vejo pessoas que fizeram os cursos, que estão capacitadas, mas não encontram oportunidades."
"Meu maior sonho é trabalhar na construção civil, mas como você terá experiência profissional sem oportunidade? É complicado", completa.
Com um salário de ajudante de pedreiro, em torno de R$ 1.640, ela teria “uma diferença boa no orçamento”, mas não descarta a possibilidade de migrar para a parte elétrica, por exemplo, que tem aberto mais vagas.
E ao ser questionada sobre uma possível permissão por ter feito os cursos, Madá é enfática: "Jamais! Pelo contrário. Estou tentando fazer outros na área, estou lutando. Tudo é válido".
Início do Marias na Construção
O “Marias na Construção” homenageia Maria do Amparo Xavier, a primeira mulher mestre de obras do estado da Bahia, hoje com 70 anos. Em 2019, já condecorada com a medalha Maria Quitéria por suas realizações, ela encontrou a então secretária municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ), Rogéria Santos, e pediu ajuda: “Preciso de alguma coisa para colocar as mulheres na construção civil”.
Passados 15 dias, as duas voltaram a se reunir e a titular da pasta sugeriu levar o exemplo de Dona Maria, apresentado por meio de um projeto que capacitasse as mulheres para o segmento. Surgia, assim, o “Marias na Construção”, em parceria com o Senai.
Maria do Amparo Xavier: a primeira mestre de obras da Bahia
Maria do Amparo Xavier, primeira mestre de obras da Bahia | Foto: Acervo do Museu da Pessoa
Com uma trajetória que começou na década de 1970, Maria do Amparo chegou a Salvador aos 14 anos, vinda de Camassandi, zona rural de Jaguaripe. Pegou carona com um homem chamado Vilobaldo, em um caminhão de bananas, conseguiu se abrigar na casa dele, da esposa e dos filhos e, no segundo dia na cidade, pediu ao motorista que a levasse até onde “levantavam aquelas casas”.
"Eu nunca tinha visto uma casa construída, fechada. Achava que se tocasse no fogão a casa ia pegar fogo", recorda.
Foi levada por Vilobaldo até a obra do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados), na Avenida Luís Viana Filho, a Paralela. Ao chegar lá, descobriu que só havia duas mulheres: uma passando o café e a outra era arquiteta. Porém, com muita insistência, conseguiu autorização para varrer o local. Observadora e curiosa, fez com que um pedreiro lhe ensinasse o básico da construção (no horário de almoço e escondido).
Em seis meses, “menina Maria”, como era conhecida na obra, já dominava os ofícios e passou em um teste avaliado pelo engenheiro responsável. Prestes a fazer 15, foi contratada como pedreira e, assim que pôde, alugou um quarto e sala no Curuzu e buscou a família.
Embora “miudinha”, como ela diz, Maria do Amparo trabalhou nas maiores empreiteiras do estado e deixou sua marca em obras como o entorno do Dique do Tororó, a Praça 2 de Julho, no Campo Grande, reformas no Pelourinho e as escavações do metrô. "Quando passo pelo túnel do metrô com minha neta, digo: 'Tá vendo? Tudo isso aqui teve a mão e o caminhar de sua avó'."
Dona Maria foi a primeira mulher a ser reconhecida oficialmente como mestre de obras na Bahia, aos 20 anos de idade. Por acreditar que era preciso aliar prática e teoria, formou-se como técnica em edificações. Tudo isso enquanto cuidava da família. "Nunca sofri assédio. Sempre fui respeitada. E quando recebia meu salário, dava à minha mãe, que fazia a feira. A minha felicidade era saber que ela não estava passando fome."
Hoje, é uma referência viva da inclusão feminina no setor. “Na linha 2 do metrô, foram mais de mil mulheres trabalhando”, pontua.
Maria do Amparo Xavier atua no Sintepav | Foto: Aratu On
Projeto que muda histórias
O projeto que nasceu a partir do apelo de D. Maria ganhou forma no Senai Dendezeiros, em Salvador, sob coordenação de Aline Sodré, tecnóloga em processos gerenciais e ex-aluna da instituição. “Mulher preta, suburbana e mãe atípica”, Aline se identifica profundamente com as beneficiárias. "Me sinto muito valorizada. Saber que existem projetos voltados para mulheres em condições como a minha... Me coloco muito ao lado delas".
Cursos do ‘Marias na Construção’ são realizados no Senai Dendezeiros | Foto: reprodução/redes sociais
Depois do formato itinerante e de voltar de forma fixa à sede do Senai, o “Marias na Construção” se consolida em duas frentes: construção civil e área automotiva. “Para além de capacitar essas mulheres, o projeto tem como propósito desconstruir essa imagem de que essas áreas são só para homens.”
A estimativa é de cerca de 30 turmas formadas por ano. As alunas recebem transporte, fardamento, material didático e, ao final, participam de uma cerimônia de conclusão. “Até 2024, com apoio da SPMJ, a prefeitura também fazia o encaminhamento das alunas ao Simm [Serviço Municipal de Intermediação de Mão de Obra] e buscava vagas junto ao Sinduscon [Sindicato da Indústria da Construção do Estado da Bahia], em obras da cidade”, explica Aline. Nenhum contrato com a gestão municipal foi fechado este ano.
Os cursos mais demandados são os de pedreira, pintora e assentadora de revestimento cerâmico. “É uma atividade de acabamento, pós-obra, e os empreiteiros preferem colocar as meninas para fazer cerâmica e limpeza final”, explica.
Na área automotiva, o destaque é o curso de instaladora de película: “É rápido, dura uma semana, e elas podem até empreender com isso. É um insumo fácil de adquirir e um serviço tranquilo de aprender.” O subprojeto "Auto Mulher" ainda oferece noções de manutenção de carros e motos, em parceria com o Sesc Senat.
Com 160 horas de duração ao longo de 40 dias úteis, o projeto já formou mais de mil mulheres. “Muitas delas empreendem. Por estarem em situação de vulnerabilidade social, há várias limitações para o trabalho com carteira assinada. Muitas são mães solo e não têm com quem deixar os filhos no contraturno da escola.”
Além disso, a violência urbana impõe barreiras: “Se indicamos uma vaga numa obra no Nordeste de Amaralina e elas moram em Mussurunga, por exemplo, por questões de violência e controle territorial, muitas não podem ir.”
Mesmo sem vínculo formal, o conhecimento adquirido vira retorno financeiro, de acordo com a coordenadora: “Reformam casas no próprio bairro, ajudam familiares e transformam isso em uma fonte de renda.”
Aline conta, ainda, que muitas alunas chegam em sofrimento psíquico, vítimas de violência doméstica. “Às vezes, fazer o curso é a forma que elas encontram de pedir socorro. Dizem que vão estudar e, aqui, a gente tem serviço social atrelado ao projeto.” Já houve encaminhamentos para atendimento psicológico, CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e Casa da Mulher Brasileira. “Aqui elas se sentem seguras, pois existe toda uma rede de apoio por trás”, destaca.
+ Violência contra a mulher: 86,46% das vítimas na Bahia são negras
Maria do Amparo acompanha com orgulho a transformação dessas mulheres, que saem com diplomas reconhecidos nacional e internacionalmente. “É a história viva!”, vibra, fazendo jus à famosa frase da filósofa estadunidense Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
Até porque, para uma pioneira, que saiu da zona rural de Jaguaripe, no interior da Bahia, abrir caminhos é um grande passo, mas não o suficiente. "Não pode ser só Dona Maria a vida toda. Já temos quatro mestres formados pelo projeto", comemora. E reforça: "Essa minha luta pela mulher no mercado vem da oportunidade que eu tive. Por isso, peço que não desistam dos seus sonhos".
E do início do sonho em diante, podem vir Tatis, Alines e Madalenas. Juntas, todas são Marias. Na construção. Na resistência. No futuro.
Presença feminina na construção civil
A presença feminina na construção civil vem crescendo de forma constante. Em 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrava cerca de 110 mil mulheres com emprego formal no setor. Em 2020, esse número saltou para 216 mil, conforme o Painel da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS).
Em 2023, pela primeira vez, a contratação de mulheres superou a de homens. Nos primeiros meses do referido ano, a construção civil foi o setor que mais gerou empregos no país. Entre janeiro e maio, as mulheres lideraram as contratações, representando cerca de 60% das admissões, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) - acima da mídia feminina nos setores demais da economia.
+ 'Kò sí ewé, kò sí Òrìṣà': a vida das mulheres que catam folhas sagradas na Bahia
+ Banho de Bahia: startup transforma o dendê utilizado por baianas de acarajé em sabonetes
Siga a gente no Insta, Facebook, Bluesky e X. Envie denúncia ou sugestão de pauta para (71) 99940 – 7440 (WhatsApp).