O demônio do agro não está na Bíblia; está na mídia
Falar mal do agro sempre foi cool. Mas isso não é espontâneo. Por que o setor que gera um a cada quatro empregos no Brasil - e um terço das ocupações na Bahia - ainda é tão atacado?
Por Pablo Reis.
No Brasil, há um setor que alimenta o mundo, sustenta milhões de empregos, injeta bilhões na economia… e ainda assim é tratado como vilão de novela. Não, não estamos falando de bancos, mineradoras ou empreiteiras. Estamos falando do agronegócio — essa locomotiva produtiva que, para parte da opinião pública, virou sinônimo de devastação, desigualdade e oportunismo.
Não foi o acaso que plantou esse ranço. Foi a retórica.
Algumas semanas atrás, publiquei nas redes sociais a reportagem sobre contêineres de frutas produzidas no norte da Bahia que ficaram retidos no porto de Salvador por causa da incerteza com os valores do tarifaço americano. O conteúdo mostrava o impacto econômico: no ano passado, 36 mil toneladas de manga do Vale do São Francisco tinham sido exportadas para os EUA. Neste ano, a expectativa é menos da metade disso. Desemprego e prejuízo são apenas algumas das consequências esperadas.
Muita gente entendeu a dimensão desse problema, não apenas para um empresário, mas para o estado como um todo. Outros - ruidosos, debochados - pareciam comemorar. Alguns destilaram comentários desse tipo: “Se vendesse as frutas para o Brasil, não estaria passando por isso. Quer vender para exportação (emoji gargalhada). Agora as coisas fica (sic) mais barato (sic) no mercado interno”; “Ridículos que só querem sugar o que a terra aqui dá. Bem feito. Agora, vão ser obrigados a vender para os brasileiros ou se lasquem e percao (sic) tudo”; “Que nada, vende mais barato. Perder faz parte do jogo”.
Por que será que o agro é tão demonizado, mesmo quando é vítima?
Em termos econômicos, a produção do campo não é apenas importante: ela é vital. Dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) indicam que o setor movimentou cerca de R$ 1,3 trilhão em 2024, e foi responsável por aproximadamente um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, somando R$ 2,72 trilhões, nesse mesmo ano.
O ramo agrícola contribui com 70% desse valor, e a pecuária com 30%. Além disso, o setor é um pilar das exportações brasileiras, respondendo por quase a metade (49% do total em 2024) e gerando superávits comerciais que fortalecem a economia nacional. O Brasil foi o segundo maior exportador mundial de produtos agropecuários em 2023, com cerca de US$ 149,7 bilhões.
Em empregos, não fica atrás. O agronegócio absorveu mais de 28,5 milhões de pessoas no primeiro trimestre de 2025, o que equivale a aproximadamente um quarto da população ocupada no país. Você leu direito: se quatro brasileiros estiverem trabalhando, um deles vai estar empregado na agricultura ou na pecuária.
Ainda assim, o setor apanha. Falar mal do agro sempre foi muito cool. E isso não é espontâneo. Há uma campanha difamatória, de décadas, que vai muito além dos apelos vermelhos e inflamados do Movimento dos Sem Terra. Além do MST, políticos, veículos de comunicação, docentes… muitos são os que parecem demonstrar, coletivamente, mágoas contra o setor produtivo do campo.
A mídia, por exemplo, compra com muita facilidade argumentos de que produtores só pensam em maneiras fáceis e baratas de fazer do Brasil um imenso pasto alugado: latifúndio, veneno, desmatamento... A maioria não percebe bem o que está falando, não conhece sequer uma fazenda e não dimensiona a geração de empregos e a movimentação de economia de cidades inteiras, que só giram quando a colheitadeira está realmente em ação.
Uma pesquisa do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA), além de chegar à conclusão de que o agro responde por 25% dos empregos formais do pais, apontou um crescimento nos rendimentos dos trabalhadores e um aumento no nível de instrução e na participação feminina no setor.
No entanto, a narrativa de sucesso é confrontada por uma série de impactos negativos. Pesquisadores e movimentos sociais argumentam que o agronegócio não só não resolve a fome, como estimula, impulsionando a desigualdade.
A fome é culpa de quem produz... comida?
A fome é uma realidade alarmante, com cerca de 20 milhões de pessoas sem ter o que comer no Brasil, apesar do agronegócio prosperar. Frutas classificadas como "refugo" e que não atendem aos padrões de exportação são muitas vezes descartadas, não chegando à população local. Para os estudiosos, a fome e a miséria seriam responsabilidade do setor produtivo, o que, em última análise, poderia equivaler a culpar os professores pelo alto índice de analfabetismo na Bahia, ou os médicos pela saúde ineficiente. Ou os meteorologistas, por eventos climáticos extremos no planeta.
Continuam os argumentos contrários. Há um processo de "reprimarização da economia", onde o Brasil se foca na exportação de matérias-primas e importa produtos industrializados, levando a uma desindustrialização.
Segundo essas vertentes, o setor acarreta “altos custos ao Estado”, recebendo grande volume de créditos e renegociações de dívidas, enquanto contribui pouco em impostos. A modernização no campo, focada no lucro, intensifica a monocultura, a concentração de terras e o uso massivo de agrotóxicos e fertilizantes, resultando em “devastações ambientais” e problemas de saúde para os trabalhadores rurais.
Mas parte da crítica virou caricatura. A lógica é a seguinte: se o agro é forte, é porque está sugando o fraco. Se exporta, é porque abandona o povo. Se lucra, é porque explora. O sucesso virou suspeita.
O presidente da Faeb, o veterinário Humberto Miranda, ex-prefeito da cidade de Miguel Calmon, reconhece que o setor “deve dar a mão à palmatória”. Mas não por falhas ambientais. “A gente ainda tem equívocos no campo, mas eu desafio qualquer um a dizer qual setor zela mais pelo meio ambiente do que o setor produtivo”. Miranda conta que 60% das terras protegidas estão nas propriedades. E para quem duvida da boa fé, da consciência e da sensibilidade, ele usa argumentos totalmente capitalistas. “Se eu tenho um rio em minha fazenda, não vou contaminar porque isso desvaloriza meu patrimônio, do mesmo jeito que não posso prejudicar um manancial e nem fazer com que a terra fique improdutiva. A pessoa que mais tem interesse em preservação é o produtor”.
Nessa lógica, o bom produtor não é só um empresário. É também um gestor ecológico, muitas vezes mais pragmático do que qualquer ambientalista de gabinete.
Para Humberto Miranda, a mão à palmatória é pelo reconhecimento de uma comunicação não tão eficaz com a sociedade. “A gente participar dos mesmos eventos, com os mesmos produtores e falando as mesmas coisas. A gente só conversa com nós mesmos”, reconheceu, na sede da Faeb/Senar, num prédio inteiro localizado no comércio de Salvador.
Para alguns do setor, há também “recalque”, que seria identificado na indústria ou no segmento de bancos. Na Bahia Farm Show de 2024, conversei com o então senador pelo Rio Grande do Sul, Ireneu Orth. Além de político, o fazendeiro fez um diagnóstico direto sobre alguns dos ataques: “Infelizmente, acho que é ciúme. O Brasil se manteve nos últimos anos graças ao agro. Nós precisamos valorizar o que é nosso. O que os brasileiros estão fazendo”.
Só recentemente os veículos de comunicação passaram a conceder espaço ao agronegócio. Do mesmo jeito que criar o ranço não foi ato espontâneo, gerar um princípio de simpatia também exigiu esforço. Isso às custas de muito convencimento - e de muito patrocínio também.
Minha amostragem não é representativa. Devo conhecer uma dezena de grandes produtores rurais, no máximo. Sobre um deles, pairam suspeitas de ser inescrupuloso. Sabe em quais setores, certamente, mais de 10% da categoria agem sem escrúpulos? No jornalismo, entre advogados, na medicina, nos empresários urbanos… em todos os setores, enfim.
A opinião pública sobre o agronegócio é majoritariamente positiva, com 65% dos brasileiros tendo uma percepção favorável em uma pesquisa de 2022, e sete em cada dez demonstrando interesse em saber mais sobre o setor em 2025. Contudo, uma parcela expressiva (22%) estaria disposta a boicotá-lo. Essa "má impressão" ou "má vontade" é, para muitos, justificável. A campanha "Agro é tech, agro é pop, agro é tudo", veiculada pela Rede Globo desde 2016, busca construir uma imagem idealizada do setor. No entanto, esta pesquisa aponta que a campanha adota estratégias de *greenwashing* e desinformação, silenciando impactos ambientais e sociais negativos.
Uma hipótese para a má impressão em setores formadores de opinião reside na discrepância entre a imagem propagada e a realidade vivenciada e investigada. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a chamada bancada ruralista, é apontada como poderoso lobby anti-ambiental que busca influenciar a legislação trabalhista, fundiária e tributária, frequentemente em detrimento dos direitos dos trabalhadores rurais e populações tradicionais.
Os haters do agro dizem que o setor co-opta o discurso de "agricultura familiar" e "sustentabilidade" para se legitimar, embora essas categorias frequentemente não se encaixem no modelo de monocultura e larga escala predominante no setor.
Além disso, formadores de opinião criticam "mitos" difundidos pelo setor, como a ideia de que o mundo sempre dependerá do Brasil para alimentação, que a dependência da China é inabalável, ou que o Código Florestal Brasileiro é o mais robusto do mundo. Para eles, as proteínas alternativas vão se expandir ao ponto de serem consumidas em larga escala, e as sanções contra desmatamentos e mudanças climáticas vão determinar toda a geopolítica.
A complexidade do agronegócio brasileiro reside na tensão entre sua inegável força econômica e os desafios substanciais impostos à sociedade e ao meio ambiente. A "má impressão" em alguns setores formadores de opinião não é arbitrária, mas sim um reflexo de críticas embasadas em dados sobre a fome, a desigualdade, a degradação ambiental, a precariedade do trabalho rural, e as estratégias de comunicação que tentam mascarar ou neutralizar esses problemas.
O agronegócio brasileiro oscila entre a exaltação como motor econômico do país e severas críticas por seus impactos sociais e ambientais. Essa dualidade se reflete em campanhas midiáticas que buscam construir uma imagem moderna e sustentável, ao passo que estudos e movimentos sociais apontam para realidades contraditórias.
A verdade é que o agronegócio brasileiro não é santo nem satânico. É complexo, contraditório, plural. E precisa ser entendido como tal. Aliás, como cada um de nós.
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