Maria do Amparo Xavier: a história da primeira mestre de obras da Bahia
Maria do Amparo Xavier enfrentou desafios e se tornou a primeira mulher mestre de obras do estado da Bahia
Por Juana Castro.
Quem vê Maria do Amparo Xavier, hoje, aos 70 anos, com um currículo extenso e atuando como palestrante, não imagina o caminho que ela percorreu. Deixou para trás a extrema pobreza, superou obstáculos e se tornou a primeira mulher mestre de obras da Bahia.
Em entrevista ao Aratu On, Dona Maria falou sobre infância, adolescência, trabalhos, cursos, projetos e da felicidade ao conseguir dar mais dignidade à família.
Infância e chegada de D. Maria a Salvador
Aos 14 anos, Maria já era o braço direito da mãe, ajudando com as tarefas e na criação de três irmãos. Fazia carvão, farinha e pescava em Camassandi, na zona rural de Jaguaripe. “Era praticamente trabalho escravo, porque trabalhávamos para os fazendeiros em troca de carne, feijão…”, lembrou. Entendeu, assim, que não poderia continuar daquele jeito.
“Precisava cuidar de minha mãe, porque ela sofria e eu também. Então, um dia, peguei minha certidão [de nascimento], botei dentro de um saquinho, e fui para uma variante [rota alternativa de estrada]. Passou um caminhão de banana e pedi carona. O rapaz insistiu que não podia, porque eu era criança, mas eu chorei, implorei, e ele deixou”, contou.
O homem se chamava Vilobaldo, e fez apenas uma exigência em troca da carona: que Maria o ajudasse a descarregar o caminhão quando chegassem à feira de São Joaquim, em Salvador. “Eu, acostumada na roça a fazer tudo, pegar peso… não tinha problema, né?”, lembra.
Mas ao chegar, o susto. A capital baiana era muito diferente do que Maria estava acostumada. “Fiquei impactada com as luzes, com tanto prédio, com tanta coisa. Nós morávamos em casa de palha, e eu nunca tinha visto uma casa construída, fechada. ‘Como é que o povo vive numa casa dessa toda fechada?’”, questionou-se, à época.
Quando terminaram de descarregar o caminhão, Vilobaldo perguntou à menina para onde ela iria, ao que respondeu: “Agora eu vou para onde o senhor me levar”. “Olha só que liberdade, que ousadia”, relembrou, aos risos.
Mesmo preocupado, o motorista decidiu levá-la para a casa onde morava com a esposa e um casal de filhos, no Santo Antônio Além do Carmo, e contou a história daquela adolescente. “Ela me abraçou e me recebeu muito bem, mas eu tinha medo, porque era tudo fechado, quarto, não sei o quê… Ficava apavorada, olhando para cima. Hoje eu sei que era laje, mas achava que ia cair em cima de mim”, contou.
Itens como fogão, também, ela nunca tinha visto, e achava que a casa pegaria fogo a qualquer momento. “Era uma coisa inocente, mesmo, de uma criança que veio da roça”, explicou.
Após as primeiras impressões, Maria pediu a Vilobaldo, “pelo amor de Deus”, que a levasse onde se construíam casas, onde “fechava tudo isso”. Ele explicou que “isso” era “construção civil”, mas que mulher não trabalhava nela, “muito menos criança”.
“Insisti e… não é que no outro dia ele me levou?”. Na época, estava sendo construído o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados), na Avenida Luís Viana Filho, a Paralela. Trabalhavam lá apenas homens, mas a menina não se intimidou: “Quero trabalhar aqui”.
Disseram que não podia, que as únicas mulheres no local eram uma que fazia café e uma arquiteta. “Mas eu preciso ficar aqui, porque preciso sustentar minha mãe. Não vou voltar mais pra roça”, disse Maria.
Orientada pelo “moço da portaria”, ela conseguiu falar com o engenheiro responsável pela obra. Correu, na verdade, e pegou na mão do rapaz, que perguntou de onde ela tinha surgido. Ela disparou: “Meu nome é Maria do Amparo, eu vim da roça, e quero aprender a construir. Quero que o senhor me ensine como faço isso aqui. Preciso trabalhar, comprar alimento pra minha mãe e trazer minha mãe pra morar comigo”.
O engenheiro ouviu, mas disse que iria almoçar e, na volta, conversava com Maria. Nesse tempo, conversando com o rapaz da portaria, ela disse que fazia carvão na roça, cortava lenha. “Era miudinha, mas tinha força”, afirmou.
Quando o responsável pela obra voltou, ela reforçou que “dava conta” do trabalho, até que ele cedeu. “Vamos fazer assim: aqui não podemos ter um prego no chão, então você vai varrer a obra. Mas quando chegar visita, fiscalização, você tem que se esconder. Ninguém pode saber que você está aqui”.
O que veio nesse momento foi um ajuste. O engenheiro informou a Vilobaldo que ele precisaria levá-la e buscá-la no serviço todos os dias. Como ele viajava a trabalho, pediu ao filho que o ajudasse na missão, quando não pudesse. “Praticamente me adotou”, falou Maria, referindo-se ao caminhoneiro.
Do varrer a obra, ela foi conhecendo os pedreiros e os trabalhadores daquela construção. Boa de conversa, conseguiu que um dos profissionais a ensinasse a levantar uma parede. Ele usava a hora do almoço para mostrar, escondido, como montar os blocos. E então, mesmo enquanto varria, ela ficava perto dos pedreiros para aprender.
“Com seis meses, minha filha, eu já sabia levantar uma parede, bater um prumo e rebocar. Aí teve um teste e esse pedreiro me disse assim: ‘Meu Deus, vou me desempregar, mas vou dizer ao engenheiro Valdir que você já está uma pedreira, menina’”. “Então diga”, foi a resposta dela.
“Eu era rápida, menina! Montava numa rapidez! Aí levantei essa parede. Me lembro como hoje. Ele pediu que levantasse 60 cm. Fiz numa rapidez, muito perfeita, bem nivelada, no lugar…”, contou. O engenheiro foi chegando e indagou: “Ô, menina Maria, o que você está fazendo com esses tijolos?”, ao que ela respondeu:
“Já sei levantar parede, doutor!”
Surpreso, o engenheiro levou a situação para ser discutida internamente. No outro dia, a uma semana de Maria completar 15 anos, ele a chamou e informou: “A partir de agora, você vai receber o salário como pedreira”.
Maria pedreira
Após uns seis meses ganhando dinheiro, Maria alugou um quartinho no Curuzu e buscou a família. “Todo mundo dormia na cama e eu dormia embaixo, com o pescoço pro lado de fora. Era um sofrimento, mas eu estava feliz porque estava com minha mãe e meus irmãos, que foram estudar”, contou.
A cada envelope que recebia, entregava à mãe, que fazia a feira e a comida. “Eu cuidava de minha mãe e tinha prazer em saber que, ao chegar em casa, ela tinha feito a comida. Minha mãe não estava passando fome, não estava com a mão cortada de tiririca… E isso, pra mim, era uma bênção de Deus. Uma história que tenho muito respeito e me emociona”, frisou.
A empresa na qual começou foi a Andrade Mendonça. Por lá, ficou seis anos e atuou ainda como carpinteira, armadora e eletricista predial. Depois foi para a OAS e para a Odebrecht. “Passei por todas as obras das grandes construtoras do estado da Bahia”, disse ao Aratu On.
Maria em busca da evolução
Maria do Amparo evoluiu no mercado de trabalho e tornou-se especialista em concreto. "A construção civil é uma faculdade prática, e você precisa da teoria”, afirmou. Quando se desenvolveu mais e já era encarregada de carpinteiro, iniciou o curso de Edificações. Curiosa, também ficava perto dos engenheiros para entender melhor os projetos. “Tinha que conhecer! Eu aprendi”, relatou.
Saía da obra cochilando, porque acordava muito cedo para ir à escola. Mas persistia – mesmo quando duvidavam.
"Pra você ser mestre é preciso ser profissional qualificada, encarregada e ter conhecimento suficiente", explicou. Aos 20 anos, foi reconhecida, enfim, como mestre de obras. "Na carteira!", destacou.
Dona Maria deixou sua marca em obras como o entorno do Dique do Tororó, da qual foi encarregada-geral; a Praça 2 de Julho, no Campo Grande; o segundo piso do Shopping Iguatemi; a construção da Braskem (no Polo Petroquímico de Camaçari); as reformas no Pelourinho e as escavações do metrô.
"Quando passo pelo túnel do metrô com minha neta, digo: 'Tá vendo? Tudo isso aqui teve a mão e o caminhar e a mão de sua avó'", celebrou. E ressaltou: "Para mim, todas as obras foram importantes, porque foram combustíveis para cuidar de minha mãe, meus irmãos e minha filha".
"Hoje, só agradeço a Deus e digo às mulheres: não desistam de seus sonhos", concluiu a atual secretária da Mulher da Força Sindical e do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção de Estradas, Pavimentação, Terraplenagem e Montagem Industrial (Sintepav/Bahia).
Maria como inspiração do 'Marias na Construção'
A história de Maria do Amparo Xavier foi a inspiração do “Marias na Construção”, projeto que capacita mulheres para trabalharem na construção civil. Trata-se de uma parceria da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ) com o Senai.
O projeto ganhou forma em 2019, quando D. Maria, já condecorada com a medalha Maria Quitéria por suas realizações, encontrou-se com a então secretária da SPMJ, Rogéria Santos, e pediu ajuda: “Preciso de alguma coisa para colocar as mulheres na construção civil”.
Cerca de duas semanas depois, a titular da pasta sugeriu levar o exemplo de Dona Maria adiante por meio do projeto de capacitação. "É a continuidade da minha história", comemorou Maria do Amparo Xavier.
+ Primeira mestre de obras da Bahia, Maria Xavier anuncia 1,5 mil vagas do 'Marias na Construção'
Siga a gente no Insta, Facebook, Bluesky e X. Envie denúncia ou sugestão de pauta para (71) 99940 – 7440 (WhatsApp).