Os rifeiros da Bahia, o tarifaço de Trump e o fim do mundo good vibes

Mais de 70 mil fábricas saíram dos EUA para outros países, porque isso se tornou mais vantajoso dentro de um ambiente de livre comércio, de civilidade. Era o mundo good vibes, plano, sem muros, sem tarifas, sem fricções.

Por Pablo Reis.

Que tal a gente iniciar um exercício sobre a controversa guerra tarifária liderada por Donald Trump e juntar isso com a explosão de rifeiros - os criminosos ou os ingênuos - no Brasil e na Bahia? Enquanto boa parte de jornalistas brasileiros se detém a vociferar contra o chefe de estado da maior nação ocidental (movidos por miopia, por ideologia, ou por ignorância mesmo), talvez seja mais interessante buscar alguma lógica intrínseca para atitudes intempestivas. 

Olhemos um passado recente. Os dados mostram que o chamado período de globalização, o pós guerra fria, transformou os Estados Unidos na vitrine do planeta. Com a queda do Muro de Berlim e a ascensão de um mercado globalizado, o consumo explodiu. A América se tornou a maior e melhor prateleira do supermercado planetário. Todas as nações, industrializadas ou não, buscam vender ali. 

Isso teve um custo. Mais de 70 mil fábricas saíram dos EUA para outros países, porque isso se tornou mais vantajoso dentro de um ambiente de livre comércio, de civilidade. Era o mundo good vibes, plano, sem muros, sem tarifas, sem fricções. O universo teletubbies, que resistiu por quase 40 anos.
(Eu, e muita gente que pode estar lendo, só vivemos nessa forma de encarar as relações entre países, governos e corporações).

Só que isso teve também seu ônus. A avaliação é de que, no processo, pelo menos 6 milhões de postos de trabalho em fábricas sumiram nos EUA. Não são seis milhões de desempregados, é mais grave. São milhões de empregos que migraram para nunca mais voltar. O chão de fábrica, esse que moldava famílias e cidades inteiras, virou poeira, repatriado para nunca mais. Adeus.

Rifeiros E Trump

Consumo: sacramento laico

Mas a engrenagem capitalista não pára. A economia precisava continuar pujante, prateleiras cheias, cartões de crédito apitando nas máquinas, lares lotados de utensílios, tecnologia exigindo a renovação quase anual de eletrônicos. América é consumo na veia, é um way of life. (Alguém consegue perceber aí a razão de nos States haver até programa de televisão especializado em acumuladores e suas neuroses?)

Como é que se sustenta isso? Restaram os trabalhos no setor de serviços. Só que nem todos. Para os menos glamourosos, os braçais, já se relegaram os imigrantes - abundantes e sedentos pelo sonho americano. Aí ficaram os chamados trabalhos criativos, que seriam os mais qualificados. 

E restou a falácia do empreendedorismo, que ficou vendido para todo o Ocidente, como uma forma de tocar a vida com prosperidade quase infinita. Será? Guardemos esse tema de empreendedorismo para depois…

 

Ponte para o Brasil

Panorama lá do Norte posto, agora, precisamos vir dar uma corridinha para entender o Brasil. E para analisar o tipo de risco que estamos correndo. A pesquisa Novo Caged, do Ministério do Trabalho, de janeiro deste 2025, aponta que há 47,7 milhões de brasileiros empregados (nos setores público e privado). Só que a PNAD Contínua, do IBGE, estima que 103 milhões de pessoas trabalhavam no país, no mesmo janeiro (e isso é menos de 58% da população economicamente ativa no Brasil).

Qual a principal questão que emerge ao colocar os dados lado a lado? Tem muito mais gente na informalidade. Mais de 55 milhões no subemprego, no improviso, do que dentro das regras adotadas pelo país para considerar um trabalho regular.  

Somos um país “chão de fábrica”? Claro que não, e os dados provam. O setor de serviços emprega 50% a 55% das pessoas, seguido pelo comércio (20% a 25%). Aí vem a indústria, com 12% a 15%, colada com o serviço público, de 10% a 12%. Construção e agropecuária são quase equivalentes, oscilando entre 6% a 9% dos trabalhadores. 

Onde estão os quase 60 milhões sobrevivendo na informalidade? Empreender é para todos? É simples? Exige características especiais e raras para ter sucesso. Empreender é diferente de fazer um corre. Fazer um corre é urgência e emergência, é SAMU e UTI. Empreender é planejamento e execução, é wellness e SPA. 

Quando o conceito sobre o que seria empreender vira armengue, aí surge o jeitinho, o improviso, a rifa - mais uma de nossas jabuticabas. É desespero disfarçado de oportunidade. 

Tudo leva a crer que uma ideia subjacente na guinada do transatlântico americano é voltar a olhar para as fábricas perdidas, não com nostalgia e remorso, mas tentando reverter os chamados cinturões de ferrugens, que se formaram onde antes produziam carros, navios, itens de consumo. Regiões que colecionam desemprego e opióides. Virou meme chinês mostrar americanos obesos e vermelhos, suando numa linha de produção. Pois é, terceirizar a mão de obra, que era sinal de status, virou razão para piadas bem animadas por Inteligência Artificial. 

 

“Meu filho é doutor”

Aqui no Brasil, começamos a abdicar dos cursos profissionalizantes para que pais e mães orgulhosos fossem vistos contando a todo mundo que o filho agora era doutor. Mas aí também assistimos, numa proporção desagradável, bem maior do que esperávamos, advogados e engenheiros formados pilotando Uber para pagar as contas. A euforia evapora na hora. 

Conversei, na Antena 1 Salvador, com o presidente do Conselho Nacional do SESI, Fausto Augusto Junior, pela ocasião em que o sistema anunciou 25 mil vagas gratuitas para cursos profissionalizantes (3 mil destas na Bahia). A análise resumida dele: “O Brasil é o país dos bachareis. A universidade acaba sendo um funil para o mercado de trabalho e, muitas vezes, o formado em nível superior acaba não encontrando emprego naquela área de formação. Temos dificuldades de fazer a ponte entre a escola e o mundo do trabalho. A educação profissional entra nesse hiato. Esse é um debate que a gente fazia nos anos 90.” 

Vamos aos números do ensino superior no país, entre os anos 1960 e 2020. Depois, comparemos com o ensino profissionalizante.
 
Nas décadas de 1960 a 1980, o conceito de ensino superior era elitista, com 30 universidades no país, a maioria públicas. Estimativa de 60 mil alunos. Após a ditadura, a quantidade de universitários chega a quase um milhão. Mas é com a redemocratização e Lei de Diretrizes e Bases da educação, de 1996, que o número de estudantes explode, chega a 2,7 milhões, em 2000, segundo dados do Mapa do Ensino Superior. 

Os anos 2000 abrem portas para faculdades com o Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Em 2008, o número de universitários atingiu 5,8 milhões, com um crescimento de 8,5% em relação a 2007, conforme o Censo da Educação Superior de 2008. Em 2010, o total chegou a 6,5 milhões, sendo 6,3 milhões em cursos de graduação e 173 mil em pós-graduação.

O crescimento continuou, com destaque para a modalidade de educação a distância (EAD). Em 2013, o número de matrículas era de 6,2 milhões (Mapa do Ensino Superior 2015). Em 2016, o total foi de 8,05 milhões, segundo o Censo da Educação Superior de 2016. Em 2019, o número de matrículas atingiu 8,6 milhões, sendo 6,5 milhões na rede privada (Censo da Educação Superior 2019). Em 2018, o número de matrículas foi de 8,45 milhões, com 3,4 milhões de ingressantes, um aumento de 6,8% em relação a 2017.

Em 2020, o número de matrículas no ensino superior foi de 8,6 milhões, segundo o Censo da Educação Superior, com um crescimento contínuo, apesar dos impactos da pandemia, graças à expansão do EAD.

Resumo do crescimento:
1960s: ~50.000-60.000
1980s: ~500.000-1 milhão
2000: 2,7 milhões
2010: 6,5 milhões
2019: 8,6 milhões
2020: 8,6 milhões

Agora, a radiografia dos cursos técnicos e profissionalizantes, no mesmo período, entre  1960 e 2020. 

1960s-1980s: Durante esse período, o ensino técnico era uma alternativa comum para jovens que não acessavam o ensino superior, mas não havia uma política nacional robusta para sua expansão. O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), criado em 1942, era um dos principais provedores. Estima-se que o número de matrículas em cursos técnicos estivesse na casa de 100.000 a 200.000 nos anos 1960, crescendo lentamente para cerca de 500.000 nos anos 1980, com base no aumento da industrialização e da oferta de cursos pelo Senai e pela rede pública.

A partir dos anos 1990, o ensino técnico começou a ser mais estruturado, mas ainda era ofuscado pelo crescimento do ensino superior. Em 2000, não há dados exatos, mas a estimativa é de um milhão de pessoas. 

Em 2014, uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) indicou que apenas 6% dos jovens brasileiros de 15 a 24 anos estavam em cursos profissionalizantes, o que equivalia a cerca de 1,5 milhão de matrículas, considerando a população dessa faixa etária. Em 2016, o número de matrículas em cursos técnicos era de cerca de 1,8 milhão, segundo o Observatório EPT. Em 2019, o número se manteve próximo a 1,8 milhão, mas caiu para 1,75 milhão em 2021, devido aos impactos da pandemia, que interrompeu uma tendência de crescimento observada desde 2016.

Em 2020, o número de matrículas em cursos técnicos foi de aproximadamente 1,77 milhão, segundo estimativas baseadas em dados do Observatório EPT e do Censo da Educação Básica, refletindo uma leve recuperação em relação ao início da pandemia.

Resumo do crescimento do ensino profissionalizante:
1960s: ~100.000-200.000
1980s: ~500.000
2000: ~1 milhão (estimado)
2014: ~1,5 milhão
2019: ~1,8 milhão
2020: ~1,77 milhão

Crescimento Relativo
Ensino Superior: Entre os anos 1960 e 2020, o número de universitários cresceu de cerca de 50.000-60.000 para 8,6 milhões, um aumento de aproximadamente 14.300% 

Cursos Técnicos/Profissionalizantes: No mesmo período, o número de matrículas em cursos técnicos passou de cerca de 100.000-200.000 para 1,77 milhão, um aumento de cerca de 885% (usando 200.000 como base). 

No mesmo período, a população brasileira aumentou de 52 milhões para 211 milhões, crescimento superior a 300%.

 

Fatores de Desinteresse

Atração pelo Ensino Superior: O crescimento exponencial do ensino superior, especialmente a partir dos anos 2000, foi impulsionado por políticas públicas (Fies, ProUni, expansão de universidades federais) e pela percepção social de que um diploma universitário oferece melhores oportunidades de emprego e salário. Em 2019, a remuneração de quem tinha ensino superior completo era quase três vezes maior que a de quem tinha apenas o ensino médio, segundo o Mapa do Ensino Superior.
Baixa Valorização dos Cursos Técnicos: Apesar de 90% dos brasileiros acreditarem que a formação técnica aumenta as chances de emprego (pesquisa CNI, 2014), 75% nunca fizeram um curso profissionalizante, citando falta de tempo (40%), recursos (26%) e interesse (22%). Isso sugere que, embora os cursos técnicos sejam vistos como úteis, eles não são a primeira escolha para muitos jovens.

Há um Desinteresse Progressivo?
Sim, os dados indicam um desinteresse relativo pelos cursos profissionalizantes em comparação com o ensino superior. Fatores culturais (valorização do diploma universitário), econômicos (maior retorno financeiro) e estruturais (políticas públicas que priorizaram a expansão universitária) terminam combinando com a percepção de que os cursos técnicos são uma "segunda opção".

 

Será uma simples casualidade no dia que o mundo se revela em pânico generalizado pela trade war escalando, a Polícia Civil da Bahia prender 23 pessoas por aplicarem golpes de rifa na internet (chegando a cifras de R$680 milhões em contas)? E que policiais militares são acusados de prestarem assistência para que esse dinheiro corra livremente até chegar na lavanderia do crime organizado e do narcotráfico? Não acredito em coincidências. Fazer essa conexão Washington, Feira de Santana, Busca Vida e Beijing pode ter sentido. Tá tudo dominado. 

Siga a gente no InstaFacebookBluesky e X. Envie denúncia ou sugestão de pauta para (71) 99940 – 7440 (WhatsApp).

Comentários

Importante: Os comentários são de responsabilidade dos autores e não representam a opinião do Aratu On.

Nós utilizamos cookies para aprimorar e personalizar a sua experiência em nosso site. Ao continuar navegando, você concorda em contribuir para os dados estatísticos de melhoria. Conheça nossa Política de Privacidade e consulte nossa Política de Cookies.