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60 anos do Golpe: familiares de jovens baianos mortos no Araguaia ainda buscam por ossadas

Ex-presidente Jair Bolsonaro extinguiu Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995 para localizar e reconhecer vítimas da Ditadura

Por Bruna Castelo Branco

60 anos do Golpe: familiares de jovens baianos mortos no Araguaia ainda buscam por ossadasLucas Pereira/Aratu On

Em algum dia no meio de 1972, aviões do Exército incendiaram três áreas de mata fechada com napalm, uma mistura de gasolina com uma resina espessa de palmeira que, em combustão, pode chegar a 1.000 °C.


Essa arma química, banida pelas Convenções de Genebra em 1949, adere à pele, derrete os ossos e libera monóxido de carbono, matando pessoas por asfixia. Ela foi muito usada pelo Exército dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, com a intenção de desmatar as áreas em que os guerrilheiros vietnamitas se escondiam e, de quebra, aniquilá-los junto. E ela também foi usada pelas Forças Armadas Brasileiras na região do Araguaia, em 1972, com o mesmo objetivo: desmatar e matar.


Entre 1967 e 1974, 71 ativistas do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) [o PCdoB era formado por militantes dissidentes do PCB], entre eles, 10 baianos, se mudaram para a região amazônica do Brasil, entre os estados de Tocantins, Pará e Maranhão, em cidadezinhas e vilarejos banhados pelo Rio Araguaia e Rio Tocantins.


Os militantes do PCdoB se assentaram em três locais, numa extensão de 130 quilômetros. Moviam-se numa área de 6,5 mil km². | Arquivo: Commons

Em 1971, Dinaelza Santana Coqueiro, estudante de geografia da Universidade Católica de Salvador, e o marido, o estudante de economia Vandick Raidner Coqueiro, trocaram de nome e também embarcaram para o Araguaia: lá, eles deixaram de ser jovens da cidade e viraram Mariadina e João Goiano, agricultores e professores de alfabetização para adultos.


Naquela época, Dinaelza e Vandick eram classificados pelo Exército como “terroristas procurados” e, para evitar a prisão, no final de 1970, foram empurrados para o interior, para viver na clandestinidade. Diva Santana, de 79 anos, ex-conselheira da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), membro do grupo Tortura Nunca Mais – Bahia  e irmã de Dinaelza, conta que, após a emissão do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em dezembro de 1968, que proibiu reuniões políticas e institucionalizou a tortura, o casal desapareceu. A CEMDP foi extinta em 2022, pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.


“Entre 1967 e 1968, começa uma ebulição do Movimento Estudantil: um movimento pela anistia, um movimento contra as violências que a Ditadura Militar estava cometendo na sociedade, e contra a falta de liberdade. Todos foram atingidos pelo Regime Militar, e eles tinham uma grande participação no Movimento Estudantil. Com a aprovação do AI-5, eles tiveram que sair de Salvador para não serem presos ou mortos. Já tinha muita gente sendo presa, sendo torturada. E a gente, da família, não sabia para onde eles iam”, relembra Diva.


Dinaelza Santana Coqueiro, conhecida no Araguaia como "Mariadina". | Foto: Arquivo Pessoal

A última vez que a família recebeu notícia de Dinaelza foi em 1971, por meio de uma carta entregue por um primo, estudante de veterinária, para evitar os correios. Até hoje, ninguém sabe como ele recebeu essa correspondência.



Segundo estudiosos desse período, quando a pessoa ia para a clandestinidade, pelo menos uma pessoa da família era avisada, para não procurar. Como a minha mãe era uma pessoa muito sábia, muito viva, nós acreditamos que ela sabia, só que nunca disse, morreu sem falar. Em 1971, nós recebemos uma cartinha dela (Dinaelza), pedindo para a gente não se preocupar, que ela vivia bem, com pessoas simples que lembravam a família, e que estava se alimentando do que plantavam e colhiam. Ela era magrinha, e pediu à minha mãe para não se preocupar, porque ela tinha engordado tanto, que tinha ganhado o apelido de ‘barril’. Nós deduzimos que ela estava morando em algum lugar do campo”.



No livro “A Ditadura Escancarada - As ilusões armadas”, o jornalista Elio Gaspari descreve: “Aos 22 anos, a baiana 'Mariadina' [como Dinaelza ficou conhecida no Araguaia] explicara aos pais a escolha que fizera, ao lado do marido (estudante de economia): ‘Só nos resta este caminho e é com amor que vamos percorrê-lo’”.


Pirmeira página do Ato Institucional nº 5, de 1968. | Foto: Arquivo Nacional

Mas, por que o interior do Pará? Por que o Araguaia? O historiador Carlos Zacarias explica que, como um partido comunista, o plano do PCB, que deu origem ao PCdoB, era, aos poucos, e pelas vias democráticas, instalar um governo socialista no Brasil. Só que, com o AI-5, que fechou o  Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas dos estados, e caçou e prendeu políticos de partidos contrários ao regime militar, não dava mais para focar exclusivamente no comunismo — primeiro, era necessário recuperar a democracia. E, para isso, como detalha o historiador, foi preciso, pela primeira vez, pegar em armas:


“O entendimento era de que o PCB [Partido Comunista Brasileiro] não tinha sido capaz de enfrentar o golpe. Então, muitas pessoas, como Carlos Marighella, começaram a sair do PCB, porque entendiam que era preciso construir organizações armadas. Essas organizações acreditavam que o caminho para o socialismo passava por derrubar a Ditadura, que usava armas, também com armas nas mãos, mesmo que, antes de chegar ao socialismo, fosse necessário desenvolver o capitalismo”.


Para acabar com a guerrilha, as forças armadas precisaram de dois anos, três operações e cerca de 10 mil homens, incluindo paraquedistas, helicópteros, tropas de elite, bombas e armas químicas. | Foto: Imagem retirada do filme "Soldados do Araguaia" (2017)

INTERIOR


Na visão dos principais dirigentes do PCdoB naquela época, a ruína da Ditadura seria o campo. Por isso, dois anos depois do golpe de Estado, militantes da organização começaram a migrar para o meio rural, como o Araguaia, uma área grande de mata fechada e extensão de cerca de 2.500 km, de difícil acesso até hoje, lar de trabalhadores analfabetos explorados por proprietários de terra, ou seja: o local perfeito para o início de um levante popular, como indica Zacarias.



E eles foram indo aos poucos, e passaram a viver lá normalmente, integrados com a população. A população conhecia eles. E essas pessoas sobre as quais estamos falando são pessoas iguais a mim e a você. São estudantes, profissionais. Apenas tinham adotado a ideologia socialista e entenderam, naquela circunstância, que a luta pelo socialismo não podia se dar na Ditadura. Por isso, foram para lá, começaram a fazer as suas vidas lá”.



Diva que, desde o decreto da Lei da Anistia, em 1979, tem visitado a região do Araguaia, conversou com camponeses que conheceram Dinaelza e Vandick no tempo em que viveram por lá. “Mariadina” e “João Goiano”, como até hoje são lembrados, eram queridos pelos trabalhadores do campo — na verdade, como relembra Diva, ainda são. Por mais que não conseguissem entender a presença deles lá, e achassem que todos os forasteiros eram paulistas, aprenderam, nos pequenos momentos de convivência, a gostar deles:


“Dona Antônia (moradora da região) me conta que, um dia, o filho dela cortou o pé na roça, e estava sangrando muito. Aí, Mariadina chegou, mandou ele colocar o pé para cima, lavou o pé, e fez um curativo. E todo dia ela ia à casa de Dona Antônia fazer o curativo no pé do menino, que ficou bom. Então, eles queriam muito bem ao pessoal, eram muito queridos. E muitos camponeses aderiram à luta quando a repressão chegou”, relata.


Em entrevista a Elio Gaspari, um morador da região, Arlindo Pereira, mais conhecido como Arlindo Baleia, descreveu assim os militantes: “Eles eram umas boas pessoas, eu arrancava dentes com eles, extraía dentes. Eles compravam peles em minhas mãos, de caititu, que naquele tempo era vendável, tratavam bem a gente quando chegava na casa deles. Eles tinham de tudo na casa, de açúcar, sabão, sal, fumo, agulhas, brilhantina... essas coisas assim”.


Moradores do Araguaia abordados pelo Exército no período da Guerrilha. | Foto: Arquivo Nacional

O que diferenciava a rotina dos militantes que, de longe, pareciam quase nativos, a dos camponeses, era um detalhe: os guerrilheiros treinavam frequentemente para um possível combate. Os trabalhadores do campo não sabiam, mas os vizinhos vindos de fora estavam divididos em três destacamentos: A, B e C. Vandick era do B; Dinaelza, do C. Quando o Exército chegou, os ativistas abandonaram os casebres em que moravam e foram para refúgios armados na floresta.



Cada grupo foi se arrumando nesses destacamentos e, lá, eles se organizavam, faziam treinamentos de luta. Eles sabiam que seriam descobertos e, sabendo disso, tinham que resistir, e resistiram. As Forças Armados precisaram fazer três campanhas, bombas de napalm foram jogadas ali, utilizaram a mão de obra pistoleira. Fizeram um arraso lá, um arraso. Mataram todo mundo. Mataram camponeses também”, diz Diva.



A GUERRILHA


Para acabar com a guerrilha, as Forças Armadas precisaram de dois anos, três operações e cerca de 10 mil homens, incluindo paraquedistas, helicópteros, tropas de elite, bombas e armas químicas, e uma movimentação de tropas maior do que a da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutou contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial.


Do outro lado, havia 71 guerrilheiros, um revólver com 40 balas para cada um, 25 fuzis, quatro submetralhadoras, 30 espingardas e quatro carabinas de caça. Segundo o livro de Gaspari, que entrevistou sobreviventes do massacre, o arsenal dos guerrilheiros era de baixa qualidade e muitas armas emperravam. A idade média do grupo estava abaixo dos 30 anos, e 70% do efetivo era de estudantes perseguidos por participar do Movimento Estudantil.


Por mais que a guerrilha, hoje, já seja conhecida e estudada, ela foi mantida como segredo de Estado até o fim da Ditadura Militar, em 1985. Na época, as Forças Armadas diziam que a presença de helicópteros e militares na região do Araguaia fazia apenas monitoramentos de rotina, e escondia o fato de que, por seis anos, dezenas de militantes do PCdoB habitaram a região e recrutaram simpatizantes na luta contra o regime. 


É que, para a Ditadura, a situação era constrangedora: a primeira incursão das Forças Armadas, em 1972, foi um fracasso. Como não conheciam a região e não sabiam combater na mata fechada, os mais de cinco mil militares destacados para a região saíram de lá com o saldo de 13 militantes mortos e sete presos. Mateiros e guias locais não-simpatizantes dos guerrilheiros foram citados em relatórios da Aeronáutica, justificando as dificuldades das tropas na floresta: “Fazem muito barulho, deixam muitas pistas, só se deslocam em estradas e picadas e usam muito helicóptero, fazendo com que a guerrilha saiba de antemão de sua aproximação”.


Mas, um ano depois, nas segundas e terceiras investidas das Forças Armadas, a situação já foi diferente. Em algumas semanas, com a delação de moradores da região, que, ou eram ameaçados e agredidos, ou recebiam prêmios em dinheiro e terras em troca de matar ou entregar a localização dos guerrilheiros, dezenas de militantes foram mortos.


Nesse ponto, como destaca a pesquisa de Elio Gaspari, após diversos ataques, desparecimento e execuções, os ativistas se dispersaram. Muitos deles passaram meses vagando pela mata, sozinhos, feridos e doentes, comendo apenas polpa de babaçu. Com a guerrilha já desorganizada, a ação dos militares se tornou uma caça humana: em cima de helicópteros, eles diziam, em alto-falantes, que os militantes podiam se entregar. Os que confiavam, eram mortos ali mesmo, no meio do mato. O corpo de um dos guerrilheiros mais famosos, Osvaldão, assassinado por um morador do Araguaia que se aliou às Forças Armadas, foi pendurado em uma das aeronaves e exibido para quem estivesse ali para ver.


Após diversos ataques, desparecimento e execuções, os ativistas se dispersaram, e eram procurados por militares em helicópteros. | Foto: Arquivo Nacional

Dinaelza, assim como grande parte dos mortos, foi presa depois de ser denunciada por camponeses. Ela chegou a ser levada para ser interrogada pelo capitão Sebastião Rodrigues de Moura, mais conhecido como Curió, mas, mesmo após meses de tortura, não disse o que sabia sobre a guerrilha. O livro “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”, do jornalista Leonêncio Nossa, narra que, após insultar e cuspir em oficiais, incluindo o próprio Curió, a irmã de Diva foi levada para uma clareira, onde, sentada no chão, foi fuzilada. Um relatório do Ministério Público Federal (MPF) aponta que a execução da baiana aconteceu no dia 8 de abril de 1974.


Diva Santana tem um relato mais detalhado desse momento, montado a partir de conversas com camponeses e depoimentos de oficiais ao MPF:


Tudo começou na fazenda Rainha do Araguaia. Ela estava sozinha, perdida no mato. Até que ela aparece em uma casa na Rainha do Araguaia, onde ela conhecia todo mundo, e pede comida. Ela estava toda estropiada, a roupa toda lascada. Ela estava comendo só um bichinho que tem lá, tipo um sagui, cru, porque não podia fazer fogo e nem tinha como fazer fogo. Ela bebia água nas folhas e comia o que achasse na mata. E aí, o cara manda ela entrar, simula que vai fazer comida para ela e prende ela com uma corda. O nome dele é Bernardino. Tinham oferecido dinheiro para quem entregasse os ‘terroristas’. Os militares diziam que eles eram ladrões, assaltantes de banco, que tinham sido botado para fora de casa pelos pais.


Mas, aí, Bernardino foi dormir e deixou ela na sala, amarrada. Na madrugada, e Dinaelza conseguiu se soltar as cordas e fugiu. De manhã, Bernardino chega na casa do capataz, que era chamado de Zezão, não sei se é o nome dele verdadeiro mesmo. Ao Ministério Público, ele disse que saiu com os trabalhadores mata adentro e levou um cachorrinho. Procuraram e não encontraram. Aí, teve um determinado momento em que o cachorrinho parou em frente a uma árvore e ficou olhando para cima. Ela estava em cima da árvore. Aí, Bernardino mandava ela descer, e ela dizia: ‘Não vou descer, não, vocês são uns canalhas, vocês estão do lado errado’. Xingava eles. Ele, então, cortou a árvore, e ela caiu. E aí, ele levou ela presa. Depois, Curió chegou com um helicóptero e tirou ela de lá.


Semanas depois da prisão, a Dona Antônia, mãe da criança que cortou o pé e Dinaelza cuidou, que tinha uma fazenda na beira da estrada, conta que um helicóptero parou na frente da casa dela. Do helicóptero desceram Curió, mais quatro homens e Mariadina, que estava com a calça toda rasgada e os braços enfaixados. Dois desses homens entraram na casa dela e pediram para falar com o marido, que era pistoleiro. Ela só me contou isso depois que o marido já havia morrido, uma das vezes que eu fui lá. Levamos ela para contar isso ao Ministério Público também.


Depois, foram andando Curió, os quatro homens e Dinaelza. E aí, ela ouviu um tiro. Ela disse que, nessa hora, começou a tremer e se trancou no quarto com os filhos. E aí, um tempo depois, só ouviram porradas na porta. Ela foi abrir: era Curió com os homens, ele com respingos de sangue. Mandou ela fazer café, pediu água, e disse que um colega atirou na cabeça de Dinaelza, porque a arma dele engasgou. Após tomar café, eles entraram no avião e foram embora. Assim que eles saíram, Dona Antônia disse que foi até o lugar e só viu uma parte da terra encharcada de sangue”.


Assista, abaixo, ao relato de Diva sobre como a família recebeu a notícia da morte de Dinaelza e Vandick:


https://www.youtube.com/watch?v=mEQHl5iGfbw

Na época, como, anos depois, relataram diversos soldados e o próprio Curió, a ordem era matar, e não prender. Documentos encontrados anos depois em arquivos da Câmara dos Deputados mostram ordens detalhadas de oficiais da Marinha do Brasil, um deles, o Comandante-geral do Corpo de Fuzileiros Navais, Edmundo Drummond Bittencourt, que ordenava que os guerrilheiros capturados foram “eliminados”.


Não era de interesse do comando levar os estudantes de volta para a cidade como prisioneiros. O jornalista Elio Gaspari escreveu: “Diferente do combate à luta armada nas cidades, não houve inquéritos policiais-militares, nem denúncias formais, nem sentenças judiciais. A ordem era não fazer prisioneiros, e prisioneiros não seriam feitos”.


Ao MPF, Curió admitiu a execução de pelo menos 41 militantes, que, segundo ele, já estavam presos e amarrados, e não ofereciam mais riscos às tropas.


CORPOS


No fim, 71 militantes foram para o Araguaia, e mais de 60 deles nunca saíram lá. De 1972 a 1974, mais de 300 camponeses foram presos e torturados sob a acusação de terem contribuído com os guerrilheiros e, quem continuava em liberdade, precisava seguir um toque de recolher. Além disso, pelo menos um vilarejo e seis roças foram incendiadas, e inúmeros lavradores foram expulsos das terras em que viviam pelos militares, como forma de intimidação.


Famílias inteiras de trabalhadores do campo que recebiam assistência de saúde e educação, além de orientação agrícola dos militantes, foram presas em buracos no chão, abertos em bases militares. Mesmo os simpatizantes dos militantes foram forçados, sob ameaça de morte, a se tornarem guias do exército na floresta.


Ainda hoje, há 59 desaparecidos políticos do Araguaia, entre eles, Dinaelza e Vandick, que nunca tiveram seus corpos encontrados. Desde 1979, Diva e as irmãs procuram por eles, mas seguem sem resposta. Ela lamenta: “Meus pais morreram sem enterrar Dinaelza”.


Mesmo após escavações em diversas partes do Araguaia, inclusive as que foram apontadas pelos oficiais como áreas de desova, a maior parte dos corpos não foi encontrado. O historiador Luís Fernando explica que manter essa história e as vítimas em segredo faz parte de uma estratégia militar muito utilizada em tudo o que envolve o período da ditadura: o silenciamento.



Um dos maiores legados da Ditadura Militar é o silenciamento. Os registros desse período, principalmente os que envolvem mortes, torturas, desaparecimentos, foram ‘mal feitos’. Há muitas omissões nesses registros, por isso, é extremamente difícil para os historiadores abordarem. Mas, a historiadora Heloisa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais, diz que havia centros clandestinos em vários locais diferentes, e que eram nesses locais em que os militares faziam esses procedimentos ilegais. Era nesses locais também que eles queimavam arquivos, queimaram ou esquartejaram corpos, de forma que evitasse mesmo a identificação dessas pessoas”.



Na denúncia do MPF, os procuradores detalharam o trabalho de ocultação de corpos por parte dos militares denunciados — entre eles, Curió.


O modus operandi adotado pelos agentes da repressão estatal no Araguaia (…) incluía a posterior ocultação dos vestígios dos crimes cometidos. Neste contexto, após as execuções, os corpos eram identificados e sepultados em determinados locais, de modo precário e às escondidas, ou abandonados na mata, dificultando a localização das ossadas, sem qualquer divulgação do fato ou comunicação aos familiares. De fato, a ocultação dos cadáveres das vítimas foi cumprida à risca pelas Forças Armadas, tanto que, até os dias atuais, apesar dos esforços empreendidos, ainda não foi possível localizar os restos mortais dos militantes”, indica a denúncia.


Como não puderam enterrar a irmã, para a família de Dinaelza, é como se, na verdade, ela nunca tivesse morrido. Emocionada, Diva conta:



Meu pai era topógrafo, e viajava muito. Uma vez, ele me disse: ‘Diva, toda vez que eu piso na porta, tenho a sensação de que vou encontrar Dinaelza lá dentro. Meu pai morreu, né, e, toda vez que a gente ia no cemitério, lá em Jequié, onde ele foi sepultado, tinha uma flor na sepultura dele. Aí, a gente brincava uma com a outra. Eu dizia: ‘Será que é irmã da gente que meu pai teve e, como mãe tá viva, não quer aparecer?’. A gente ficou nessa dúvida. Depois, mãe morreu, e foi para o mesmo espaço de pai. E a flor continuou lá. Aí, Dinorá, que era muito grudada com Dinaelza, com uma diferença de idade de um ano, me ligou. Isso tem pouco tempo. Ela disse: ‘Ô, Diva, será que não é Dinaelza que está deixando as flores?’”, rememora.



De 1995 até 2019, Diva Santana foi um dos sete membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada com a finalidade de localizar e reconhecer pessoas mortas ou desaparecidas devido às suas atividades políticas na Ditadura. Em dezembro de 2022, após ser derrotado nas urnas e pouco antes de viajar para os Estados Unidos, o ex-presidente Jair Bolsonaro extinguiu a Comissão. No período em que o grupo ainda existia, Diva e outras dezenas de familiares de mortos ou desaparecidos visitaram o Araguaia, conversaram com testemunhas e procuraram ossadas.


Ainda hoje, há 59 desaparecidos políticos do Araguaia, entre eles, Dinaelza e Vandick, que nunca tiveram seus corpos encontrados. | Foto: Arquivo Nacional

“A nossa luta hoje é pela reedição da Comissão. Lula disse que iria reeditar. Em março de 2023, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, fez uma reunião com os familiares em Brasília, e afirmou que iria fazer uma minuta para o presidente decretar a reedição da Comissão. E, até hoje, Lula não reeditou”, aponta Diva.


E o objetivo é um só: já que os militares nunca foram julgados ou punidos por causa da Lei da Anistia de 1979, a única coisa que resta às famílias é enterrar seus mortos. “Se você não vê corpo, não tem luto. Fica em aberto”.


Para nunca esquecer: conheça os baianos mortos ou desaparecidos na Guerrilha do Araguaia:


Fonte: Comissão Nacional da Verdade


1. Antônio Carlos Monteiro Teixeira (Antônio da Dina): geólogo baiano e militante do PCdoB, marido de “Dina” — de quem se separou durante a guerrilha —, chegou ao Araguaia em 1970 e entrou no destacamento C. Conhecedor da mata, era o instrutor de orientação dos militantes recém-chegados à região. Morto em combate em 21 de setembro de 1972, na primeira fase das operações antiguerrilha.


2. Dinaelza Santana Coqueiro (Mariadina): ex-estudante de Geografia da Universidade Católica de Salvador, Dinaelza, irmã de Diva, chegou ao Araguaia em 1971 com o marido, Vandick Coqueiro, e uma amiga, Luzia Reis. Integrante do destacamento C, foi executada por agentes do CIEx em abril de 1974, após ser presa na base de Xambioá. Seu corpo nunca foi encontrado e é dada como desaparecida.


3. Dinalva Oliveira Teixeira (Dina): geóloga formada pela Universidade Federal da Bahia, ficou conhecida no Araguaia como parteira, e era temida pelos militares pela coragem física e por ser uma exímia atiradora. Dinalva foi a mais famosa das guerrilheiras, lendária entre os moradores da região. Única mulher a ser sub-comandante de destacamento de combate, foi presa já no fim da guerrilha, em julho de 1974, e assassinada a tiros por agentes militares do CIEx. Seu corpo nunca foi encontrado e é dada como desaparecida.


4. José Piauhy Dourado (Ivo): ex-estudante da Escola Técnica Federal da Bahia, era fotógrafo em Salvador até entrar na clandestinidade ao lado do irmão, Nelson. Combatente do destacamento C, não foi mais visto pelos guerrilheiros a partir de dezembro de 1973. Um relatório sigiloso da Marinha registrou sua morte em 24 de janeiro de 1974. Seu corpo nunca foi encontrado.


5. Luzia Reis (Baianinha): ex-militante do movimento estudantil de Salvador, chegou ao Araguaia em janeiro de 1972 e fez parte do destacamento C. Primeira guerrilheira a ser presa, após uma emboscada, foi torturada na base de Xambioá e transferida para Brasília, onde cumpriu 10 meses de prisão. Solta, saiu do partido. Hoje, vive em Salvador, aposentada do serviço público.


6. Maurício Grabois (Mário): membro da cúpula do PCdoB, integrante da Comissão Militar do Partido e comandante-em-chefe dos guerrilheiros do Araguaia. Foi morto em uma emboscada na mata, em dezembro de 1973. Seu corpo nunca foi encontrado e sua morte jamais admitida pelo Exército. É dado como desaparecido.


7. Nelson Piauhy Dourado (Nelito): irmão de José Piauhy Dourado (Ivo), também desaparecido. Natural de Jacobina, era sindicalista e petroleiro na Refinaria Landulfo Alves, em Salvador. Clandestino desde 1967, integrou a guerrilha ao lado da esposa, Jana Moroni. Foi morto em combate em 2 de janeiro de 1974. Seu corpo nunca foi encontrado.


9. Rosalindo de Sousa (Mundico): advogado baiano, chegou ao Araguaia em 1971 e era famoso na região pelos cordéis que fazia.


9. Uirassu de Assis Batista (Valdir): estudante baiano, integrante do movimento secundarista e perseguido por sua atuação política, foi para o Araguaia e entrou no destacamento A. Preso com mais dois guerrilheiros no início de 1974, foi visto na base de Xambioá, algemado e mancando, com a perna coberta por leishmaniose, sendo levado em direção a um helicóptero do Exército. Desapareceu e seu corpo nunca foi encontrado.


10. Vandick Raidner Coqueiro (João Goiano): ex-estudante de economia baiano, chegou ao Araguaia com a esposa, Dinaelza, “Mariadina”. Integrante do destacamento B, foi o penúltimo guerrilheiro preso e executado pelo Exército, em 1974.


Em 1995, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi criada com a finalidade de localizar e reconhecer pessoas mortas ou desaparecidas devido às suas atividades políticas na Ditadura. | Foto: PCdoB

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