TRAGÉDIA NO MAR: Falta de estrutura obriga moradores da Ilha a se arriscarem em travessia
TRAGÉDIA NO MAR: Falta de estrutura obriga moradores da Ilha a se arriscarem em travessia
Falta de investimento em infraestrutura. Este é o motivo que obriga milhares de moradores do município de Vera Cruz a fazerem, diariamente, uma travessia marítima em direção a Salvador. Pelo menos é o que defende o prefeito local, Marcus Vinícius (PMDB), se alinhando a um pensamento que é senso comum em grande parte da população.
E foi justamente em uma dessas viagens que aconteceu a tragédia do último dia 24 de agosto. O naufrágio da lancha Cavalo Marinho 1 resultou na morte de 19 pessoas e deixou dezenas de feridos. Além deles, uma adolescente que estava na embarcação ainda está desaparecida.
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O acidente no mar aconteceu por volta das 6h40, apenas dez minutos depois de a lancha deixar o terminal de Mar Grande. Havia 124 pessoas a bordo, incluindo a tripulação, naquele momento fatídico. Segundo o prefeito da cidade, o desfecho da trágica viagem não só tomou a Ilha de uma enorme tristeza, mas deu margem a uma reflexão importante.
?Por que mal o dia amanhece e saímos às centenas da nossa cidade, desde sempre, com mau tempo? […] Por que saímos? Por que, após décadas não há um único investimento público em universidade, faculdade, sejam estaduais ou federais. Onde estão os nossos ?campus?? [sic] Saímos às centenas a cada lancha apenas para nos formar, trabalhar, fazer exames e procurar emprego, porque não há investimentos em Vera Cruz?, publicou Marcus Vinícius em grupos do aplicativo WhatsApp.
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ROTINA ÁRDUA
A indignação do gestor foi compartilhada por muitos moradores que observaram no desabafo uma identificação com suas próprias histórias. Afinal, os personagens da trágica viagem representam apenas uma pequena parcela dos nativos da Ilha que, cotidianamente, enfrentam uma árdua rotina para dignamente arcar com compromissos indispensáveis.
É o caso de Jaciana Damacena. Nascida e criada no distrito de Conceição, a técnica de enfermagem, de 49 anos, resolveu mudar para Salvador porque não suportou o calvário. Em 2013, ela iniciou o curso de enfermagem em uma faculdade de Salvador, mas acabou abandonando a graduação.
?Desisti da faculdade porque muitas vezes não conseguia chegar no horário, principalmente quando o tempo estava ruim. Eu também ficava muito assustada quando tinha um temporal. Isso me traumatizava e não conseguia assimilar bem as aulas?, relatou.
Mesmo deixando o curso, Jaciana não se livrou imediatamente do problema. Ela começou a trabalhar no Hospital do Subúrbio, na capital baiana, e a situação não se modificou. ?Por conta de atrasos, fui chamada a atenção diversas vezes pela coordenação?. No entanto, a situação dessa vez foi contornada, ainda que tenha sido com uma mudança radical.
Ela passou a morar em Salvador, onde coisas boas começaram a acontecer. Porém, a impossibilidade de conviver com o local onde nasceu é uma realidade que lhe incomoda. ?Hoje estou trabalhando também no Hospital da Bahia e minhas duas filhas estudam sem a correria que enfrentei. Uma delas, a mais velha, com 22 anos, está fazendo o curso superior de Biologia?, comemorou Jaciana, ressaltando que, se fosse possível, não sairia de Conceição.
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Com dificuldades semelhantes, a radiologista Claudine da Silva Reis Brandão, 33 anos, lutou pela sua formação. Natural de Feira de Santana começou a morar na localidade de Ilhota, em Mar Grande, com 6 anos de idade. Concluiu o curso fundamental na Ilha, mas optou por fazer o nível médio no Colégio da Polícia Militar, em Salvador.
De 2000 a 2002, todos os dias ela realizava a travessia para a capital. Claudine conta que saía entre 5h e 5h30 de Mar Grande, chegava ao bairro do Comércio em torno de 6h e seguia para a Avenida Dendezeiros, no Bonfim, onde as aulas começavam às 7h.
?Viajei várias vezes com temporal. A água entrava na lancha e era uma agonia, mas eu não tinha medo. Acho que não tinha a noção do risco que a gente corria?, comentou.
Contudo, depois que saiu do CPM, Claudine passou dois anos e meio frequentando o curso técnico de radiologia em uma escola no centro de Salvador. Mais uma vez, as dificuldades não foram diferentes e, em 2007, conseguiu a sua certificação. Três anos depois, passou a trabalhar em Mar Grande, no Hospital Maria Amélia, única unidade que existia em Vera Cruz, mas não levou muito tempo. ?Infelizmente, o hospital enfrentou alguns problemas, acabou fechando e fui demitida?, relatou.
Na mesma época, a radiologista já estava em busca de melhorias na formação e continuava as viagens a Salvador. Buscou graduação superior no curso de Tecnólogo em Radiologia, finalizando em 2012, quando já havia se rendido à maratona e passado a morar na capital. Atualmente, pós-graduada em sua área de atuação, ela consegue se manter em dois empregos.
Por conta dos riscos da atividade em radiologia, Claudine tem uma escala de trabalho relativamente folgada. Ela só precisa cumprir uma carga de 24 horas semanais em cada unidade de saúde. Isso lhe possibilitou, além de atuar no Hospital Municipal de Dias d?Ávila, voltar a trabalhar em Vera Cruz, onde é radiologista da UPA de Mar Grande.
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Se a dura rotina das travessias é vista como dificuldade entre a maioria dos moradores da região, pior fica para os portadores de necessidades especiais. Segundo o presidente da Associação Municipal e Metropolitana das Pessoas com Deficiência, Cledson Oliveira, 44 anos, a batalha é muito mais árdua para quem convive com problemas dessa natureza.
Cledson é cadeirante e mora em um condomínio no Bom Despacho, a poucos quilômetros do terminal do sistema ferry-boat. Pela proximidade, não teria muita necessidade de embarcar nas lanchas que saem de Mar Grande, mas carrega uma grande preocupação com as pessoas que possuem alguma deficiência e precisam encarar a precariedade de acessibilidade naquela travessia.
?Pelo número de pessoas que buscam o serviço, já passou da hora das lanchas deixarem de ser um equipamento artesanal. O ferry-boat, apesar de ser um transporte que ainda precisa de muitos investimentos, possui uma logística menos problemática,? avalia Cledson, considerando que algumas melhorias no sistema foram conseguidas através das fiscalizações e reivindicações da associação junto aos órgãos competentes.
“A gente precisa dispor de uma melhor estrutura por aqui. As pessoas com deficiência têm necessidades de algumas especialidades médicas que não estão disponíveis no município. Nós precisamos contar com serviços de ortopedia, fisioterapia e atendimento psicológico, por exemplo. Se não encontramos, temos que ir para Salvador ou Santo Antônio de Jesus”, reclamou.
Ainda de acordo com o prefeito Vinícius, é injustificável uma cidade com 55 anos de emancipação e quase 50 mil habitantes não ser favorecida por investimentos públicos das esferas estadual e federal que proporcione condições de manter a sua população em seus limites de território para ter necessidades básicas atendidas.
“Acho que o tripé: saúde, educação e emprego deve ser a nossa grande luta. Eu, dentro desse período curto de início de gestão, estou levantando essa bandeira e espero ter uma sinalização favorável das outras esferas públicas. A prefeitura que ser partícipe desse processo, mas nós não temos recurso orçamentário para isso”, declarou o gestor municipal.
CONTRAPONTO
Em contrapartida, o governo do Estado garante que está fazendo a sua parte. Através de sua assessoria, a Secretaria de Comunicação Social (Secom) informou ao Aratu Online que o governador Rui Costa esteve, ao longo de sua gestão, três vezes no município de Vera Cruz nos dias 9 e 31 de julho do ano passado e 9 de fevereiro deste ano.
Ainda conforme a Secom, durante suas visitas Rui autorizou obras e inaugurou outras, ampliando as ações na Ilha. O governo estadual ressaltou, também, que que cabe às três esferas de poder ? Federal, Estadual e Municipal, a realização de ações públicas no município.
A gestão estadual, segundo a Secom, executou obras em Vera Cruz que envolveram recursos da ordem de aproximadamente R$ 20 milhões, aplicados nos setores da educação, saúde, infraestrutura e segurança pública.
Entre as ações, o governo do Estado destaca a realização do mutirão de cirurgias que aconteceu no último mês de maio. Duzentas e cinquenta pessoas realizaram consultas pré-operatórias e foram submetidas a intervenções cirúrgicas de retirada de hérnias (umbilical, inguinal, epigástrica), além de histerectomia e colecistectomia. As cirurgias foram realizadas em junho, no Hospital Geral de Itaparica.
No segmento da educação, o governo ressaltou que a comunidade escolar do Centro de Educação Profissional (Ceep) do Oceano, localizada no distrito de Tairu, em Vera Cruz, ganhou uma sede própria em julho do ano passado. Foram investidos R$ 812,56 mil pelo Estado, na construção de seis salas de aula, diretoria, secretaria, biblioteca, laboratório de informática, sala de professores, cozinha, guarita e banheiros adaptados para alunos com deficiência.
A Secom pontuou, também, que o governo baiano, por meio da Seinfra, recuperou mais 17 km de estrada nos distritos de Cacha Pregos e Baiacu. A obra recebeu mais R$ 7,3 milhões em investimento e foi entregue no último dia 9 de fevereiro, atendendo aos moradores de Vera Cruz. A recuperação das BAs 882 e 868, segundo o governo do estado, beneficia mais de 8 mil moradores da região, incluindo os distritos de Tairu, Aratuba e Berlinque.
O governou acrescentou que a Seinfra está elaborando projeto de recuperação da BA-001, de Bom Despacho até Nazaré – Santo Antonio de Jesus – Valença – Ilhéus. São mais de 320 quilômetros de extensão que passarão por serviços. Também está na programação da secretaria a realização de serviços de manutenção na região da Ilha de Itaparica e Vera Cruz, neste mês de setembro.
Para a segurança pública, a gestão estadual informou que está finalizando obras que resultarão na implantação de módulos das Polícias Militar, Civil, Técnica, além do Corpo de Bombeiros. A estrutura abrigará a 24ª Delegacia Territorial, a 5ª CIPM, a Coordenação Regional de Polícia Técnica, com necrotério, e um Subgrupamento dos Bombeiros Militares.
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*Publicada originalmente às 6h