ADEUS: Morre, aos 78 anos, Seo Bina. O homem que fez a cabeça dos médicos na Bahia
ADEUS: Morre, aos 78 anos, Seo Bina. O homem que fez a cabeça dos médicos na Bahia
“Eu juro, por Apolo médico…”
Se o juramento de Hipócrates norteia o coração dos médicos, na inapelável Bahia, Seo Bina se tarefava da cabeça dos nobres doutores. Aos 78 anos, Pedro Benedito de São José morreu na madrugada da última segunda-feira (13/3). Um infarto silenciou a velocidade de suas tesouras, a precisão das frases cacoetes (“quer que molhe, fio? / “a água tá fria”) e emudeceu um carisma desmedido.
O apelido Bina veio, como sempre há de vir, na infância. Era o quarto de vinte irmãos nascidos em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano. Sonhava em ser jogador de bola. Contava ter um chute potente e fôlego de ponta esquerda de prestável estima. Não vingou. Veio para Salvador para trabalhar como servente. Fez bicos numa indústria de água mineral e refrigerante até que, a convite do conterrâneo Lino Silva de Alcântara, em 1961, começou a cortar cabelo na Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia, no Terreiro de Jesus.
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A cadeira que ocupou viria a ser sua por 56 anos. Quando a escola se transferiu para o Vale do Canela, em ação da Ditadura Militar nos anos 1970, Bina foi junto na incumbência do ofício. Filho do povo, manteve a barbearia ativa numa salinha modesta por quase seis décadas. As palavras não conseguem dar conta da simbólica representação. Usando um jaleco branco, bem parecido com os dos médicos, ocupou e — acima de tudo — se naturalizou num espaço historicamente reservado aos herdeiros das prestigiosas famílias do estado.
Foi além. Assim como escritores consagrados da literatura médica fez a cabeça de tantos clínicos, obstetras, neurocirurgiões, pediatras que viriam a ser responsáveis pela saúde no estado. Virou referência. Recebeu dos alunos o título de “guardião perpétuo” do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina. Conta-se que ajudou a esconder alunos em sua barbearia no recrudescimento do Regime Militar. Algo que, dado a solidariedade que marcava sua conduta, não arrotava como uma medalha reluzente.
Torcedor do Ypiranga, transferiu a paixão pelo Vitória no ocaso do Mais Querido. Gostava de tirar onda com os torcedores do rival. “O Bahia vai ganhar”, “O Bahia reverte o placar”. “Aí já tá ganho”, dizia ante resultados praticamente impossíveis de serem alcançados pelo adversário. Se, por algum acaso, o sobrenatural se manifestasse e o inexequível ganhasse forma, transformava o discurso. Da ironia à profecia: “Eu não avisei?”.
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Cortava cabelo por apenas R$ 5. Entre as tesouradas, ouvia músicas em um aparelho antigo (sempre sintonizado na Educadora — “a única que presta”, dizia). Vez ou outra traía o fiel companheiro pela televisão (entre noticiários e programas esportivos, sobretudo).
Antes de começar o corte, perguntava:
— Quer que molhe, fio?
Antes da primeira borrifada, o alerta:
— A água tá fria.
E geralmente estava.
Bastante.
Fui apresentado a Seo Bina em 2015, após morar um tempo fora de Salvador. Meu irmão, Pedro (xará dele), cliente a quem Bina tinha enorme carinho, foi quem fez a ponte. Entre suas brincadeiras, ele costumava a duvidar da sexualidade de alguém com um gracejo incomum.
— Aquele lá trabalha na imprensa.
— O que é isso de trabalhar na imprensa, Seo Bina?
— É o que a gente fala de quem é fresco.
— Mas, Bina, eu sou jornalista. Logo, trabalho na imprensa. E não sou fresco.
(Silêncio)
— É… Quer que molhe, fio?
O corpo de Seo Bina foi enterrado nesta terça-feira, às 10h, no Cemitério Quinta dos Lázaros. O corpo foi velado na própria Faculdade de Medicina na última segunda-feira. O homem que fez a cabeça de tantos médicos, tornou-se guardião perpétuo da Faculdade e cumpriu à risca parte do juramento grego, de Hipócrates.
“Conservarei imaculada minha vida e minha arte”.
As saudades serão muitas.
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*Publicada originalmente às 11h49