Opinião

Por que o show da virada dos evangélicos incomoda tanto uma parte do Brasil?

O que ofende tanto uma parte do Brasil em evangélicos se reunirem num estádio em São Paulo, e noutra arena em Orlando, nos EUA, para dar boas vindas ao novo ano?

Fonte: Pablo Reis

Por que o show da virada dos evangélicos incomoda tanto uma parte do Brasil? É possível condenar o racismo religioso contra as religiões de matriz africana e, ao mesmo tempo, condenar quem ataca os evangélicos. Foto: Reprodução / SBT

(Olhando à distância, sem conhecer os pormenores da carreira, Claudia Leitte errou. É preciso colocar isso como ponto inicial da conversa. Não há nenhum acerto em mudar letra de música, ainda mais, quando é um tópico sensível, que possa resvalar em intolerância, ou racismo. Todo o direito de louvar, isso traz mais pontos positivos do que negativos. Mas insistir em manter uma música no repertório que contraria os princípios e achar que a solução é apenas alterar uma obra que já está no cancioneiro do público, isso aí soa como mera provocação. 

É até difícil de imaginar algum cantor de reggae jamaicano, querendo imitar a voz singular de Roberto Carlos, e apostando no refrão: “Haile Selassie, Haile Selassie, Haile Selassie, eu estou aqui…” Do ponto de vista artístico, ou do ponto de vista da laicidade, Claudia tomou uma atitude que não parece ajudar a carreira dela e, talvez, só sirva para reforçar o conceito dela perante aqueles que - com o perdão do trocadilho - já são fãs convertidos. Além de contrariar devoções, ainda cria problemas jurídicos. Várias queixas.) 


Dito isso, podemos iniciar a conversa já pela pergunta: o que ofende tanto uma parte do Brasil em evangélicos se reunirem num estádio em São Paulo, e noutra arena em Orlando, nos EUA, para dar boas vindas ao novo ano? Mais do que isso, qual o motivo de tanta ira por uma emissora nacional de tv aberta querer exibir esses eventos, ao vivo, para o seu público? Os crentes têm todo o direito a um Réveillon à altura dos seculares. Além de tudo, eles são muitos, e só fazem crescer. A expectativa é de que tenham chegado a 70 milhões, ou um terço da população do país. Em 1950, somavam apenas 3,6% dos habitantes do país. Uma pesquisa Datafolha de 2020 teve a conclusão de que 31% da população é evangélica. Uma estimativa do IBGE para 2022, baseada em censos anteriores, estabelecia que 26% era de evangélicos. Na melhor hipótese, dá 66 milhões e, na pior, 55 milhões. Colocar em telas este louvor é, também, representatividade.


O abismo da visibilidade


Vira Brasil 2025 do SBT. Foto: Divulgação / SBT


Do elenco que estava na Globo para o elenco que estava sendo exibido no SBT, há um abismo de visibilidade. Em algumas horas de reflexão, fiz uma pesquisa, imparcial e estatisticamente consistente, sobre como é a recepção do público para isto que os mais cáusticos chamaram de Guerra Santa nas tvs. Como não tinha tempo hábil para montar um levantamento completo, o DataPablo usou como amostragem apenas EU MESMO.


Desta maneira, pode-se dizer que a pesquisa indicou que todos os artistas que se apresentaram em Copacabana e, por tabela, no Réveillon da Globo, são conhecidos pelo público (EU MESMO). A saber: Caetano Veloso, Maria Bethânia, Xand Avião, Anitta, Ivete Sangalo. Conheço todos. De alguns, eu poderia até arriscar várias músicas, outros, com menos conhecimento, eu saberia, ao menos, um refrão. 



No outro canal, eram 15 atrações no Allianz Parque, no que foi chamado de “a maior virada cristã do país”. Os nomes, todos, eram muito estranhos ao público de minha pesquisa: André Fernandes, Quezia Cadimo, Alpha Music, Ana Nóbrega, Isaías Saad, Eli Soares, Ronny Oliveira, Sued Silva, Banda Morada, Fernandinho, Richard Gordon. A amostragem do Data Pablo (universo de EU MESMO) desconhecia todos os artistas. 


Três coisas são provadas nessa pesquisa: 


- eu não sou evangélico; 

- como jornalista, estou com problema grave de desinformação seletiva; 

- a programação da Globo estaria mais direcionada para espectadores como eu do que a do SBT.



Só que eu não estive assistindo nem uma, nem outra. É meio antipático quem admite passar a virada do ano dormindo. Há até formas menos prepotentes de transmitir essa informação: eu poderia dizer que descansar de um ano tão atribulado é a melhor homenagem que se faz a 2024 e uma prova máxima de respeito a 2025, que é chegar nele cheio de energia. Mas a realidade é menos lírica: uma escala rigorosa de plantão me deu chance de trabalhar até mais tarde e ter que acordar cedo para continuar em outra jornada.


Portanto, não vi durante a transmissão ao vivo, mas acompanhei a repercussão posterior e, sobretudo, cortes na internet. As reações me pareceram, mais do que equivocadas, inflamadas. Pude ver direcionado à emissora um ódio herdeiro da espécie de rancor que parte do país dedica a comunidades pentecostais, adventistas, batistas, presbiterianos.  

Assim foram alguns gritos digitais: 


“Pobre do SBT. Se depender dos evangélicos, vai falir. Só sabem gritar e chamar o demônio”  






“Lembrando que o SBT passava a banheira do gugu, especial da tiazinha e mais um monte de vulgaridades típicas pra tentar bater a audiência da Globo chega de falso moralismo. Os evangélicos que fiquem com sua cafonice e deixem o povo normal viver.”






“Famosos: Anitta deu uma surra de bumbum nos pastores do Vira Brasil do SBT no quesito audiência” 




 


Usaram até a memória de Silvio Santos para dizer que o dono, frequentador da igreja, jamais permitiria a exibição no seu canal. Em outras palavras, incorporaram (mediunicamente, vai saber) os pensamentos do apresentador.


Um paradoxo é que enquanto uns praguejavam, em pleno show de Copacabana, o sábio Caetano Veloso (senta lá, Cláudia) dedicou ao público a música Deus Cuida de Mim e declarou que ela representa o “o meu extremo interesse no crescimento dos evangélicos no Brasil”. Ele mesmo já tinha se queixado de reações do público da turnê com a irmã Bethânia, que rechaçou o fato de ele ter incorporado ao repertório o hino feito pelo pastor Kleber Lucas. “Não está vendo o Brasil quem despreza os pentecostais e neopentecostais ,que são maioria entre os pobres e pretos, sobretudo entre pretas pobres, e produzem o gênero musical mais buscado depois do chamado sertanejo”.

Vão dizer que Caetano, declarado como ateu, faz essa incursão por interesses comerciais, políticos ou por influência dos filhos evangélicos. Se for uma das três opções, ou todas, mais uma vez: sábio Caetano.


Racismo religioso e a hipocrisia do preconceito


Não é coincidência que, dezoito horas depois da virada, em pleno Farol da Barra, Daniela Mercury e Margareth Menezes, em um elegante e bonito palco tenham aproveitado uma pausa na homenagem à história da axé music para algumas ressalvas: “Se o candomblé sofre preconceito é porque o preto sempre sofreu preconceito, isso é uma consequência do racismo. Que a gente afirme toda a importância das religiões de matriz africana”, desabafou Mercury. Sábia Daniela.. 


Parece clichê, mas vale a pena repetir, mesmo assim. É possível condenar o racismo religioso contra as religiões de matriz africana e, ao mesmo tempo, condenar quem ataca os evangélicos. É legítimo (até recomendável) acolher o praticante do candomblé e da umbanda que sofre ataques e também o cristão que se vê acuado diante de uma intolerância, velada ou explícita. 


Agora, imagine aí, se (quando) os evangélicos se tornarem maioria e começarem a se incomodar com este Brasil?


P.S.: o pós virada me fez conhecer Deus Cuida de Mim. Posso dizer? Se o nome for louvor, hino, oração, pregação, ou, simplesmente, música, nenhuma nomenclatura vai ser maior do que uma sensação: que obra espetacular!


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