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60 anos do Golpe: professoras e dançarinas compartilham memórias da resistência à Ditadura Militar

Professoras da Escola de Dança da Ufba, Carmen Paternostro Schaffner e Dulce Aquino relatam os horrores da Ditadura e os episódios em que viveram em meio aos 21 anos do regime

Por Lucas Pereira

60 anos do Golpe: professoras e dançarinas compartilham memórias da resistência à Ditadura MilitarCréditos da foto: Aristides Alves/Edgard Digital Ufba
Ao perguntar para algum jovem que só ouviu falar em Ditadura Militar no Brasil através da história, a resposta mais comum parece com a do irmão deste repórter, o estudante Ruan Pereira, de 18 anos: “Foi um período muito complicado, onde muita gente morreu, sumiu, porque era contra os militares”. Para quem vivenciou os 21 anos do período, a exemplo da ex-professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia e dançarina, Carmen Paternostro Schaffner, a sintetização desse momento histórico é:
“O que fica de herança é o nunca mais! Por tudo que vivi, de pessoas minhas que sofreram, que desapareceram, sumiram. Foi um período tão difícil, do tipo ‘cala boca ou calabouço’, nenhuma juventude merece um AI-5, nenhuma juventude merece passar por uma ditadura”
https://youtu.be/7IeGKcQnRro
No dia 1º de abril, completou-se 60 anos da instauração da Ditadura Militar no Brasil, e muito se lembra das prisões e torturas daqueles que discordavam do regime implementado, a exemplo do jornalista Emiliano José. Ou mesmo de todos os mortos e desaparecidos que deixaram apenas a lembrança e saudade para os seus familiares e amigos, como a ativista Diva Santana, que perdeu a irmã e o cunhado na Guerrilha do Araguaia.
Mas também há aqueles que, mesmo não se envolvendo diretamente no combate ao militarismo verde-amarelo, resistiram como podiam, ajudando perseguidos pelo regime, lutando contra a censura nas artes ou nadando contra as implementações na educação. É nesse contexto que Carmen e sua colega, a professora Dulce Aquino, que foi diretora da Escola de Dança da Ufba durante a Ditadura, se enquadram. As duas foram entrevistadas para a série de matérias especiais do Aratu On e contaram como as classes estudantis e artísticas resistiram em meio à militarização social.
"Eu não fui presa, não fui torturada, mas eu sofri muito com meus colegas, dei abrigo a alguns colegas na minha casa, lutei pela educação e pela arte como pude. Muita gente passou na invisibilidade, na resistência. Dentro disso é que eu me coloco!", diz Dulce. 
[caption id="attachment_314413" align="aligncenter" width="655"] Dulce Aquino | Foto: Lucas Pereira[/caption]

PRÉ-DITADURA E UNIVERSIDADE
Atualmente com 79 anos, Dulce lembra como era a universidade durante sua graduação, no começo da década de 1960, antes da instauração do Regime. Integrante do movimento estudantil, a professora ainda tem memórias da efervescência e expectativa iniciadas no governo João Goulart, o último presidente democrático antes da ditadura.
“Foi terrível o que aconteceu. [Antes] foram os anos mais belos da minha vida, dos 14 aos 18, na exuberância da dança, dentro de uma utopia de luta, no movimento estudantil. Aquela expectativa das mudanças, das reformas de base. E, de repente, a ditadura foi algo que castrou toda uma juventude, todos os sonhos que tínhamos”.
[caption id="attachment_314150" align="aligncenter" width="701"] Dulce Aquino, a segunda na fila, da esquerda para a direita. Foto: Vica Portela[/caption]
Quando o golpe veio, Dulce tinha 18 anos; aos 20, foi nomeada diretora da faculdade da dança, concentrando sua luta, nos anos que se seguiram, em manter a qualidade nos cursos de arte da instituição. Mais nova, Carmen entrou no curso de dança em 1964, aos 16 anos, e recorda um encantamento com o ambiente acadêmico, entretanto, sem muita participação política.
“Esses primeiros contatos meus foram assim, sem muita consciência do que estava acontecendo. A Escola de Dança tinha um diretório acadêmico muito ativo, mas eu não participava ainda, porque era muito jovem”, relembra.
Jovens e iniciando suas trajetórias no mundo da arte, especificamente, na dança, tanto Dulce, quanto Carmen, foram lutaram contra incertezas e medos a partir de 1º de abril de 1964, mas isto não as impediu de resistir às mudanças que viriam a seguir.
RESISTÊNCIA EM FORMA DE AJUDA
A Ditadura Militar Brasileira não foi uniforme e homogênea ao longo de seus 21 anos, sendo dividida em fases, muito delimitadas também pelo perfil de cada presidente. Nesse primeiro momento, entre 1964 e 1968, os militares tomaram o comando do país para si, revogando decretos do governo anterior, nomeando ministros, marcando presença nas ruas.
O primeiro Ato Institucional, que legitimou o processo, foi assinado em 9 de abril, criando o “Comando Supremo da Revolução”, tendo três ministros militares com grande poder. A partir disso, começaram as repressões e perseguições a civis, intelectuais e opositores. O então presidente do país, Humberto Castelo Branco, assumiu o cargo ao final do mês, marcando a primeira fase ditatorial, uma espécie de aquecimento para os anos de chumbo que se iniciaram no final de 1968, com o Ato Institucional nº 5.
[caption id="attachment_314149" align="aligncenter" width="701"] Reprodução/Brasil de Fato[/caption]
Quando as perseguições e prisões começaram, Dulce contou que passou a abrigar alguns colegas e conhecidos no apartamento que morava com a mãe, no Politeama, em Salvador. Dentre eles, José Carlos Capinan e Luís Lamego, que ficaram alguns dias no local e ainda precisaram de bastante ajuda para conseguir sair da Bahia, rumo ao sudeste.
“Nós conseguimos ajuda de um professor da Ufba, que pediu para um amigo seu, um alemão, que havia lutado na 2ª Guerra Mundial, que sabia como era o que a gente estava vivendo, para levar os meninos. Ele era quase da mesma idade de minha mãe e possuía um jipe. Nós saímos daqui para Senhor do Bonfim, para que eles [Capinan, Lamego e o ator e diretor Harildo Deda] pegassem um ônibus e fugissem. A ideia era, se fossemos parados, minha mãe e o alemão seriam casados e estavam levando os filhos para uma viagem no interior. Por sorte, não houve nenhuma parada”, pontua Dulce. 

Com a morte do presidente Castelo Branco, o general Artur da Costa e Silva assume a cadeira presidencial em 1967, sob a expectativa de dar à Ditadura uma cara mais “humana”, mas não foi bem o que aconteceu. A repressão e perseguição se intensificou graças à nova constituição em vigor, resultando em um movimento de resistência ainda maior, capitaneado pelos movimentos estudantis. O ápice da supressão de direitos foi o AI-5, de dezembro de 1968,  mas, dias antes, outra medida impactou o ambiente acadêmico: a Lei Nº 5.540, conhecida como a “Reforma Universitária”.
[caption id="attachment_314146" align="aligncenter" width="702"] Castelo Branco e Costa e Silva - Foto: Portal do Planalto[/caption]
REFORMA UNIVERSITÁRIA
“A Reforma Universitária dos militares foi feita em gabinete, com bons pensadores até, no Conselho Nacional de Educação. Eles juntaram as escolas de arte em uma escola só, porque diminuía os gastos. [...] Havia um controle muito grande, e na área de artes foi feita uma mudança profunda, um desmantelamento", explica Dulce. 

De acordo com a então diretora de dança, essa mudança tinha como objetivo principal “sabotar as organizações estudantis”, tirar a força desses movimentos diretamente no seio educacional. Outro resultado dessa reforma foi a intervenção nos Diretórios Acadêmicos e Estudantis. Dulce conta que regras foram criadas para que se limitasse ou mesmo inibisse qualquer atividade política nesses espaços. “Você só poderia ser representante nos conselhos se fosse um aluno com média acima de 8, proibindo os alunos de nota mais baixa. Além disso, esses espaços viraram locais de atividade lúdica, ping-pong, dominó, jogos de tabuleiro e acolhimento. Nada acadêmico e nem político.”
[caption id="attachment_314148" align="aligncenter" width="701"] Foto: Memorial da Ditadura[/caption]
Carmen traz outra consequência causada pela reforma implementada na Ufba:
“Em um determinado momento a Ufba era grande referência, pois tinha a liberdade e o poder financeiro de ter muitos professores, muita aflição no campo artístico. Então, vinham muitos professores, maestros, músicos, dançarinos, pintores, da Europa. Então, havia muita fricção, muita troca. Com a reforma, se empobreceu muito os cursos, em todos os sentidos. Se pensou, na época, que poderia se enriquecer através dessa integração das artes, mas foi muito ruim, a gente começou a perder os professores estrangeiros, foi proibido trazer eles, por falta de verba.”

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O ‘PERIGO’ DA ARTE E A CENSURA
“Eles sabiam que a arte era perigosa, porque as escolas de artes foram acertadas. Era perigosa porque era um pensamento que eles não conheciam e pensar era algo que incomodava”, ressalta Dulce.

Durante a entrevista com Carmen, a dançarina e coreógrafa lembra de um episódio em que um agente de censura foi fiscalizar o ensaio do espetáculo “Manobras de Distração”, do diretor argentino Alberto Uri. A peça trazia diversas críticas a assuntos do momento, como a especulação imobiliária em Salvador e a própria tortura empregada pelos militares, mas ainda assim foi liberada pelo regime, muito por conta da “ignorância” dos agentes do governo.
[caption id="attachment_314414" align="aligncenter" width="647"] Carmen Paternostro | Acervo Pessoal[/caption]
“Eu sentia uma ignorância por parte dos censores. Eles iam assistir ao trabalho da gente, mas eles não sabiam nada e a gente não sabia direito o porquê que a gente estava enganando eles. Era algo absurdo. Dentro do campo da música, no teatro, como tinha a palavra, já era uma censura mais direcionada, mas, enquanto espetáculo de dança, era muito complicado”, destaca Carmen.
Na peça, ela representava uma mulher que era torturada para dar informações, mesmo sem as ter. No ensaio, para não levantar suspeitas, o texto era passado de maneira mais leve: “A crítica era que muitas pessoas que foram torturadas não sabiam de nada e falavam qualquer coisa para se livrar daquilo. Então, o texto era o mais banal possível, uma adivinhação, e ficava insinuando que estava sendo torturada. Por exemplo, ele dizia ‘joelho’ e eu puxava meu joelho; ‘nariz’, puxava o nariz e berrava o texto”.
Assim como o ambiente acadêmico, os ambientes artístico e cultural também foram bastante perseguidos pelo regime ditatorial, algo muito presente na década de 1970. Muitos cantores, compositores, poetas e dançarinos tiveram que fugir para não serem presos, e diversos espaços foram fechados. Um dos poucos resistentes em Salvador era o Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA), o Goethe-Institut, localizado no Corredor da Vitória.
“Eles achavam que o ICBA era neutro, então havia aquele respeito. Ali não podia fazer nada, era território europeu, alemão”, contou Carmen, que trabalhou por diversos anos no local. Apesar desse respeito inicial, se iniciou um processo de sabotagem ao local, com estratégias parecidas com as empregadas nas universidades, especialmente o uso de pessoal infiltrado, os “dedo-duro”.
Em uma das ocasiões, Carmen relata que foi armada uma briga falsa, feita por policiais disfarçadas, para que se manchasse a imagem do instituto. Na ocasião, o diretor Roland Schaffner, enfrentou e expulsou os baderneiros de plantão.
"Eles começaram a criar briguinhas, foram lentamente minando a imagem do Instituto, dizendo que era um lugar pernicioso, local de venda de drogas, que deveria acabar. Como não conseguiram prender ninguém politicamente, eles inventaram essa desculpa", revela a artista. Algum tempo depois, Roland acabou sendo transferido para a Índia, sendo acompanhado por Carmen, resultando em um casamento depois.
Mesmo com as dificuldades e tentativas de sufocamento, tanto Carmen, com seus espetáculos; quanto Dulce, em suas atividades e eventos acadêmicos, não deixaram que a dança se perdesse em meio à coreografia dura e quadrada da militarização.
[caption id="attachment_314529" align="aligncenter" width="617"] Grupo Intercena, criado por Carmen Paternostro | Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
A arte entre 70 e 75, quando tivemos as maiores doses de pressão, foi muito revolucionária. Foi muito desenvolvida a expressão corporal. Então, a arte sempre foi boa em dar essa rasteira e eles passavam e não entendiam o que estávamos fazendo”, definiu Dulce Aquino.
Após 60 anos, o fantasma do período militar no Brasil ainda assombra as lembranças de quem viveu e foi vítimas das violações impostas pelo regime. Emilianos, Divas, Dinaelzas, Herzogs, estudantes como Edson Luís, e tantas outras pessoas que não se sabe o paradeiro. Mas também Carmens, Dulces, Caetanos, Gils, Chicos, Ritas e muitos outros artistas trazem em sua história de vida as marcas da Ditadura e as vivências de uma luta por uma sociedade que não é perfeita, mas, que, hoje, é democrática.
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