Novelão ou micaço? Pedaço de mim investe em clichês do melodrama e colhe os frutos desta escolha
Isto porque a autora reuniu diversas premissas que são encontradas por noveleiros em múltiplas tramas da teledramaturgia nacional e mundial: perda de memória, conflito com paternidade, segredos que apenas serão revelados nos últimos capítulos, acidentes, gêmeos, crimes, entre outros. É uma miscelânia tão grande de peripécias, que o resultado poderia ser vergonhoso. No entanto, Chaves cria uma história coesa, na qual cada acontecimento conecta e impulsiona o próximo.
De certo, existem alguns exageros, como é o caso da amnésia de Marcos, filho da protagonista. Contudo, o trabalho da direção e do elenco suavizam muito das intensidades do enredo. A começar pelas seleções de enquadramento. É uma marca clássica das telenovelas o uso do close para reforçar as emoções das personagens, impactando de maneira intensa – porém, óbvia – o espectador. No entanto, aqui, os encaminhamentos narrativos cheios de quiprocó são suavizados com planos mais gerais, movimentos suaves de e até mesmo alguns efeitos de câmera também.
A fotografia e a equipe de arte conversam entre si, ampliando os sentidos dos diálogos. As temperaturas de dentro da casa do Rio de Janeiro de Liana e Tomaz Rosenthal são azuladas, porque ali é, majoritariamente, um lugar seguro para a família dos Rosenthal. Diferentemente do lar da capital, na serra, os tons ficam entre marrom e laranja, sempre indo de aterramento – quando Tomaz não está – ao perigo e tensão, quando o rapaz se encontra. O azul e o terroso se encontram com o vermelho e preenchem os figurinos, representando, principalmente, as personas masculinas que rondam Liana.
Assim, a camisa do time de futebol dos garotos Marcos e Mateus possuem azul e vermelho, que podem ser lidas como as presenças de Tomaz e Oscar na vida dos meninos. Já em termos de iluminação, os sombreamentos e as luzes chapadas também entregam respostas para o público atento. Oscar representa perigo iminente e Liana é a mocinha quase indefesa. Por isso, eles contam com menos sombras que Tomaz, por exemplo, que está sempre transitando entre bem e mal, até tomar sua decisão certeira (sem spoilers tão grandes por aqui!).
São nesses detalhes que a produção se engrandece e consegue equalizar seus tons melodramáticos. Para completar essa afinação, o elenco principal segura bastante os diálogos que beiram ao absurdo – mas, divertem ou criam as sensações necessárias (vamos chegar lá) –, como gravidez heteroparental, que talvez soasse falso na voz de outros intérpretes. Neste sentido, existem três artistas que se destacam: Paloma Duarte, Juliana Paes e Vladimir Brichta. O trio cria camadas em seus papéis, que vêm da composição de movimentos, contenções musculares, olhares e trabalho de voz.
Qualquer uma destas figuras poderiam ter ficado quase planas, caso não houvesse o cuidado de Paloma, Juliana e Vladimir em convocar expressões faciais e vocais que aprimorassem as dualidades de suas personagens. Mas, talvez, se o leitor resistiu e chegou até esta parte da crítica, esteja se perguntando sobre as questões sociais da novela. Por exemplo, como Liana pode ter sido tão questionada de sua palavra, quando estava nítido que ela foi abusada. Para além do fato de que a versão da mulher ser dúvida ainda em 2024, a história começa inteligentemente em 2006.
A consciência temporal de Angela Chaves é crucial para o desenvolvimento do conflito central. As transformações das discussões dentro da sociedade nos últimos 18 anos modificaram vidas e esse é um importante recado que a obra traz. Não que precisasse, mas está tudo ali, colocado no roteiro da novela, que mistura de maneira cuidadosa o olhar da tecnicidade com o do discurso. Contudo, se, ainda assim, a plateia não tiver se convencido da qualidade do resultado geral de Pedaço de mim, basta pensar no que ela causa sensorialmente.
A produção faz com que quem assiste se sinta mobilizado, grite com a televisão, lembre-se como era ver TV antes do streaming, inclusive. (E, aqui, retornamos para os diálogos). As falas, suavizadas pelo elenco, são tipicamente melodramática e jogam com culpa, mistério e absolvição. O melodrama clássico precisa da jovem injustiçada, que silencia a verdade em nome do bem maior. Está na história da ficção esta fórmula, seja em livros, filmes, na TV etc. E funciona, porque move quem assiste, cria empatia e descontentamento.
Ao mesmo tempo, cria um gancho de espera, que faz com que o consumidor permaneça conectado com aquela produção, até o seu final, mesmo que não goste. Assim, Pedaço de mim cumpre todos os requisitos para um folhetim de sucesso: elenco famoso, história mirabolante, mocinha, vilões, coadjuvantes irritantes etc. Mas, tudo isso com roupagem contemporânea, com discussões atuais e urgentes. É por esta razão que Pedaço de mim é bem sucedida e tão vista mundialmente. Ela é o melhor dos mundos, são os anos 1980/1990 encontrando 2024!
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On