Baiana em Israel fala sobre viver em um país em guerra: ‘Como se fosse nos tempos do coronavírus’
Desde o início do mês, já morreram cerca de seis mil pessoas: 1.400 em Israel e 4.651 no território palestino - entre elas, 2.055 crianças foram mortas na Faixa de Gaza
Há quatro anos, a veterinária Katharyne Alves, de 28, saiu de Vila de Abrantes, em Camaçari, a 50 quilômetros de Salvador, e foi morar em Tel Aviv, em Israel. Em todo esse tempo, ela, que namora um israelense e trabalha em um hospital veterinário, nunca passou por um conflito tão sério quanto o que está acontecendo desde o dia 7 de outubro, após o grupo extremista Hamas, que governa a Faixa de Gaza, atacar o país vizinho.
“Vim morar aqui por causa do meu namorado. Ele morou no Brasil um tempo, a gente se conheceu nesse período, e eu decidi vir morar aqui. Quando eu vim, não tinha muito conhecimento da dimensão que os conflitos poderiam chegar, então, não tinha muito medo de que fosse acontecer”.
Nas últimas três semanas, o Itamaraty deu início à operação “Voltando em Paz”, que trouxe de volta para o Brasil 1.410 brasileiros, três bolivianas, a pedido do governo da Bolívia, e mais de 50 animais domésticos em nove aviões da Força Aérea Brasileira (FAB).
Ainda segundo o Itamaraty, há um grupo de 30 brasileiros e familiares diretos que esperam para sair da Faixa de Gaza, que tem as fronteiras controladas por Israel há décadas. Por pior que seja, é bem simples: há anos, ninguém pode deixar Gaza. A maioria dos moradores do território, habitado por refugiados palestinos, mulheres e crianças, nunca saiu de lá.
Há uma fronteira com o Egito, ao sul do território, nas localidades de Khan Younis e Rafah, mas o governo israelense também decide quem pode passar pela divisa. Até o momento da publicação desta reportagem, esses 30 brasileiros e dezenas de outros estrangeiros continuam presos em Gaza, sem energia, água, comida ou medicamentos, e sem perspectiva de resgate. Após dias de negociações, a Organização das Nações Unidas (ONU) conseguiu a autorização de Israel para entrar na terra palestina com caminhões carregados de mantimentos.
Katharyne e o namorado, nascido e criado em Israel, levaram dois dias para realmente entender o que estava acontecendo - mas, assimilar ainda é difícil. | Foto: Arquivo Pessoal
O conflito entre israelenses e palestinos, que começou na década de 1950, piorou no início deste mês, a partir do atentado do Hamas. Desde então, já morreram cerca de seis mil pessoas: 1.400 em Israel e 4.651 na Faixa de Gaza. No território palestino, 2.055 crianças foram vitimadas. Mas, por mais que a situação seja desoladora, Katharyne nem pensa em embarcar em um dos aviões disponibilizados pela Força Aérea Brasileira e voltar para a Bahia.
“Eu iria ficar me preocupando com o que está acontecendo aqui, com a minha família daqui, com os meus amigos. Para mim, seria muito mais difícil sair nesse momento. Até porque, aqui em Tel Aviv, as coisas estão mais tranquilas do que nas cidades que fazem fronteira com a Faixa de Gaza. Então, por enquanto, não tenho vontade de sair, só se as coisas, de fato, piorarem”.
A origem do conflito entre Israel e Palestina é bastante antiga. O professor de Relações Internacionais da Unijorge, Neuton Neto, explica que, por ser uma região que, ao longo da história, já foi ocupada por diversos povos, aquela local, a “Terra Prometida”, é reivindicada por muita gente.
“A questão gira em torno da divisão territorial da região. Aquela área é fruto de ocupação histórica de diversos povos, mas com certo grau de convivência entre os povos judeu e o que a gente chamaria hoje de palestino. No começo do século, era território otomano e, ao final da Primeira Guerra Mundial, se tornou território inglês”, aponta ele.
Durante a Segunda Guerra, cerca de seis milhões de judeus foram mortos pelo governo nazista de Hitler, de 1938 a 1945. Em 1947, com a derrota do nazismo e o fim da guerra, a ONU pressionou a Inglaterra e sugeriu que o território que hoje é de Israel, abrigasse dois Estados: um para o povo árabe, que já estava na região há séculos, e um para o povo judeu.
“Contudo, somente o Estado de Israel foi criado, sob protesto dos países vizinhos de religião islâmica. Parte do conflito passa a se desenrolar aí, com guerras constantes entre Israel e seus vizinhos, bem como incursões ao território em que deveria ser instalado o Estado da Palestina”, comenta o professor.
E foi aí, dessa falta de acordo e frequentes ataques do Estado de Israel à população palestina, que, em 1987, surgiu o Hamas, que passou a reivindicar todo o território aos palestinos. “O Hamas possui um braço armado e um político e, atualmente, é predominante na Faixa de Gaza. Mas, é importante entender que essa é uma luta de um Estado, Israel, contra um grupo, o Hamas, e não um conflito entre judeus e islâmicos. Também, é válido destacar que, possuindo um braço político e reconhecimento, o Hamas não é considerado (oficialmente) um grupo terrorista. Contudo, os atos do grupo são profundamente condenáveis”, ressalta Neuton.
Mapa da evolução do Estado de Israel. | Imagem: Agência Brasil
SIRENES
No dia 7 de outubro, os ataques do Hamas contra Israel tiveram início muito cedo, por volta das 6h da manhã. Quando tudo começou, Katharyne e o namorado ainda estavam dormindo. Soou a primeira sirene, e eles foram para uma área de segurança dentro do prédio onde moram. O som parou, e o casal voltou para o apartamento. Cinco minutos depois, uma nova sirene.
“Demorou um tempo para a gente entender o tamanho do ataque. Nesse primeiro dia, eu não senti muito medo. Mas, depois, o meu namorado falou para mim que tinha alguma coisa muito ruim acontecendo, e que a gente teria que ir para a casa dos pais dele, que é mais segura do que o nosso prédio. Tem um bunker na casa dos pais dele. E aí que caiu a ficha, e eu comecei a sentir muito medo”.
Nesse dia 7, estima-se que pelo menos 1.500 integrantes do Hamas tenham entrado em Israel pelo sul do país. Lá, eles atiraram contra pessoas em uma rave no deserto, o Universo Paralello, criada pelo DJ brasileiro Juarez Petrillo, pai de Alok, e sequestraram cerca de 200 pessoas. No Universo Paralello, foram quase 300 mortos. Entre eles, três eram brasileiros: Ranani Glazer, Bruna Valenu e Karla Stelzer.
Quando soube que tantos integrantes do Hamas haviam conseguido furar o bloqueio e entrar em Israel, Katharyne parou de sair de casa para trabalhar. “Naquele primeiro dia, a gente ficou com muito medo de ficar andando por aí. Era para eu ter ido trabalhar, mas as pessoas não foram, só quem morava muito perto do trabalho. Estava todo mundo com muito medo de sair de casa, a gente não sabia se eles estavam perto da nossa cidade, se tinham conseguido ou não chegar no centro do país. Os primeiros dias foram muito, muito tensos”.
Katharyne e o namorado levaram dois dias para realmente notar o que, de fato, estava acontecendo - mas, assimilar ainda é difícil. “A gente está tentando assimilar tudo. Tem sido dias muito difíceis”. Agora, a veterinária descreve a vida em Tel Aviv como um déjà vu dos tempos de isolamento social provocados pela pandemia de Covid-19: “Só abre o que tem que estar aberto”.
“As coisas que estão funcionando aqui são só de serviços essenciais, como se fosse nos tempos do coronavírus. Eu estou indo trabalhar porque escolhi ir trabalhar. Para mim, é uma forma de escapar um pouco de toda a situação, limpar a cabeça de tudo o que está acontecendo”.
Apesar da guerra, Tel Aviv ainda está bem abastecida de comida e remédios. Quando a gente fala em protocolos de segurança, cada cidade segue regras específicas: quanto mais perto da Faixa de Gaza, mais restrições são impostas aos moradores. “As regras que a gente tem aqui em Tel Aviv são as de ir para o bunker sempre que toca a sirene e não fazer nenhum tipo de evento”, relata ela.
Hoje, em 2023, esse conflito completa 76 anos, e está mais letal do que nunca. Os ataques deste mês, como indica o professor Neuton Neto, foram os que mais vitimaram israelenses desde 1947, e os atentados de Israel à Gaza foram classificados pela ONU como graves violações aos Direitos Humanos. “Também é válido ressaltar que, devido aos conflitos recorrentes, 47% da população de Gaza é formada por pessoas com menos de 17 anos. A menos que haja uma resolução rápida dos conflitos, a tendência é que a escalada da violência seja maior”.
"Devido aos conflitos recorrentes, 47% da população de Gaza são de pessoas com menos de 17 anos", diz o professor Neuton Neto. | Foto: Pixabay / Imagem feita por fotógrafo na Faixa de Gaza
E o risco dessa guerra se tornar um combate em nível regional, com a entrada de outros países, é real. Neuton Neto explica: “O Hezbollah [organização política e paramilitar fundamentalista islâmica] está se preparando na fronteira do Líbano, e o Irã pode estar se preparando para atacar também. Do lado israelense, uma frota dos Estados Unidos foi deslocada para o Mar Mediterrâneo, para dar suporte. Há uma chance real de uma escalada no conflito”.
A guerra já chegou a uma casa em Abrantes, na Região Metropolitana de Salvador, a 9.214 km de Tel Aviv. Não tem sirene, não tem bomba, e não tem bunker, mas tem muito, muito medo. Desde quando tudo começou, a família de Katharyne pede para ela voltar, mas ela os tranquiliza e reafirma: enquanto for “tolerável” permanecer na cidade em que ela escolheu morar, ela fica.
“Minha família no Brasil está muito apreensiva, ansiosa. Todo mundo quer que eu volte. Mas, não me sinto confortável de ir embora assim, abandonar tudo. Tem pessoas aqui que eu amo. Eu me sentiria meio egoísta de abandonar tudo porque eu posso, e deixar as pessoas que eu amo aqui. Não conseguiria ficar bem. Enquanto a situação estiver tolerável, a gente vai ficar por aqui. Mas, a gente conversou que se as coisas pioraram, a gente vai pensar em ir para outro lugar”.
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