Opinião

Senna, o “peão de multinacional” que amamos odiar (ou que odiamos ter que amar)

O comentarista Flávio Gomes considera que o piloto foi transformado em santo no país

Fonte: Pablo Reis*

Senna, o “peão de multinacional” que amamos odiar (ou que odiamos ter que amar)Senna não tem currículo para o que americanos chamam de GOAT (Greatest of All Time). Foto: Divulgação

A declaração ficou famosa, transmitida em rede nacional pelo BBB e depois multiplicada em cortes nas redes sociais. O baiano Davi Brito, ex-motorista por aplicativo, falando o quanto ficava empolgado em ver as corridas do paulistano Ayrton Senna, aos domingos. O detalhe: Davi nasceu em 2002; Senna morreu, imprensado entre o desejo incontrolável de vencer e a curva Tamburello, em 1994.


De alguma maneira, pode ser que Davi não esteja equivocado. A figura do piloto, a bandeira brasileira no cockpit, a trilha sonora meio épica, meio brega, do Tema da Vitória, a narração inflamada de Galvão Bueno, a champanhe no pódio, tudo isso ficou de tal forma no imaginário, que é possível o consciente - ou inconsciente dele - ter registrado como ao vivo as cenas de um flashback ininterrupto.


Assistia ele todo sábado de manhã, quando tinha corrida, no canal 11”, conversava o baiano, enquanto era vigiado por milhões.


No trigésimo ano de morte, a efeméride motivou homenagens de vários formatos. A mais comentada, evidentemente, foi uma série da Netflix (confesso que quando vi uma placa na rua não entendi se era uma cinebiografia, ou um anúncio do Guaraná Antarctica). E, antes de assistir, também tive o meu lampejo de Davi Brito - só que em silêncio e sem câmeras por perto.


A memória mais certeira que eu mantinha do pós-morte dele era do cantor Lobão o chamando de “peão de multinacional”. Eu estava seguro daquela cena: programa do Jô, o apresentador tenta extrair algum elogio sobre o piloto que tinha falecido semanas antes, Lobão se ajeita na poltrona espaçosa, e dispara análises, em volume alto e ritmo acelerado, sobre capitalismo, proletariado, propaganda e programação das massas, até chegar naquele incômodo “peão de multinacional”. Incômodo, porque dava para perceber o desconforto do apresentador, em ouvir aquilo e ter que rebater sem querer ser deselegante com o convidado.


Pesquisando, hoje, descobri que a frase tinha sido dita numa entrevista a Jô Soares, mas não de Lobão: tinha sido na primeira de oito participações de outro músico, o não menos escatológico Rogério Skylab. E, recentemente, o verborrágico compositor admitiu que nem era dele. Tinha ouvido de um intelectual carioca chamado Carlos Henrique Escobar. E eu com minhas certezas de um episódio bem diferente…


A expressão foi repetida, na Folha de São Paulo, edição de 17 de maio de 1994, num artigo do cineasta Arnaldo Jabor. No texto, Jabor se assume arrogante por inicialmente não querer escrever sobre o assunto: “porque vou acabar criticando a dor besta deste povo chorando um mero `peão de multinacional”.'


A construção do herói e suas contradições


O comentarista Flávio Gomes considera que o piloto foi transformado em santo no país, pela forma como morreu, no auge, e pela cobertura que tinha na mídia. “Não é um herói, era alguém que ganhava dinheiro para ganhar a prova”. Por muitos anos setorista de automobilismo da Folha, Gomes conviveu com pilotos o tempo suficiente para criticar o fato de que Senna queria passar a impressão de ter “o monopólio da virtude” (https://youtu.be/Dx7mt8y1X54?si=abbL1MK86sxrHmEH )


Naquele 1° de Maio de 1994, no nefasto autódromo de Ímola, Grande Prêmio de San Marino, na Itália, quase todo brasileiro que era vivo sabe dizer o que estava fazendo. Comoção nacional, três dias de luto oficial, quase 24h de velório, público estimado em 2 milhões de pessoas.


Também pudera. Ali estava o maior nome daquele esporte em todos os tempos. Mas era isso mesmo?


As estatísticas mostram que não. Em número de vitórias, é apenas o sexto, com 41 na carreira. Ficou atrás do francês e arqui-rival Alain Prost, com 51, e 4 títulos; do alemão Sebastian Vettel, com 53, e 4 títulos; do holandês Max Verstappen, com 61, e 3 títulos; do alemão Michael Schumacher, com 91, e 7 títulos; e do inglês Lewis Hamilton, com 105, e 7 títulos, 104 pole positions, 205 pódios.


Senna não tem currículo para o que americanos chamam de GOAT (Greatest of All Time). Os especialistas reagem com contorcionismos para informar que “ninguém era melhor na chuva do que Senna”; “O improviso e a criatividade dele se impunham aos cálculos avançados dos engenheiros.”


Um Brasil que dava gosto


Afinal, qual o motivo de Ayrton, mesmo sendo superado em todos os indicadores por pilotos modernos ou contemporâneos a ele, ainda continuar com aura de Mito? Talvez porque a imagem dele remeta a um Brasil protagonista mundialmente, da primeira metade dos anos 90. Aquele que impunha respeito nas pistas molhadas da Europa, ou nos gramados, secos ou encharcados, de qualquer lugar do planeta.


O Brasil estava nas vitrines do mundo, com chinelos Rider - ou com Guaraná Antártica. Senna representa um período de vitórias, uma nação grandiosa, qualificada e heróica. Aquele capacete, aquele punho erguido, aquela bandeira eram nossa redenção.


As pessoas que sentem saudade de Senna não sentem falta de um piloto de Fórmula 1 (quem é que você conhece que diz que o sonho da vida é que o filho seja piloto de F1?). Elas sentem falta é do que representava aquele macacão vermelho em termos de impor respeito ao mundo, ou de como a champanhe estourando e melando europeus era nossa forma de dizer, “nos vingamos”, ou de como aquela musiquinha no final da manhã era meio que uma senha para “oh, como é bom ser desse país, nesse momento histórico e… vamos abrir uma cerveja para comemorar”.


Era o Brasil que dava certo aos domingos. Era possível ser brasileiro e conseguir atenção e respeito mundiais. Qual o paralelo entre a morte de Senna e a Marília Mendonça? Em que ponto do infinito e do inconsciente coletivo, esses dois funerais se encontram com a alma brasileira?


Essa série de Netflix me fez reorganizar algumas coisas sobre o que era o homem e como formaram o ídolo. As coisas que eu sabia sobre Senna, até então: ele era o maior campeão da Fórmula 1; gostava de usar calças jeans e tênis branco. Tinha namorado com Xuxa.


Antes dessa série, não tinha a impressão dele ser um homem impulsivo. Disso, eu não lembrava.


Coisas que a série quis me ensinar: ele enfrentou resistência dos pais (mas que financiaram todo o começo), a amizade com Galvão Bueno era espontânea e desinteressada, o brasileiro era eroticamente irresistível e dormiu com uma celebridade cobiçada por príncipes, logo na primeira vez que disputou Mônaco.


O que aprendi apesar da série: O instituto que leva seu nome não foi exatamente uma ideia dele. Foi criado mais de seis meses depois da morte, e quando se fala que já impactou a educação de 36 milhões de crianças e adolescentes é porque os métodos de ensino disponibilizados para as prefeituras foram utilizados em 3 mil cidades, alcançando, potencialmente, esse público total.


Apesar da série, aprendi também que a família, notadamente a irmã Viviane, odiava Adriane Galisteu, a ponto de fazer um dossiê contra ela para entregar ao irmão, ou vetar a participação dela como viúva no velório, até mesmo querer ocultar a importância nos episódios.


https://youtu.be/bYZcxVsAglY?si=iD41InTwVbhT-N4u


Como seria o nome para a tentativa de apagar um evento importante da vida de quem não tem mais como se defender dessa supressão? Como seria chamado esse ato de deliberadamente reescrever a biografia de um morto ? Violência, talvez?


E se o ídolo estivesse vivo?


Outra coisa: a imagem que se tornou icônica da bandeira do Brasil levada no cockpit, originalmente, não foi um plano de ufanismo. Os relatos são de que ele estava devolvendo uma gozação sofrida por parte dos engenheiros franceses da Renault, que faziam os motores da equipe Lótus. Era 1986, o Brasil tinha sido eliminado da Copa do México pela França, numa dramática disputa de pênaltis. O revide foi na volta da vitória, com a bandeira.


No trigésimo aniversário de morte, teve gente criando com inteligência artificial um abraço dele com Schumacher e teve gente simulando como seria o rosto dele aos 64 anos. Mas o que eu queria acompanhar mesmo, se Senna ainda estivesse vivo, não era quais recordes quebrou nas pistas, e nem mesmo como ele escolheria se aposentar, ou os rumos da fundação com o nome dele, ou qual loira teria se tornado mãe para os filhos dele. O que eu queria saber, se Senna estivesse vivo, era se ele seria Lula ou Bolsonaro. Sua figura, tão unificadora dos anos 90, resistiria ao nosso tempo de polarizações? E você, o que acha?


*Pablo Reis é jornalista, apresentador da TV Aratu e da Antena 1


Importante: Os comentários são de responsabilidade dos autores e não representam a opinião do Aratu On.

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