Entre tradição e modismo: 'Ovojé' reacende debate sobre o acarajé
Baiana Elaine Assis, associada à Abam, explica por que a versão é um desrespeito a tradição e ao patrimônio
Com a chegada da Páscoa, as docerias se reinventam, e empreendedores criam versões inusitadas do tradicional ovo de chocolate. Nos últimos anos, além dos ovos de colher recheados, surgiram opções salgadas – como o polêmico ovo de acarajé.
Junto a ele, apareceram também ovos de sushi, empada e coxinha, mas o acarajé carrega um diferencial: é reconhecido como Patrimônio Cultural da Bahia, um símbolo protegido, especialmente pelas religiões de matriz africana, que não pode ser modificado.
Essa não é a primeira vez que o acarajé é ressignificado em formatos não tradicionais. Em 2023, o "Acarajé Rosa", criado durante a promoção do live-action do filme da "Barbie", gerou indignação na Associação Nacional das Baianas de Acarajé (Abam), que repudiou a mudança do prato.
Para entender a dimensão do debate, o Aratu On conversou com Elaine Assis, 43 anos, filha de Dinha, dona de um dos tabuleiros mais famosos de Salvador, no Rio Vermelho. Elaine que é associada a Abam, defende que, embora todos tenham o direito de empreender, a tradição não deve ser alterada por modismos.
“O acarajé é uma iguaria da nossa cultura afro-baiana, oriunda da culinária de matriz africana. Não pode ser simplesmente modificado por tendências mercadológicas”, afirma.
Por coincidência — ou não —, a criadora do ovo de acarajé e do polêmico acarajé rosa seria a mesma pessoa, embora a "tendência" já tenha se espalhado por diversos pontos da cidade. Conhecida como Drica, ela vende acarajé e abará há 15 anos.
Na época em que o bolinho rosa gerou controvérsia, e Drica defendeu a criação afirmando que a cor não alterava o sabor e que a iniciativa era uma forma de garantir seu sustento, classificando as críticas como "falta de empatia". A reportagem tentou contato com Drica, mas não obteve retorno.
Feito com massa de feijão-fradinho, cebola e frito em azeite de dendê, o acarajé tem raízes no iorubá: "akará" significa "bola de fogo", e "jé", "comer". Em 2002, a Lei nº 6.138 oficializou o prato como Patrimônio Cultural de Salvador, sancionada pelo então prefeito Antonio Imbassahy, reforçando sua importância histórica e afrodescendente.
Em 2023, o Rio de Janeiro também o declarou patrimônio carioca – decisão que gerou controvérsia nas redes sociais, onde baianos questionaram: "Como um símbolo da Bahia virou carioca?"
Mas a verdade é que o acarajé não é nem baiano, nem carioca: é africano. Trazido ao Brasil por pessoas escravizadas, consolidou-se no estado mais negro do país, a Bahia, tornando-se fonte de renda para muitas famílias. Elaine usa sua própria história para expressar sua indignação com as releituras, como a do ovo de Páscoa:
“Sou totalmente contra qualquer apropriação de uma iguaria que me deu condições de viver com dignidade. Isso reflete pessoas que querem se aproveitar da importância do acarajé para lucrar”, critica.
Para ela, o acarajé vai além de um simples bolinho de rua. Como representante da quarta geração do Acarajé da Dinha, Elaine ressalta que o ofício foi herdado por meio da ancestralidade e deve ser preservado: “Não se altera o modo de preparo, muito menos sua história”.
Ela ainda faz um apelo: mesmo baianas que não seguem o candomblé devem respeitar as características originais do prato. “Precisamos entender que o acarajé não é apenas comida – é identidade, resistência e memória”, finaliza.
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