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17/10/2023 18h29 | Atualizado em 18/10/2023 10h14

‘Eles têm voz’: pessoas em situação de rua em Salvador contam histórias e são assistidas por projeto ‘Pop Rua’

Quase 18 mil pessoas vivem em situação de rua na capital baiana; Aratu On acompanhou trabalho de projeto que auxilia essa população

'Eles têm voz': pessoas em situação de rua em Salvador contam histórias e são assistidas por projeto 'Pop Rua' Foto: ilustrativa/DPE-BA
Juana Castro

Motivos pessoais levaram Dona Iraci, de 63 anos, a sair de casa. “Eu separei, sofri perseguição…”, explicou brevemente, sem entrar em detalhes. Há cerca de um ano, ela é uma das quase 18 mil pessoas em situação de rua, em Salvador. 

O número é do último levantamento ao qual a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA) teve acesso, em 2017. Um novo deve ser lançado ainda este ano, pelo Projeto Axé, em parceria com a Secretaria de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre), mas a data ainda não foi divulgada.

Mesmo sem dados atualizados, não é errado dizer que pessoas com trajetória de rua, além de estarem em situação de vulnerabilidade social, também são invisibilizadas pelo restante da sociedade. Mas elas têm voz. E direitos. O que lhes falta, muitas vezes, é o acesso a eles.

Para facilitar esse contato, a Defensoria criou o projeto Pop Rua em Movimento, que garante atendimento multidisciplinar para as pessoas em situação de rua. A iniciativa realiza itinerâncias pelas ruas da cidade de Salvador e também em unidades de acolhimento, centros de referência especializados – os Centros Pop – e unidades de saúde em favor das pessoas em situação de rua.

Dr. Armando Fauaze, defensor público
Dr. Armando Fauaze, defensor público | Crédito: Aratu On

“Nossa atividade é basicamente acolher, escutar, identificar a demanda e providenciar o direcionamento correto para aquela demanda”, afirmou o defensor público Armando Fauaze, titular da 2ª Defensoria Especializada em Direitos Humanos, à frente dos núcleos “População em Situação de Rua”  e “Saúde Mental”.

Ele explica que a ação é montada de forma estratégica, noticiada, e a comunidade já sabe quando a Defensoria vai chegar. “As pessoas se reúnem, até pela dificuldade de deslocamento para outros pontos da cidade”, acrescentou Fauaze. Um débito decorrente do tráfico de drogas, por exemplo, não permite que algumas pessoas vão para outros locais.

O Aratu On acompanhou a equipe da DPE-BA em dois desses roteiros, um em setembro e outro em outubro. No primeiro dia, três assistentes sociais, uma analista jurídica e quatro defensores públicos – dos quais três de outros estados, em treinamento – foram à Praça Dom Pedro II, em frente ao Fórum Ruy Barbosa, e com cadeiras e mesas dobráveis, laptops e papelada a preencher, montaram uma espécie de escritório a céu aberto. Sem pressionar ninguém, só se aproximava quem se sentisse à vontade.

Ao mesmo tempo, a assistente social Sandra Carvalho, Coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa “Situação de Rua, Cidadania e Direitos Humanos”, circulava pela praça, acompanhada de um estagiário e uma defensora em treinamento, natural de Minas Gerais. Aos poucos, pessoas sentadas nos bancos da praça começam a chamá-los, pois já os “conhecem de vista” e têm noção do trabalho realizado, de outras vindas.

pop rua
Equipe do Pop Rua em ação, na Praça Dom Pedro II | Crédito: Aratu On

Eunice, 36, é uma das que solicita ajuda. Bem-humorada, contou que tem um filho de 9 anos dentro do espectro autista, mas estava com dificuldade de conseguir determinado exame para ele. “Ele tem grau leve. É mais esperto que todo mundo”, disse, aos risos, à equipe do Pop Rua, que por sua vez orientou a mulher a procurar a unidade da defensoria que cuida da área de saúde, no Jardim Baiano. Anotaram o endereço em um papel e alertaram: “leve tudo o que você tiver de exame. E você tem passe livre [devido ao autismo do filho]”.

“Eu tenho!”, respondeu Eunice, mostrando o cordão do autista da criança. Na ocasião, ela falou que já esteve em situação de rua, mas hoje recebe auxílio aluguel e mora com o garoto e a mãe na Boca do Rio, em Salvador. Pouco depois, o menino, Carlos Eduardo – que estava brincando de bola com uns amigos, no local – chega e se apresenta. Quis saber o nome de cada um dos que estavam ali, de camisa verde (e o desta jornalista), e os abraçou, um por um. “Que menino educado!”, elogiou o defensor Armando Fauaze, enquanto abraçava o garoto.

Mesmo agora instalada em uma casa, Eunice, Carlos Eduardo e a mãe dela, Dona Jocelina, de 69 anos, costumam ir à praça, algumas noites, para pegar refeições fornecidas por voluntários. Outros lugares próximos também funcionam como “boca de rango”, onde é possível se alimentar gratuitamente.

É importante ressaltar que a equipe do Pop Rua em Movimento, assim como de outros projetos da DPE-BA, não fazem doações. “Participamos de comitês, audiências públicas, reuniões… Estamos sempre em atividade. Nossa principal preocupação é ser resolutivo, evitar demora e procrastinação. A defensoria é uma instituição permanente, essencial para a ação jurisdicional do estado e, como tal, garantidora de direito”, frisou Fauaze.

“Por essa razão, se não puder resolver naquele momento, a gente já aciona imediatamente o gestor, estreita os laços, tem interlocução, briga, discute… mas consegue resolver. Se você busca a judicialização, essa iniciação não é efetiva, porque você atende a pessoa com problema, você se sensibiliza e judicializa, aí daqui que o município e o estado tomem conhecimento daquela demanda, ela pode nem existir mais. Já apareceu uma segunda, terceira…”, completou o defensor público.

“ELES TÊM VOZ”

Para a assistente social Zudiane Coelho, há “todo um processo” de aproximação e conhecimento ao trabalhar com a população em situação de rua. “É preciso ter noção de território, territorialidade e como as pessoas se formam naquele espaço, porque tem relação de poder”, disse.

“Se você chegar no território da Piedade, por exemplo, você vai ver alguém é filho de alguém, neto de alguém… É horrível pensar isso? De que não conseguiram sair desse processo de ‘rualização’? É. Mas tem uma rede de cuidado incrível, entre mulheres, uma cuidando do filho da outra… Se articulando e se protegendo, de alguma forma”, analisou.

Ela observou que a dinâmica da rua mudou muito depois da pandemia, devido ao desemprego estrutural e à hostilidade e violência dos territórios. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgado em 2022 mostrou que a população em situação de rua superou a marca de 280 mil pessoas no Brasil.

Ações solidárias também ficaram escassas, bem como o Pop Rua em Movimento precisou dar uma pausa. “Temos atuados nos campos que já fazíamos antes, mas a gente percebe um número maior, e pessoas fazendo uso de álcool, drogas, para aguentar a fome, porque também diminuiu o número de distribuição de alimentos e serviços”, analisou Zudiane.

Para ela, o Serviço Social funciona como uma ponte para ofertar orientação e atendimento jurídico, mas não é a voz de quem tem trajetória de rua. “Eles têm voz”, como destaca Zudiane. “O movimento [das pessoas em situação de rua] que dá régua e compasso para a gente trabalhar. A gente não dá voz. A gente ouve quem deve escutar. É uma relação muito horizontal, de respeito e compartilhamento. Eles são sujeitos ativos do processo“, ponderou.

O pensamento é endossado pelo defensor Fauaze. Segundo ele, não se pode visualizar uma pessoa em situação de rua como “um homem com uma sacolinha nas costas” ou “uma mulher andando isoladamente”. Não é bem assim, explica:

“A coisa é muito mais complexa, porque envolvem várias situações. Existem famílias, crianças que precisam estar na escola, pessoas idosas, pessoas em alta vulnerabilidade, mulheres vítimas de violência sexual, doméstica, imigrantes que vieram para cá, pessoas com distúrbio psiquiátrico, sofrimento mental… e precisamos acolher”.

EQUIDADE NA EDUCAÇÃO

O Pop Rua em Movimento é uma das ações do Núcleo de População em Situação de Rua. Outra, que o Aratu On acompanhou em uma segunda oportunidade, envolve a educação. Três vezes na semana, no período da noite, o Colégio Estadual Severino Vieira, na Avenida Joana Angélica, em Salvador, abre as portas das salas de aula para duas turmas do Projovem Urbano (PU), cada uma com 30 alunos, além de uma turma de 25 alunos do programa Universidade Para Todos (UPT), do Governo Federal.

“Todos estão ou já estiveram em situação de rua, e na segunda, vão prestar vestibular para a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), com isenção de taxa, três refeições e materiais. O que estamos tentando conseguir agora é o transporte”, disse a assistente social Sandra Carvalho.

Na unidade de ensino também há turmas de oficinas diversas, como a de auxiliar de cozinha da qual o compositor Cláudio da Hora, de 45 anos, está inscrito. “Chegaram e perguntaram quem se interessava pra ser repositor de materiais, auxiliar de cozinha ou chapista de lanchonete… Vim estudar e fiquei esperançoso pra ter um trabalho“, confessou.

claudio sandra e selton
Cláudio, Sandra e Selton, estagiário da DPE-BA, no Colégio Severino Vieira | Crédito: Aratu On

Em trajetória de rua desde os 13 anos, ele não pisava em uma sala de aula desde os 16, e disse que já “rodou Salvador toda”. Atualmente ele está em uma unidade de acolhimento e sonha poder viver da sua música. “Sei fazer uma letra, mas não sei tocar nada… só compor”, fala à Sandra.

Com as letras na mão, a coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa “Situação de Rua, Cidadania e Direitos Humanos”, por sua vez, garante que vai procurar saber como ele pode registrar as letras formalmente.

“DIREITO DE SER, EXISTIR E ESTAR”

Na saída do colégio, Sandra e a equipe do Pop Rua encontraram uma conhecida da “militância”, como classificou a assistente social. Estrela Maria, de 25 anos, tem alçado novos voos graças à educação e às políticas públicas. “Tem essa trajetória [de situação de rua], mas também tem outra: estou estudando e incluída no programa Moradia Assistida”, contou.

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Estrela Maria cursa Serviço Social | Crédito: Aratu On

Estrela Maria acredita que ficou mais empoderada em relação à garantia de direitos, e credita isso, em parte, à Defensoria. “Por ser uma mulher trans com trajetória de rua, que veio de um lugar periférico, alguns direitos como educação, emprego, saúde e documentação me foram negados”, relatou. “Eu entendi que é possível ter minha cidadania e direitos garantidos, e ser, existir e estar, como qualquer outra pessoa”, acrescentou a jovem.

Estrela reforçou também a importância do Movimento de População de Rua, que lhe deu “formação política”. Inclusive, hoje, é estudante do curso técnico de Serviços Jurídicos, pelo projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA), e de Serviço Social na Universidade Católica, em Pituaçu.

“Quero terminar meus estudos e poder atuar no mundo do trabalho e também ser, existir e estar nesse lugar do jeito que eu sou, tendo acesso como qualquer outra pessoa. Não só sendo usuária dessas políticas, mas também como operadora”, afirmou.

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