‘Kò sí ewé, kò sí Òrìṣà’: a vida das mulheres que catam folhas sagradas na Bahia

Conheça a rotina de um grupo de mulheres catadoras de folhas de Simões Filho, que movimenta a “economia do sagrado”

Por Bruna Castelo Branco.

A pedido da madrinha, naquele dia, a menina acordou de madrugada, entre 2h e 3h da manhã. Saiu da cama, vestiu uma calça, uma bota e, junto dela, andou até um ponto de ônibus. Ainda era escuro quando elas pegaram o transporte, que saía de Simões Filho e ia para outra cidade da Região Metropolitana de Salvador, da qual ela já nem lembra mais. Dali em diante, ela passou a repetir essa romaria dia após dia, pelo menos três vezes por semana. Quando começou, a menina tinha 12 anos. Hoje, Rosimeire dos Reis, mais conhecida como Meire, tem 49, e trabalha como catadora de folhas sagradas há quase quatro décadas. A madrinha de Meire, Vanda, que já chegou aos 67, continua no ofício.

Há mais de 1.730 terreiros registrados em Salvador. | Foto: Anna Caroline Santiago/Aratu On

Muitas mulheres do bairro do Oiteiro, em Simões Filho, também são catadoras. É como se fosse um trabalho hereditário, passado de geração para geração – mas, nunca por escolha, e sim necessidade. “Não tinha outro meio, né? Não tinha outro recurso para sobreviver. Era a única coisa. Aqui no bairro, emprego é muito difícil. Então, estou até hoje”, contou Meire.

O trabalho funciona assim: as mulheres acordam bem cedo e saem, pelo menos em duplas, para catar folhas no mato. Como a oferta já não é mais tão boa em Simões Filho, elas viajam para outras cidades, como Dias D’Ávila, Camaçari, Candeias e Mata de São João. Passam o dia inteiro lá, embrenhadas mata adentro, rodeadas de verde, enchendo sacos e mais sacos de folha. Se der, tiram uma marmita da mochila e almoçam ali mesmo, entre uma pausa e outra.

Associação dos Moradores do Oiteiro. | Foto: Emerson Kilendo/Divulgação

No fim do dia, pegam o ônibus de volta carregadas, muitas vezes sem ajuda, de sacos que pesam mais de 10 quilos cada, e ainda ganham, de quebra, comentários maldosos, rejeição e olhares de reprovação de passageiros que se incomodam com o cheiro das ervas e com o fim que elas tomarão – rituais de religiões de matriz africana e, às vezes, matéria-prima de garrafadas ou xaropes. Mesmo se adeptas de outras religiões, ou até de nenhuma, as mulheres acabam sendo vítimas de intolerância, só por viajarem com as folhas no transporte público. Há casos em que, devido ao aroma da colheita, até os motoristas se recusam a levar, ou então cobram um valor extra para a bagagem.

“É muito difícil. Tem vezes, quando chove, que os sacos ficam muito pesados. Aí, a gente tem que pegar aquele peso de quase 50 kg. Tem vezes que a gente pede às pessoas para ajudarem a gente. Os homens, quando veem a gente passando na rua, falam: ‘Meninas, vocês são malucas! O que é isso?’. E eles não pegam aquele peso que a gente, que é mulher, pega. É um trabalho muito dificultoso, sabe?”, detalhou Meire.

Manuel Santos é proprietário da 'Casa das Folhas', mas não segue religiões de matriz africana. | Foto: Anna Caroline Santiago/Aratu On

Nos dias em que não estão na mata, as catadoras ficam na Feira de São Joaquim, em Salvador, vendendo toda a produção para os feirantes que revendem as folhas, por preços bem mais altos, para o consumidor final. Falando em números: as mulheres, depois de muita negociação, conseguiram estipular o preço fixo de R$ 1 por porção para os comerciantes, que revendem direto para o cliente por valores de R$ 2 a R$ 5. Muitas vezes, os ramos, entregues bem cheios pelas catadoras, são redivididos. Ou seja: o que custou R$ 1, pode chegar a valer R$ 10.

Nas épocas de chuva, o faturamento das profissionais é ainda menor, porque, como explica Meire, as folhas já chegam na feira “mais fracas”: “A folha, quando você tira, ela já perde a força na natureza, porque você cortou. Quando molha com água de chuva, ela fica mais fraca ainda”. Mesmo as mais difíceis de catar, são vendidas pelo mesmo valor. 

Meire dos Reis se tornou catadora aos 12 anos. | Foto: Emerson Kilendo/Divulgação

Para chegar a São Joaquim, elas pegavam um ônibus da empresa Safira Transporte e Turismo, disponibilizado pela Prefeitura de Simões Filho especialmente para as catadoras. O problema é que, há cerca de um mês, esse transporte foi cancelado, ou seja: a viagem se tornou mais um gasto com o qual as profissionais precisam arcar para conseguirem vender as mercadorias.

Agora, para levar as ervas, as mulheres gastam cerca de R$ 70, contando com um motorista de van, que leva os sacos de folha para a rodoviária de Simões Filho de madrugada; passagens de ida e volta de ônibus; e carros por aplicativo. Para ir à rodoviária da cidade, as mulheres percorrem, a pé, cerca de 3,5 km: o grupo sai do Oiteiro por volta de 2h30, caminha no acostamento da BA-093 e chega no terminal quase na hora de pegar o transporte para Salvador, que sai às 3h30.

Sem o ônibus, muitas das catadoras, que costumavam ir à Feira de São Joaquim até três vezes por semana, precisaram reduzir as viagens para não ficarem no prejuízo – sem contar os riscos que um grupo de mulheres corre ao andar de madrugada em uma rodovia.

Aratu On entrou em contato com a Prefeitura de Simões Filho e com a Safira Transporte e Turismo para apurar mais informações sobre a suspensão do serviço contratado, mas, até a publicação desta reportagem, não recebeu resposta.

Um dos filhos de Meire trabalha em uma dessas lojas de folhas sagradas há 13 anos, e ela afirma: o sonho de toda catadora, além de não deixar que as filhas sigam na mesma profissão, é ter a própria barraca na Feira de São Joaquim. Meire já chegou bem perto de ter uma, que seria passada pelo antigo dono por R$ 35 mil – mas, acabou que outro interessado chegou na frente com dinheiro na mão e uma oferta melhor, e fechou negócio. “Aí, não deu certo, não. Mas, é o meu sonho. A gente conseguiria vender as folhas por um preço melhor”, lamentou.

José Carlos, que está na Feira desde 1980, negocia direto com as catadoras. | Foto: Anna Caroline Santiago/Aratu On

Jornada das Folhas – o documentário

O jornalista e gestor de projetos Tailson Souza, também morador de Simões Filho, cresceu observando, mesmo que de longe, aquele grupo de mulheres que saía de casa cedo, com roupas pesadas e mãos vazias, e voltava já no fim do dia, levando sacos gigantescos cheios de folhas. O tempo passou, mas a vontade de saber um pouco mais sobre elas continuou igual.

Foi na faculdade, durante uma aula da diretora audiovisual e professora Ravena Maia, que Tailson, que hoje é membro da Associação Beneficente Nàná Ìyálóòde Ayé (ABENAIYA), voltou a pensar no assunto. “Eu moro na Santa Rosa, em Simões Filho, e as catadoras moram na mesma região, no Oiteiro. Então, eu sempre vi essas catadoras de folhas subindo e descendo, e as crianças acompanhando esse processo de colheita. Em 2016, depois que entrei na faculdade, conversei com Ravena Maia, e surgiu a ideia de fazer o documentário”, contou ele.

Comunidade do Oiteiro, em Simões Filho. | Foto: Emerson Kilendo/Divulgação

E o projeto, que ganhou o nome de “Jornada das Folhas”, saiu do papel após ser contemplado nos Editais da Paulo Gustavo Bahia, com apoio Secretaria de Cultura, via Lei Paulo Gustavo, direcionada pelo Ministério da Cultura. Com uma equipe de sete pessoas, eles fizeram acontecer.

Quando pensou em usar os acessos e oportunidades que tinha para contar as histórias das catadoras, que estão entre as principais responsáveis por manter a “economia do sagrado” das religiões de matriz africana viva, o que Tailson queria, além de apresentá-las ao mundo, era apoiá-las nessa luta constante por reconhecimento – tanto pessoal, quanto financeiro.

“Há mais de 20, 30 anos, elas fazem a colheita das folhas, e alimentam o mercado da Feira de São Joaquim e, algumas, da Sete Portas. O sonho seria que elas pudessem criar algo mais sólido, para precificar o trabalho delas, e não serem mais forçadas a seguir o preço que é submetido a elas na feira. Nas entrevistas, muitas contaram que, às vezes, têm medo de aumentar o preço, porque pode ter alguém que venda mais barato, e elas podem acabar perdendo a mercadoria. E, na verdade, os comerciantes precisam delas. Muitas delas não têm noção de que são necessárias para que esse mercado sobreviva”, ressaltou o jornalista.

E, na Bahia, um dos estados brasileiros com maior número de praticantes de candomblé, esse mercado é enorme. Em Salvador, essa força fica ainda mais evidente: segundo a Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA), só na capital há mais de 1.730 terreiros registrados.

De acordo com o Censo de 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta sexta-feira (6), 123,3 mil baianos são adeptos de religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, por exemplo, o que representa um crescimento de 187% em relação ao Censo de 2010. No entanto, devido ao crescimento de denúncias de intolerância religiosa no estado, esses números podem ser menores do que a realidade. Segundo dados da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), só em 2024 foram registrados 500 casos de racismo e 350 de intolerância religiosa na Bahia. Isso representa um aumento de 11% e 9%, respectivamente, na violência contra pessoas negras ou de religiões afro-brasileiras.

Durante as gravações de “Jornada das Folhas”, após semanas de conversas e confabulações, como relata Ravena Maia, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), o grupo começou a cogitar a possibilidade de criar a cooperativa das catadoras de folhas – ideia que, por enquanto, segue no papel.

Tailson Souza, Carla Pita, Ravena Maia, Emerson Kilendo. | Foto: Israel Lima

Outro objetivo de muitas dessas trabalhadoras, especialmente as mais velhas, que estão na lida há décadas, é se aposentar. Elas se inspiram nas marisqueiras, que, depois de muita briga, conquistaram o direito à Seguridade Social, com auxílio-doença e salário-maternidade, além de Previdência, e foram reconhecidas como Trabalhadoras Rurais ou Pescadoras Artesanais.

“Estamos pensando, juntos, em estratégias que possam fortalecer o ofício delas, até porque é algo que elas têm prazer em fazer, por estarem em contato com a natureza e terem autonomia. Elas já sabem que fazem um trabalho importante, mas a sociedade ainda não tem essa visão”, diz Ravena. Com a produção do filme, que começou a ser gravado em 2024, veio também um resgate de autoestima, como disse Meire, que, no início, até se perguntava: “O eles querem com a gente?”.

Ravena explica: “Muitas vezes, as pessoas que chegavam até elas para fazer qualquer tipo de pesquisa, qualquer tipo de entrevista, era algo muito voltado para saber para que serve cada folha, mas não necessariamente interessadas nelas, no trabalho delas em si, no que elas podem estar impactando na nossa cultura. E a nossa ideia com esse projeto é mostrar o valor do ofício dessas mulheres”.

O documentário foi exibido pela primeira vez no dia 31 de maio, na Associação dos Moradores do Oiteiro. | Foto: Emerson Kilendo/Divulgação

Tanto que elas, vizinhos e famílias foram os primeiros a assistir ao documentário, que estreou no dia 31 de maio, na Associação dos Moradores do Oiteiro - Casa de Apoio Manoel Ferreira da Silva. Em Salvador, o filme será exibido pela primeira vez no dia 10 de junho, às 18h, em sessão gratuita na Sala Walter da Silveira, nos Barris. É como Meire diz: “Agora, vão saber como é o nosso rosto e o trabalho que dá”. Confira o trailer:

Sem folha, não há orixá

Marivalda dos Santos, conhecida como Diu, tem 36 anos e cata folhas desde os 10. Nesse período, já foi funcionária de barracas de mercadorias religiosas diversas vezes, mas sempre acabava voltando para o campo. Começou como ajudante da mãe, que já é falecida, e nunca mais parou, mesmo com o cansaço. “Cansativo é pouco! Minha mãe precisou se afastar porque caiu doente, e era só eu e ela dentro de casa. O trabalho dela ficou para mim. Mas, eu gosto do meu trabalho. As meninas falam que não, que é muito cansativo, mas tudo é costume, né?”.

De acordo com o Censo de 2010, 47.069 baianos se declararam adeptos de religiões de matriz africana. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On

E, quando Diu fala em cansaço, ele vai além da exaustão física: de longe, a mata pode até parecer desabitada, mas ela esconde bicho e, muitas vezes, gente. “Tem muita serpente. Já fui picada por uma cobra”, relembrou. Meire, que faz as colheitas acompanhada de uma sobrinha, tem uma história parecida. “Cobra é quase sempre e, nesse tempo de inverno, a gente vê mais. A gente só vai de bota, sapato e capote. Eu só cato de luva também. Tem uma base de uns três meses que estávamos eu e minha sobrinha e a cobra mordeu a mão dela. Ela não gosta de luva”.

Nesses casos, as trabalhadoras já sabem o que fazer: correm para fora da mata, pedem socorro e vão para uma unidade de saúde para receber o soro antiofídico, antídoto usado para neutralizar veneno. Ficou tudo bem com a ajudante de Meire, mas, outra sobrinha, irmã da primeira, já passou cerca de dois meses internada por picada de cobra. “A mãe dela também já foi mordida. Todo mundo vive disso”, acrescentou.

Marivalda dos Santos, conhecida como Diu, tem 36 anos e cata folhas desde os 10. | Foto: Ravena Maia/Divulgação

Animais peçonhentos assustam, mas o que leva as catadoras a nunca saírem sozinhas é outra coisa: a violência. Sobre isso, Diu foi enfática: “Vou sozinha nada! Tenho medo. De bicho, não tenho medo, não. É mais de gente”. Em todas essas décadas de trabalho, Meire já esbarrou com homens armados que atuam na região inúmeras vezes, mas, por seguir uma recomendação básica, nunca teve problemas. “Disseram: ‘Só não traga homem’. Aí, a gente só vai entre mulheres”. E esse é um dos motivos, aliás, que torna esse ofício majoritariamente feminino.

Também por isso, a equipe de produção de “Jornada das Folhas” não pôde entrar mata adentro para acompanhar as catadoras, como comenta Emerson Kilendo, diretor de fotografia e produtor executivo do documentário. “A gente iria junto com elas. Isso era um desejo meu, mas, elas orientaram desde o início: ‘Não vamos para muito longe’. Então, a gente evitou”, relatou.

A feirante Adriana dos Santos trabalha em São Joaquim há 27 anos. | Foto: Anna Caroline Santiago/Aratu On

É uma mistura de mão de obra desvalorizada, exaustão física e mental, riscos à integridade física e falta de reconhecimento e direitos que faz com que as catadoras profissionais afastem, sempre que podem, as filhas desse trabalho. Aos sábados, uma das filhas de Meire, Renata, de 22 anos, a acompanha no mato, mas, não passa disso: o desejo da mãe é que a jovem estude e encontre o próprio caminho. “É muito risco, muito peso, muita dificuldade. É um trabalho digno, mas, muito sacrificado. Se tiver a oportunidade de tentar outra coisa, é melhor. Só não quero deixar o legado para as minhas filhas”.

É que, por mais que haja mercado, especialmente em Salvador, do jeito que está, para as catadoras, não compensa.

Só em 2024, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Cultura (Secult) de Salvador, os turistas que tiveram como principal motivação o Turismo Religioso gastaram cerca de R$ 2.411,43 na viagem, com gasto médio diário individual em torno de R$ 627,00. Em 2025, o total estimado de turistas neste segmento, entre janeiro e abril, ficou em torno de 33.970 pessoas, e a receita turística estimada chega a R$ 85,3 milhões.

Segundo dados da Sepromi, em 2024 foram registrados 350 casos de intolerância religiosa na Bahia. | Foto: Anna Caroline Santiago/Aratu On

Este ano, segundo informações divulgadas pela Empresa Salvador Turismo (Saltur), a Festa de Iemanjá, reconhecida como patrimônio imaterial da capital baiana, recebeu mais de 1 milhão de pessoas, entre fiéis e turistas, superando o público de 2024. O investimento do Governo do Estado no evento, em 2025, foi de R$ 1,8 milhão.

Sem catadoras, não há folhas. E, como diz um provérbio da cultura iorubá, “sem folha, não há orixá” (Kò sí ewé, kò sí Òrìṣà), pois elas são as condutoras do “axé”, a força vital que move o universo. Sem orixá, não há sincretismo religioso, Festa de Iemanjá, Festa do Bonfim, Festa de Santa Bárbara/Iansã, Caruru de Cosme, Lavagem de Itapuã, Festa da Boa Morte, baiana de acarajé, acarajé, e por aí vai – e vai longe. E, sem tudo isso, ainda há Bahia?

Um provérbio da cultura iorubá diz que “sem folha, não há orixá” (Kò sí ewé, kò sí Òrìṣà). | Foto: Anna Caroline Santiago/Aratu On

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