'Cafezinho': tradição resiste à modernização e abandono do ofício em Salvador

Aratu On percorreu as ruas do Centro em busca dos 'cafezinhos' que ainda mantêm viva a tradição do café de rua

Por Anna Caroline Santiago.

Neste sábado (24), é comemorado o Dia Nacional do Café — a bebida que surgiu no século VII, percorreu o mundo como coffee no inglês e kaffee na língua alemã, ao chegar em Salvador, virou o querido “menorzinho”. Da Cidade Alta à Cidade Baixa, o café conquistou espaço nos lares e nos corações dos brasileiros. Mas há quem vá além do consumo diário: vive do grão e dele tira o sustento.

Em Salvador, essa paixão pelo “pretinho” virou hábito, estilo de vida e até moda — especialmente entre os anos 1970 e início dos 2000. Foi nessa época que os tradicionais carrinhos de café se espalharam pelo Centro da cidade, com formatos diversos, cores vibrantes e a missão de servir o melhor café a preço justo.

'Cafezinho': tradição resiste à modernização e abandono do ofício em Salvador. Foto: Anna Caroline Santiago | Aratu On

Patrimônio Imaterial de Salvador

Reconhecido provisoriamente como Patrimônio Imaterial de Salvador desde 2021, o ofício dos cafezeiros vem ganhando atenção da Fundação Gregório de Mattos (FGM), que desde 2023 trabalha na elaboração de um Dossiê Técnico. O documento tem o objetivo de subsidiar e fortalecer o processo para o registro definitivo da atividade dos “cafezinhos” e “cafezinhas”, como os próprios vendedores se denominam.

Com o tempo, no entanto, a tradição perdeu força. Quem caminha hoje pela Avenida Sete ou pelo Relógio de São Pedro já não encontra tantos carrinhos coloridos, acompanhados de doces e caixas de som acopladas que atraíam filas em busca do “menor”. A redução é reflexo das mudanças na cidade: a chegada de cafeterias gourmetizadas, o desinteresse das novas gerações e a ausência de políticas públicas de valorização do ofício.

Cris Café. Foto: Secom PMS

Ausência de 'cafezinhos' no Centro

A equipe do Aratu On foi às ruas do Centro em busca dos que ainda resistem. Na Praça da Piedade, ponto onde antes os carrinhos dominavam, encontramos Rubens Pinheiro, 52, e José Wilson, 55, dois veteranos que relatam as mudanças no cenário e a luta por reconhecimento.

Antes de usar o carrinho, Rubens começou vendendo café com seis garrafas nas mãos. Com o aumento da clientela, há mais de 30 anos, decidiu investir no carrinho para facilitar as vendas. “Eu sei que antigamente fazia mais sucesso do que hoje em dia. Hoje tá mais fraco”, lamenta.

Rubens Pinheiro. Foto: Anna Caroline Santiago | Aratu On

Ele explica que a queda na procura está diretamente ligada ao aumento no preço do produto. “O pessoal já tá comprando pouco. Aí o café aumentou, a tendência é diminuir mais e mais”, afirma.

Hoje, o quilo do café tradicional pode custar entre R$ 100 e R$ 130. De acordo com o IBGE, o preço da bebida subiu 80% entre abril de 2024 e abril de 2025. As razões incluem eventos climáticos extremos, a alta na demanda global e a entrada da China no mercado consumidor.

Com esse cenário, o consumo de café caiu quase 16% no Brasil em abril deste ano, na comparação com o mesmo mês de 2024.

Assim como Rubens, José viu a clientela mudar bastante, principalmente após a pandemia da Covid-19. Apesar disso, ele diz que ainda há um público fiel, enquanto Rubens nota uma mudança de comportamento. “A gente trabalha na rua. Muitas pessoas hoje preferem tomar café no shopping, algo mais sofisticado, do que comprar assim, na rua. Não é mais como antigamente, não faço mais duas viagens pra repor café”, desabafa.

Carrinho de Café. Foto: Anna Caroline Santiago | Aratu On

Apesar de o carrinho de café ter virado um modo de vida para muitos, a falta de regulamentação e de políticas de apoio contribuiu para o enfraquecimento do ofício. Rubens e José concordam: não há respeito pela profissão, tampouco incentivo.

Oficialização da profissão

Vagner Rocha, diretor de Patrimônio da FGM, afirma que desde o reconhecimento provisório do ofício como patrimônio imaterial, a fundação tem atuado com ações de valorização, como o projeto Salvador Vai de Cafezinho, que já foi contemplado em edições do Edital Jaime Sodré.

Em 2024, com recursos da Lei Paulo Gustavo, a FGM iniciou a produção do dossiê técnico que sustenta o processo de patrimonialização. O documento foi desenvolvido através do Edital Salvador Cidade Patrimônio, em parceria com a Associação de Terreiros da Bahia Egbé Axé, os próprios cafezeiros, a comunidade e órgãos públicos e privados.

"Estamos agora na fase final de revisão, normatização e diagramação desse dossiê. Isso significa que, muito em breve, esse documento será disponibilizado no site da FGM para consulta pública durante um mês, para que a sociedade civil possa acessar o documento", garantiu.

Após esse período, o material será avaliado pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural de Salvador. Se aprovado, a FGM publicará o decreto de registro especial no Diário Oficial, e o ofício dos cafezeiros será finalmente reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial de Salvador.

Carrinhos de café 

Durante a conversa com os cafezinhos, Wilson relembrou o tempo em que a criatividade tomava conta dos carrinhos: “Tínhamos trio elétrico em formato de carrinho de café pelas ruas, era divertido, mas agora parece que ninguém quer mais vender café dessa forma”, lamenta.

Carrinho de Café. Foto: Divulgação

Foi justamente para valorizar essa ousadia que nasceu o concurso 'Salvador Vai de Cafezinho'. A iniciativa promoveu oficinas, documentários, cursos de capacitação, desfiles com premiação e exposições. Criado em 2021, o projeto teve sua última edição em 2023.

Para entender as raízes dessa tradição, a reportagem conversou com o professor Edvard Passos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Ufba, que deu continuidade ao legado do francês Dimitri Ganzelevitch, 89, que viveu por 50 anos em Salvador.

Início da tradição

Nascido em Rabat, no Marrocos, Ganzelevitch criou na década de 1980 o primeiro concurso de carrinhos, que durante 20 anos premiou os mais criativos da capital baiana. Com a falta de patrocínios, o projeto foi interrompido e retomado depois por Edvard.

Dimitri Ganzelevitch. Foto: Divulgação

Contemplado pela FGM, Passos se aproximou dos carrinhos de café por afinidade profissional e artística. “Ele atravessa todas as minhas áreas de interesse. Salvador é objeto da minha pesquisa”, conta o professor, que também atua como encenador e diretor de teatro.

“O carrinho de café sempre chamou minha atenção por ser um objeto de trabalho, um projeto arquitetônico e, ao mesmo tempo, uma intervenção artística na cidade”, afirma.

O concurso distribuía prêmios em dinheiro, contava com júri técnico e desfiles no Campo Grande. Na primeira etapa, dez finalistas eram selecionados. Na segunda, os três primeiros lugares recebiam R$ 4 mil, R$ 3 mil e R$ 2 mil, respectivamente. Os demais finalistas ganhavam R$ 1 mil cada.

Além de um concurso de desfiles

Apesar de ser estruturado como um concurso de desfile que elege o melhor artesão, Passos destaca que o projeto surgiu, na verdade, da necessidade de fortalecer a articulação entre os profissionais da área. “A proposta é fomentar a organização deles enquanto categoria, apresentando também o pedido de reconhecimento como patrimônio cultural e material”, explica.

Edvard também relembra a luta da categoria por espaço em eventos populares. Em uma tentativa de participação no Carnaval, os vendedores pediram à prefeitura autorização para trabalhar nas festas. Apesar do aval informal da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop), o ofício nunca foi regulamentado nesses contextos.

Segundo ele, o Carnaval — momento de esperança para os ambulantes — é, na verdade, quando mais sofrem. “Uma cafezinha foi desrespeitada, em uma abordagem grosseira por agentes da Semop, e ameaçada de ter o carrinho retirado”, contou Passos. O episódio motivou um protesto chamado “cafeata”, em defesa dos trabalhadores.

A história dessa cafezinha, conhecida como Cris Café e, de tantos outros vendedores que resistem diariamente, está retratada em um documentário da Fundação Gregório de Mattos, que revela os rostos e as histórias por trás dos carrinhos de café de Salvador. 

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