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Artigo: Um tratado sobre a angústia e o sentimento de culpa

Artigo: Um tratado sobre a angústia e o sentimento de culpa

Por Cristiane Teixeira

Artigo: Um tratado sobre a angústia e o sentimento de culpaarquivo pessoal

Como forma de adaptação à vida, a consciência, representada pelo ego, detecta os perigos reais e psicológicos que porventura ameacem a nossa integridade. Quando real, podemos chamá-lo de medo, uma proteção que nos mobiliza diante da possibilidade de uma agressão. Há, inclusive, uma dimensão de natureza biológica: diante do perigo, uma descarga de adrenalina é lançada na corrente sanguínea, permitindo ao organismo condições de luta ou fuga.


Partindo para a angústia neurótica, verificamos que esta ocorre muito devido ao conflito egóico entre a realidade e os desejos instintivos, quando as necessidades da alma não estão sendo atendidas. Já a angústia moral pode ser tida como um sentimento acusatório, vindo de dentro de nós mesmos, no qual sentimos que erramos, que somos incompletos, imperfeitos, e que nada poderá ser feito para aplacar essa dor. Desta rigidez é que se origina, então, o sentimento de culpa. Este implacável juiz, ao condenar até mesmo os nossos pensamentos e desejos, passa a nos punir permanentemente, como se a transgressão já houvesse ocorrido. 


A verdade é que, seguindo a linha de pensamento de James Hollis, em seu livro “Os pantanais da alma”, “a culpa se senta como um grande pássaro negro nos ombros de quase todos nós”. Volta e meia, quando estamos nos desenrolando no fluir da vida, libertos do passado, este sentimento parece nos perseguir, corroendo a espontaneidade e trazendo-nos cada vez mais medo e vergonha. Para se debruçar sobre a análise deste sentimento tão prevalente, é necessário separardidaticamente a culpa por responsabilidade, como defesa neurótica e a culpa existencial.


A culpa como responsabilidade ocorre em um nível em que o indivíduo precisa reconhecer e aceitar as consequências das suas escolhas, por mais inconscientes ou imaturas que tenham sido. Há que se perceber, no entanto, que dentro de cada um de nós, ou até mesmo dentro da cultura, existem forças que concorrem para que façamos escolhas que possam causar danos ou levar outros ao sofrimento, consequências estas que muitas vezes não puderam ser previstas. Neste tipo de culpa, é possível obter redenção quando, através do arrependimento, reconhecemos e reconstituímos o caminho, refazendo os laços. Como essa compensação, geralmente, só é possível no período em que o evento ocorreu, não é rara a busca pela redenção através do refazimento e do benefício em outros meios de mesma temática. Estaria aí inserida grande parte das “despretensiosas” boas ações do planeta?


Talvez este caminho seja não somente uma demonstração de maturidade, mas também uma condução à libertação da angústia e da ansiedade que ela acarreta. Nas religiões onde se pratica a confissão como forma de remissão dos pecados, os fiéis muitas vezes encontram a oportunidade de se libertar dos fardos do passado, que paralisam e prejudicam a capacidade de progredir nas novas escolhas. Como aspecto negativo, no entanto, esta prática pode fazer com que o devoto deixe de elaborar a sua própria sombra, uma vez que, nas palavras de C. G. Jung, “tem sempre ao seu dispor uma confissão e absolvição para equilibrar um excesso de tensão”.


Na culpa neurótica, a angústia ocorre como uma defesa devido à não permissão para sermos quem somos. Isso porque fomos condicionados, desde a infância, a reprimir nossos mais puros instintos: precisávamos nos adequar à vida em sociedade. Sentir-se culpado por dizer não, por exemplo, é um sentimento que ocorre devido ao medo de que o outro fique aborrecido conosco. Essa culpa não é autêntica, pois não reflete a admissão de termos realmente causado mal aos outros. Para que não nos enveredemos em uma eterna “montanha-russa emocional”, precisamos refletir que as escolhas o tempo todo necessitam ser feitas e que,invariavelmente, desagradaremos a uma parcela.


Por fim, a culpa existencial, inerente à condição humana, talvez seja a mais difícil de carregar e a menos passível de ser por nós absolvida. Como exemplo da nossa cumplicidade com o mal no mundo, podemos reconhecer que matamos animais para obtermos o alimento de cada dia, destruímos vegetais e, se pararmos de comer, cometemos suicídio. A verdade é que todos acabamos tendo que competir na arena da vida, e tomamos alguma coisa para nós em detrimento de outras. Ao longo da história da humanidade, agredimos constantemente a natureza, destruímos e exploramos povos em guerras e invasões e, mesmo que de forma inconsciente, muitas vezes ficamos pouco à vontade no mundo que nós mesmos criamos.


Pode-se dizer, portanto, que a culpa é um sentimento praticamente onipresente na vida moderna. Perdoar a nós mesmos talvez seja a tarefa mais difícil de todas. Não é uma ação automática nem uma simples resolução a ser estabelecida. O auto perdão é um processo que exige vivência do seu significado mais profundo, sem o qual não alcançaremos o aprendizado necessário. Para lidarmos com este tipo de culpa, temos que admitir para nós essa dualidade moral, pessoal e cultural, reconhecendo que somos responsáveis, não somente pelas decisões que tomamos, mas pelas inúmeras coisas que deixamos de fazer. Ao nos darmos conta de que somos inevitavelmente imperfeitos, certamente damos um grande passo rumo à autoaceitação, recuperando a liberdade e a capacidade de escolher de forma consciente o nosso caminho.


*Otorrinolaringologista do NOOBA e do Hospital Aeroporto - Pós-graduação em Teoria Junguiana (Psicologia analítica)


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