Escravizados, mouros e indigentes: quem são os enterrados na Pupileira?
Povos escravizados são os principais ocupantes das 'sepulturas'
Fonte: Dinaldo dos Santos
A Pupileira, espaço administrado pela Santa Casa da Bahia, que fica no centro de Salvador, virou objeto de discussão, nos últimos dias. No local, indícios apontam que parte do terreno abrigou um cemitério que teria funcionado por 150 anos.
A discussão surgiu, a partir de estudos da pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Silvana Olivieri. A doutoranda em urbanismo descobriu a existência do cemitério, analisando mapas da cidade de Salvador elaborados no século XVIII.
Ela contou ao Aratu On que fez a descoberta, após cruzamento de indicadores do mapa com foto aérea atual da região do entorno do Campo da Pólvora. 'Foi aí que eu cheguei à localização do cemitério na área frontal da Pupileira', disse.
Olivieri reuniu documentos cartográficos, artigos, trechos de livros sobre o tema e a própria escritura da Santa Casa, quando adquiriu a Pupileira, ressaltando que o terreno do cemitério fazia parte do imóvel comprado em 1862.
Pupileira: população sepultada
Mas quem são as pessoas que foram enterradas na área da Pupileira? O assunto causou polêmica entre alguns setores da sociedade baiana e, inclusive, no último dia 29 de janeiro, o Ministério Público da Bahia promoveu uma reunião para intermediar tratativas que permitam a realização de uma pesquisa arqueológica no local.
A pesquisadora defende que povos escravizados são os principais ocupantes das 'sepulturas'. Contudo, Olivieri acrescentou que eles não foram os únicos. 'Também estão indigentes e prisioneiros. Pessoas que morriam nas cadeias eram levadas pra lá'.
As informações são fundamentadas em publicações de alguns historiadores citadas por ela, e nomes como Braz do Amaral, Consuelo Pondé de Sena e João Reis, são lembrados pela autora da pesquisa em suas sustentações.
Foto: Reprodução | Google Maps
Pupileira: escravizados, mouros e indigentes
Em contato com o historiador Roberto Pessoa, nossa reportagem foi informada, também, da existência de povos ciganos naquele cemitério.
Segundo Pessoa, no início do século XVIII, uma caravela cheia de exilados de Portugal ancorou na capital baiana. A embarcação trazia os mouros. 'Uma parte deles ficou no Politeama e a outra em uma localidade, onde fizeram um grande acampamento, que mais tarde passou a se chamar Mouraria', destacou.
A Santa Casa, ressaltou o professor, era um local de assistência, instituído, inicialmente, para cuidar dos colonos, mas como uma entidade cristã, passou a acolher pobres e rejeitados.
Além de escravizados, indigentes e filhos de prostitutas, os mouros eram também assistidos pela instituição. De acordo com o historiador, eles costumavam investir em gados e cavalos e, muitas vezes, sem trabalho, se envolviam na prática de roubos e furtos.
'Nem os senhores de engenho queriam os mouros na fazenda. Preferiam os escravizados. Alguns seguiram para o interior do estado em busca da mineração e garimpo de ouro. Muitos não tiveram essa superação, não sobreviveram, e foram sepultados ali', ressaltou.
Entre os escravizados, sepultados na Pupileira, segundo Pessoa, estão os Malês. 'Eles eram negros mulçumanos, os mais inteligentes de todas as etnias. Vieram da Nigéria, de uma região com muita influência sudanesa. Conheciam o alcorão e tinham muita cultura, por isso se rebelaram', contou.
Segundo o professor, entre os líderes da chamada Revolta dos Malês, uns foram enforcados na Piedade e outros fuzilados no Campo da Pólvora. Alguns foram deportados, foi o caso de Caetano Moura, que acabou tendo seu nome lembrado no batismo de uma rua muito conhecida, no bairro da Federação.
'Ele contou com a ajuda de um padre que lhe colocou em um barco que foi para Portugal. Lá, conseguiu amparo, estudou medicina e filosofia, se tornou cirurgião, entrou para o exército português, seguindo depois para a França, onde chegou a ser médico de Napoleão [Bonaparte], por um tempo', pontuou Pessoa.
Contudo, após a morte do imperador francês, Caetano Moura voltou ao Brasil e morreu pobre, com pouco mais de 80 anos, no Rio de Janeiro.
A Pupileira e a Revolução Pernambucana
Revolucionários envolvidos em questões ocorridas fora da Bahia foram também enterrados na área da Pupileira. O fato é destacado por Silvana Olivieri. Os integrantes da Revolução Pernambucana, um movimento republicano separatista, foram lembrados pela pesquisadora.
Silvana fez uma menção relevante a um dos heróis do movimento: Miguel Joaquim de Almeida e Castro, mais conhecido como Padre Miguelinho. Ele é potiguar, mas morou grande parte de sua vida em Recife.
Miguelinho foi preso no dia 21 de maio de 1817 e levado à Fortaleza das Cinco Pontas, junto com outros 72 revolucionários, que depois seguiram para Salvador. Menos de um mês depois, ele foi executado na capital baiana.
'Eles foram trazidos pelo governador da época da Bahia, que era Conde dos Arcos, um português, muito violento e autoritário. Eles foram enterrados também nesse cemitério, de forma muito desumana', acrescentou.
Uma coincidência curiosa foi observada pela pesquisadora. Ela salientou que em frente à Pupileira tem uma travessa chamada Padre Miguelinho. 'Aqui, é como se tivesse uma indicação apontando para o local onde ele está enterrado. É como se o apagamento que foi feito, deixou alguma coisa que fica dando dando pistas para alguém no futuro juntar', avaliou.
Travessa Miguelinho fica em frente à Pupileira. Foto: Silvana Olivieri
Pupileira x Reparação Histórica
Não é única pretensão da pesquisadora mostrar a existência de um fato histórico. Para ela, o resgate da imagem e memória desse cemitério deve ser acompanhado de uma reparação histórica.
Olivieri trouxe informações de referências que podem ser seguidas neste caso da Pupileira. 'Você tem em Nova York dois casos de cemitérios muito interessantes [...] O cemitério africano de Nova Iorque, que foi achado em 1991, onde foi feito um memorial e um cemitério que foi encontrado mais recentemente, no Harlem, está agora na na fase de pesquisa arqueológica e vai ser feito um museu, com um centro cultural', destacou.
No Brasil, a pesquisadora lembrou do Instituto Pretos Novos do Rio de Rio Janeiro. Ela visitou o local, que é o maior achado do país, onde também eram enterrados africanos escravizados. Lá foi criado um centro cultural, cuja finalidade é resgatar a história da cultura africana na cidade.
'Eu acho que o interesse público deve prevalecer sempre, ainda mais se tratando de um cemitério, um lugar de valor afetivo, nesse caso, histórico e cultural [...] Eu acho que a gente tem que respeitar um lugar sagrado, que deve ser tratado com o máximo respeito', disse.
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