'Pessoas trans não nascem com 18 anos', diz mãe que criou a primeira ONG do Brasil voltada a crianças trans
Aratu On relata experiências de famílias com filhas trans em homenagem ao Dia Internacional da Visibilidade Transgênero, comemorado no domingo, dia 31 de março
“Eu não deixaria meu filho tomar uma decisão assim”
“Isso é coisa dos pais que influenciam”
“Crianças ainda não sabem o que querem”
Quando o assunto é transgeneridade, não é raro ouvir frases como essas - tantas vezes relativizadas -, ainda mais se o processo de transição é iniciado na infância. Mas dá para relativizar uma criança que, aos quatro anos, fala em “cortar o pipi” para poder ser uma menina?
É por isso que, há mais de cinco anos, a comunicóloga paulista Thamirys Nunes, 34, destaca uma outra afirmação: “Pessoas trans não nascem com 18 anos”. Ela é mãe de Agatha, uma menina trans com nove anos de idade, e vem redescobrindo e ressignificando a maternidade.
“Teve o momento em que eu imaginei, sim, que isso fosse uma fase, que era da parte de experimentação da criança, do processo de aprendizagem, que era uma brincadeira… mas a criança foi mostrando cada vez mais consistência, insistência e persistência no seu lamentar em existir no masculino, e nos seus interesses do universo feminino, na sua idealização em ser menina e poder existir como menina. Fui começando a compreender que, talvez, não fosse só uma fase”, relatou Thamirys ao Aratu On, que por sua vez traz a experiência de famílias com filhas trans em homenagem ao Dia Internacional da Visibilidade Transgênero, comemorado no último domingo, dia 31 de março.
Após passar por diversas situações de preconceito e desinformação, de violações de direitos da filha, e dela, enquanto mãe, Thamirys resolveu entrar para o ativismo e buscar os direitos de Agatha, “de todas as formas, enquanto cidadã”. Foi assim que, em 2020, surgiu o “Minha Criança Trans” (@minhacriancatrans), perfil no Instagram no qual compartilha e troca experiências.
O espaço cresceu e a mãe de Agatha entendeu que era a hora de ter um protagonismo dentro do movimento social da temática, com a força de uma organização, para chegar a lugares e fazer trabalhos que ela, como pessoa ativista, não conseguiria. Então, em 2022, nasceu a Organização Não Governamental (ONG) Minha Criança Trans (MCT) - a primeira do Brasil a tratar exclusivamente das questões que envolvem saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos das crianças e adolescentes trans.
Um ano antes, a comunicóloga tinha dado entrada em um inquérito civil público federal para investigar se havia alguma política pública no Brasil que protegesse crianças e adolescentes trans. Não havia.
“Existe para crianças [de modo geral], mas a nossa constituição diz para tratar os desiguais com as suas devidas desigualdades, e as crianças trans são mais vulneráveis, estão mais expostas, mais violentadas e então, sim, é necessário que a gente tenha mais políticas públicas, leis, projetos do estado, do governo, para protegê-las”, reforça.
Além da falta de políticas públicas, a falta de informação é uma das principais vias para o preconceito, na visão de Thamirys. “A desinformação é fundamental para que o extremismo conservador consiga angariar pessoas. As pessoas não entendem sobre o assunto, misturam identidade e sexualidade… Os maiores haters que eu sofro são me chamando de pedófila”, exemplifica.
De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), “o conceito de identidade de gênero está atrelado ao relacionamento da pessoa com seu próprio corpo. Existem pessoas que nascem biologicamente mulheres, por exemplo, mas não se identificam com esse gênero desde a infância, o que gera um conflito interno. Já a sexualidade diz respeito a com quem alguém se relaciona.”
'UMA MÃE EM DESESPERO'
Devido à desinformação, ao preconceito e às tristes estatísticas - o Brasil é o país com mais assassinatos de pessoas trans no mundo, segundo o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) -, não é surpresa o principal medo de Thamirys em relação à filha Agatha. “Violência. Violência. Violência”, enfatiza.
“O número 35, que é a expectativa de vida de uma mulher trans branca, no Brasil (porque se for preta e periférica é 27), é um número que me amedronta”, afirma. “Este ano eu faço 35 e essa é a expectativa de vida da minha filha. E 35 anos, para uma mãe, é muito pouco. A minha filha merece mais. Eu preciso ser mais. Eu preciso sonhar com uma vida em que a violência não atravesse minha filha, onde ela não tenha que provar ser melhor que todos ou muito mais que todos pra ter a mesma oportunidade que os seus”, acrescenta.
Por isso, ela se denomina “uma mãe em desespero”. “Eu deixo minha filha na escola todo dia e penso ‘será que é hoje?’ Será que é hoje que vão bater nela, que vão xingá-la, maltratá-la… Nunca estou segura de que minha filha está em um ambiente em que nada possa acontecer. E isso é angustiante, aterrorizante”, confessa.
Mesmo tão pequena, Agatha já sofreu bullying diversas vezes, segundo Thamirys. “Não na escola em que está agora [em Campinas, onde vivem], mas já precisamos trocá-la de escola algumas vezes, por bullying, discriminação, violação dos direitos dela e dos meus direitos enquanto mãe dela”, explica.
Thamirys também é autora do livro 'Minha Criança Trans'Foto: reprodução/Instagram
'UMA CRIANÇA EM APRENDIZAGEM'
Embora haja acolhimento, respeito e amor na família de Agatha, engana-se quem pensa que a menina tem mais autonomia e já sabe se defender, como pontua a mãe: “Eu consegui, enquanto Thamirys, ter uma confiança, ter uma voz… mas a minha filha é uma criança em processo de aprendizagem. Não só da transgeneridade dela, mas de diversas coisas. Ela está se conhecendo, conhecendo os amigos, lida com questões de aprendizado e no meio disso tudo ela ainda não desenvolveu autoconfiança suficiente para sustentar o peso que é ser trans”.
Exemplo disso é que, há pouco tempo, a pequena falou à mãe que o maior medo dela é não se casar. “Eu repito sempre que criança não namora, não tem marido, mas aí ela fala: ‘mas, mãe, meu medo é que eu nunca tenha um marido’. Por quê? Porque ela não vê os pares dela na escola; não vê uma menina trans, mais velha, namorando um menino. Então ela não tem referência. Ela só vê menina cis namorando com menino cis”, cita.
“É uma das angústias da minha filha. ‘Tá’ cedo, mas é uma preocupação que ela já tem, porque ela não se enxerga nesses espaços de casamento. Aí eu tento mostrar pessoas trans adultas, que são casadas, mas ela ainda tem várias fragilidades e questões”, completa.
ATIVISMO NA BAHIA
Ao Aratu On, Thamirys falou também que, na sua família, cada um teve “seu tempo e seu processo” em relação à transição de Agatha, mas que hoje todos conseguem se manter unidos. Para a família da publicitária Monaliza Nabor, 43, da cidade baiana de Feira de Santana, a cerca de 100 quilômetros de Salvador, o acolhimento também foi o caminho.
Diferente de Agatha, a filha de Monaliza, Júlia, hoje com 26 anos, passou pelo processo de transição já adulta. Nesse caminho, a publicitária ganhou de presente o livro “Minha Criança Trans”, escrito por Thamirys, conheceu mais o trabalho dela pelas redes sociais e iniciaram um contato. Hoje, Monaliza atua como Coordenadora Estadual da ONG Minha Criança Trans na Bahia.
“Eu já fazia parte de outras ONGs, porque minha filha é uma mulher trans lésbica e, depois que saí, Thamirys me convidou. Eu não queria muito, porque Júlia já era adulta, mas ela me explicou que eu também havia passado pelo processo e que tinha condições de acolher familiares, como eu já fazia”, explica Monaliza.
Dentro de casa, a publicitária já percebia que a filha “tinha um comportamento diferente”, embora não soubesse definir. “Acho que eu teria enfrentado mais obstáculos [se Júlia tivesse feito a transição na infância], mas acho que ela teria sofrido menos”, reflete. “Da forma que foi, acho que foi pior pra ela. Como mãe, a gente sempre quer o melhor para nossos filhos. Acredito que se ela tivesse se percebido, antes, a vida dela teria sido mais fácil”, completa.
Júlia e Monaliza Nabor | Foto: arquivo pessoal
Foi durante um intercâmbio em Portugal que Júlia - hoje profissional de Tecnologia da Informação (TI) - se percebeu como mulher e já voltou ao Brasil, às vésperas do lockdown da pandemia de Covid-19, decidida a fazer a transição junto à família. “Ela falou ‘eu quero fazer meu processo de transição perto do meu pai, minha mãe, meu irmão, e depois eu eu retorno para Portugal’, mas acabou ficando, não teve interesse de voltar”, conta Monaliza.
No processo de transição, que envolveu uma equipe multidisciplinar, Júlia passou por avaliações neuropsicológicas e descobriu que era autista nível 1 de suporte. Com isso, Monaliza entendeu que era muito importante, também, trabalhar as interseccionalidades, além de fatores sociais.
“A gente tem pessoas LGBT com deficiência, negras… Os pais precisam entender que isso faz parte da diversidade humana. A gente tem que acolher, cuidar e incentivar”, pondera Monaliza. “No Brasil, muita criança é posta para fora de casa, começa a se prostituir... Muitas são assassinadas. Colocar os filhos para fora de casa os expõe a situações de violência. Se com apoio já é difícil, imagine sem. Enquanto ONG, a gente tenta fazer a nossa parte para que esse apoio emocional, psicológico e afetivo se mantenha”, completa a coordenadora da organização Minha Criança Trans na Bahia.
Mônica Cavalcanti (vice-presidente da ONG MCT), Thamirys, Monaliza e Carize Müller (diretoria da MCT)
'CRIANÇAS COMO SUJEITOS DE DIREITOS'
Cabe ressaltar que, no Brasil, a transição é social, como explica Monaliza: "Elas não podem tomar hormônios e não passam por nenhum processo medicamentoso. Vão mudar a roupa, o nome, os brinquedos... mas isso vai de cada criança".
O acompanhamento psicológico, embora não seja obrigatório para as crianlas, por lei, é recomendado. "A sociedade não vê a criança como um sujeito de direitos. Fomos criados e criamos os nossos filhos dizendo que eles não têm competência nem capacidade para decidir coisas, que quem decide é o adulto. Quando uma criança não se identifica com seu gênero, a família precisa que a criança tenha o acompanhamento dessa equipe multidisciplinar, que já existe no SUS", complementa a coordenadora do MCT.
Assim, o acompanhamento com profissionais serve, de certa forma, para validar os sentimentos da criança. "Às vezes a criança diz que não se sente uma menina, mas a família acha que ela não tem capacidade de decidir isso, como se ser menino ou menina fosse algo que determinasse a sexualidade de alguém. E não é", frisa Monaliza.
Para adultos trans, o acompanhamento psicológico é obrigatório nos casos de cirurgia de resignação sexual.
ATENDIMENTO GARANTIDO PELO SUS
A legislação brasileira também prevê a habilitação de estabelecimentos de saúde na modalidade ambulatorial e hospitalar, garantindo a integralidade do cuidado para as pessoas trans pelo Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o Ministério da Saúde, os serviços ambulatoriais devem oferecer acompanhamento clínico, pré e pós-operatório, além da hormonização, realizados por uma equipe multiprofissional.
Em dezembro de 2022 foram alterados os critérios para a cirurgia de redesignação sexual e construção da neovagina, determinando os seguintes critérios: é preciso ter mais de 21 anos e ter passado pelo acompanhamento clínico e hormonal por dois anos, sendo que esse último é autorizado no SUS a partir dos 18 anos de idade.
O Ministério da Saúde sinaliza que cabe aos gestores estaduais e municipais o planejamento para a estruturação da rede na atenção, credenciando os estabelecimentos de saúde, pactuando na Comissão Intergestores Bipartite (CIB) a habilitação do estabelecimento para que possam formalizar a solicitação ao Ministério da Saúde.
CENTRO DE ATENDIMENTO NA BAHIA
Na Bahia, o Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap) - unidade da secretaria estadual de Saúde (Sesab) - possui ambulatório que atende e acompanha exclusivamente pessoas travestis, transexuais e não binários residentes no estado. Os médicos são das seguintes especialidades: endocrinologia, ginecologia, clinica médica, infectologia, enfermagem, odontologia, pediatria e psiquiatria.
Situado no bairro do Garcia, em Salvador, no local também são realizadas atividades em grupo, psicoeducativas e de convivência, para adolescentes trans, pais e responsáveis, mulheres trans e travestis, homens trans e trasmasculinos, com uma equipe composta por fonoaudiólogo, nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais.
O acolhimento para novos usuários da capital baiana ocorre às quartas-feiras, das 13h às 16h. Para novos usuários da região metropolitana e do interior da Bahia é preciso fazer agendamento por e-mail (cedap.ambtt@saude.ba.gov.br).
O atendimento é feito às terças e quintas, das 13h às 17h, e é necessário apresentar RG, CPF, Cartão do SUS e comprovante de residência. Os telefones (71) 3116-8838 e (71) 99673-3006 (WhatsApp) também estão disponíveis para agendamento. Para mais informações, clique aqui.
EM TEMPO
No ano passado, Thamirys Nunes, junto com a delegação da ONG Minha Criança Trans, esteve na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos para denunciar a falta de políticas públicas que protejam crianças e adolescentes trans no Brasil. A audiência ocorreu no estado de Washington, nos Estados Unidos, e foi a primeira vez que a comissão em questão falou dessa temática, em mais de 20 anos.
Na ocasião, Thamirys falou: "Essa organização nasceu do abandono, da dor de não saber o que esperar para o futuro de um filho trans no país que mais mata a população trans no mundo por 14 anos consecutivos. Hoje, somos mais de 620 famílias em território nacional e 14 no exterior. Se o futuro de uma nação está nas mãos de crianças e adolescentes trans, eu clamo que as nossas crianças e adolescentes trans precisam estar vivas para serem e viverem nesse futuro.
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