Os fura-fila da vacina
Se eu começasse esse texto defendendo prioridade na vacinação para as empregadas domésticas, alguém teria coragem de se opor? Afinal, são uma categoria que – em sua maior parte – nunca parou de trabalhar durante a pandemia, pega ônibus lotado todos os dias e, pela natureza do trabalho, em ambiente domiciliar, é comum que não seja seguido qualquer protocolo sanitário durante o desempenho de suas atividades. Ou você costuma usar máscara dentro de casa? O segundo caso de covid reportado na Bahia foi – inclusive – de uma empregada doméstica. O primeiro foi o da sua patroa, que retornou da Itália infectada e contaminou a funcionária.
Tenho certeza que o parágrafo acima te fez pensar, mas a verdade é que eu poderia fazer uma dissertação semelhante sobre praticamente qualquer categoria profissional, e pareceria igualmente convincente. É o que tem acontecido no Brasil, desde que abriu-se o precedente de vacinar por categoria, e não apenas por idade. Todo mundo se sente especial demais para entrar na fila dos comuns, e sindicatos profissionais defendem, cheios de razão, que suas categorias são exceção e não podem esperar sua vez na fila. O nome disso é corporativismo, e o resultado é sempre o mesmo: conseguem furar a fila da vacina não necessariamente as categorias de maior risco, mas as com maior poder de pressão.
Nesta semana, o governador Rui Costa causou uma polêmica com jornalistas ao se dizer contra a vacinação por categoria. “A ciência já comprovou que o risco é proporcionalmente maior para quem tem mais idade ou alguma doença acessória. Quando elegemos categorias, começamos a vacinar pessoas absolutamente saudáveis e mais novas e deixamos de vacinar pessoas que, se pegarem covid, correm mais risco de morte", disse. Quem me acompanha há algum tempo já está careca de saber do meu pouco apreço pelo governador que nos colocou em último lugar no ranking da educação. Mas, neste ponto, ele está absolutamente correto.
Não vou entrar no mérito aqui, se jornalista (categoria na qual me incluo) está mais ou menos exposto que caixa de supermercado, atendente de farmácia ou entregador de delivery. Seria uma discussão interminável e eu ainda seria acusada de querer promover o genocídio de jornalistas. Mas – num cenário em que há escassez de vacina - não faz sentido vacinar pessoas saudáveis antes de pessoas com a saúde fragilizada. Ressalvados os profissionais de saúde que estão atuando na linha de frente, vacinar pessoas jovens e saudáveis antes é uma estratégia desumana e burra, do ponto de vista da saúde coletiva. É muito difícil dizer não a uma categoria que se sente especial. Custa votos, popularidade, e muita dor de cabeça. Mas, ao dizer sim para a vacinação prioritária de gente saudável de 25 – 30 anos, estamos automaticamente dizendo não para pessoas acima de 50, por exemplo, que – segundo os próprios dados da Sesab – têm 11 vezes mais chances de morrer, caso peguem a doença.
Só que, muitas vezes, esta pessoa acima de 50, cuja vacina demorou mais de chegar por conta dos especiais que não podem aguardar sua vez, faz parte de uma maioria desorganizada, que não tem poder de pressão, e que sempre acaba pagando a conta pela gritaria das minorias organizadas. Dessa vez, o preço pode sair alto demais: a própria vida.
E sabe a empregada doméstica que usei como exemplo no primeiro parágrafo? Esta categoria não foi incluída em nenhuma prioridade. Nunca foi sobre quem corre mais risco, mas sobre quem grita mais alto.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.