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'Mulheres são as maiores vítimas do racismo religioso', diz pesquisadora

No Dia das Tradições de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, escritora Claudia Alexandre fala sobre as discriminações sofridas pelas mulheres do Candomblé

Por Juana Castro

'Mulheres são as maiores vítimas do racismo religioso', diz pesquisadoraCréditos da foto: Claudia Alexandre, autora do livro "Exu-Mulher e o matriarcado nagôDivulgação

A falta de conhecimento e o preconceito por vezes espalharam a imagem de Exu, orixá, como um "demônio" - algo que adeptos do Candomblé vêm tentando combater há tempos, assim como outras narrativas hegemônicas. E é justamente sobre Exu e uma de suas representações pouco difundidas que a jornalista, pesquisadora e escritora Claudia Alexandre fala em seu novo livro, "Exu-Mulher e o matriarcado nagô".


Aratu On conversou com a autora que, entre outros temas, falou sobre consequências da sociedade patriarcal no Candomblé e também sobre racismo religioso, apontando que as mulheres são as principais vítimas. O resultado da entrevista você confere nesta quinta-feira (21/3), Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.


Na data de 21 de março, também é celebrado o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Sobre as violências sofridas por pessoas de religiões de matrizes africanas, Claudia Alexandre destacou que as mulheres são as principais vítimas do racismo religioso e citou uma pesquisa de 2017 que apontava que 60% dos terreiros na Bahia têm lideranças femininas. "Mais mulheres estão sendo atravessadas por essas violências", conta a escritora. 


EXU-MULHER


Vale destacar, inicialmente, que o livro "Exu-Mulher e o matriarcado nagô" é resultado da tese de doutorado de Claudia, uma pesquisa acadêmica fruto de quatro anos e meio de estudo sobre o tema. "Ele já saiu com bastante interesse da academia por conta da abordagem inédita: entrelaçar dois problemas para o campo das religiões afrobrasileiras", explicou Claudia.


O primeiro, acrescenta a pesquisadora, é em relação ao elemento Exu, considerado controverso, complexo e "utilizado desde antes do processo do tráfico negreiro para as Américas como um elemento demonizante desse corpo negro", explica a escritora.


De acordo com Claudia, essa demonização permanece como uma narrativa que inferioriza os seguidores das religiões afrobrasileiras, ao longo do tempo, visto que "Exu não era um diabo, porque o diabo é uma uma criação cristã, católica, judaico-cristã, que não fazia e não faz parte da cosmologia africana". Logo, ela se questionou sobre o que teria acontecido para transformar um recebimento tão importante para aquele sistema em uma associação ao demônio.


Em um segundo momento, perguntou o que essa demonização e transformações inferiorizantes - em relação a Exu - fizeram com as vivências das mulheres que organizaram o sistema de crenças posteriormente chamado de Candomblé. Foi aí, então, que Claudia Alexandre descobriu a representação feminina do orixá, propositalmente ocultada. "Esse é um problema que começa com o encontro dos primeiros viajantes no continente [africano] com práticas negras, desconstruindo completamente o sentido daquelas crenças negras e narrando para o ocidente", diz.



MULHER: ELEMENTO CENTRAL DO CANDOMBLÉ


Isso porque as primeiras organizações sociais e políticas negras - chamada depois de Candomblé - tinham a mulher negra africana como elemento central de poder e protagonismo. No entanto, como parte das narrativas eram feitas por missionários católicos, houve a ruptura com a parte feminina de Exu. "E aí eu chego na Exu-Mulher", destaca.


Alguns estudos dos séculos XVIII e XVIX, feitos por missionários, apontam que as práticas não eram feitas só para elementos que davam a impressão de ser um masculino (porque tinham falo proeminente). Constataram que, ao lado das representações do masculino sempre haviam as do feminino, mas elas teriam "impressionado" os viajantes, por, além de serem "gigantes", terem seios e vulvas bem demarcadas. Achavam "horrendo".


"Estamos falando de algo estrutural de narrativas que estruturaram Exu como um demônio e que fizeram com que essas representações do falo fossem associadas à sexualidade, mas, para a tradição africana, o falo significa prosperidade, fecundidade, continuidade de vida e não apenas o ato sexual, como quiseram esses missionários. Então houve uma alteração daquelas figuras que eles escreveram", explica.


"O que a minha pesquisa vai dizer, de forma inédita, inclusive, é que Exu é transportado para as Américas já demonizado e masculinizado. Fica  em África essa representação feminina", enfatiza Claudia Alexandre, considerando o ocorrido como um "atravessamento violento" da cosmovisão africana, que não tinha hieraquia de gênero:


"Essa representação de Exu vai nos confirmar sobre uma visão de mundo que respeita a inseparabilidade e complementaridade das coisas. Nada se separa. Homem e mulher estão equilibrados no sistema de vida juntamente com a natureza, que exulta no domínio dos Deuses, e cada um dos deuses africanos representa um fenômeno da natureza. [...] A organização africana é baseada na senioridade [conhecimento passado pelos mais velhos]."


RESISTÊNCIA FEMININA E APAGAMENTO


O primeiro Candomblé que surge na Bahia é o Casa Branca do Engenho Velho, por volta de 1820, 1830... O sistema escravista estava em curso e "muito tenso", como reforça a escritora. "Imagina essas mulheres formando esses candomblés, negociando com a igreja e tendo que assumir que estavam com um elemento já demonizado (e masculinizado?", indaga. "Imagina dizer que, além daquele 'demônio' ser masculino, também era feminino? Elas não puderam assumir a totalidade. Esse Exu nunca foi negado, mas muitas vezes rejeitado pelos próprios candomblés como forma de sobrevivência, mesmo, de enfrentar um sistema muito violento e perseguidor para essas tradições". Confira mais da entrevista com Claudia Alexandre: 


Aratu On: Você acha que a questão do patricardo impera ainda hoje, nas tradições, e quais as consequências dessa negação do feminino?


Claudia Alexandre: Existe uma coisa que é a nossa sociedade brasileira, que é estruturada no patriarcado, no colonialismo e no escravismo, e existe uma organização que conseguiu furar essa bolha e se constituir com o matriarcado que é a dos candomblés. Então, se você disser que esse patriarcado atravessa as relações no interior dos terreiros, eu vou dizer que sim. Uma das primeiras evidências é a própria forma que Exu é inserido no sistema. Exu é inserido num sistema com uma visão completamente patriarcal. Ele era masculinizado, promíscuo e a representação de um demônio, do "mal" nessas religiosidades comandadas por mulheres. Elas nunca perderam o protagonismo nos terreiros, nem no período escravista.


Aratu On: Qual a importância da conservação do matriarcado em Salvador? 


Claudia Alexandre: Conservar esse matriarcado é uma forma de proteção a esse protagonismo e liderança feminina. Estudei três terreiros matriarcais em Salvador: o Casa Branca de Engenho Velho, que até hoje não inicia homens para orixá. Os homens têm função no sistema, mas não são iniciados e, portanto, nunca conseguiram ser líderes; o Terreiro do Gantois, de Mãe Menininha, que além de matriarcal, é matrilinear, porque toda a sucessão é feita a partir do parentesco com Mãe Menininha; e o Ilê Axé Opó Afonjá, também onde só mulheres ganham e recebem o poder de sucessão. Então, o que eu posso responder é que o matriarcado ainda é vivo nos terreiros da Bahia e do Brasil. Há uma pesquisa que que foi lançada em 2017 que diz que 60% dos terreiros na Bahia são liderados ainda por mulheres. [...] Existe, sim, uma boa parcela de terreiros comandados por homens, há uma disputa desse espaço, mas boa parte deles está nas mãos das mulheres.


Aratu On: Essa opressão à mulher tem a ver com o racismo religioso? Como isso ocorre na prática?


Claudia: O racismo religioso é um um marcador da forma em que o racismo opera no campo das religiões e das religiões afrobrasileiras. Fazer uma entrelaçamento de gênero e racismo religioso é importante porque se a gente está falando que o racismo religioso é uma realidade, hoje, no Brasil, e cresce a partir dos dados de ataques - que só aumentam em relação a esse campo das religiões brasileiras -, e que se existe uma maioria de mulheres no comando, a gente vai dizer que mais mulheres estão sendo atravessadas por essas violências. Se boa parte dos terreiros é liderada por mulheres, as mulheres são as maiores vítimas da violência do racismo religioso. É essa a lógica.


Aratu On: E como podemos, enquanto sociedade, contribuir para a diminuição dos casos de racismo religioso?


Claudia: Primeiro, [é preciso de] políticas públicas e campanhas de conscientização que derrubem a negação da existência de que esse problema ocorre na sociedade. A sociedade precisa de mais informações, de ir contra narrativas demonizantes para entender que a liberdade religiosa no Brasil é constitucional. Ela faz parte da Constituição. O racismo religioso fere a liberdade religiosa e a garantia de direitos e isso precisa sensibilizar a sociedade. Não é possível que a sociedade seja impedida de perceber que nós estamos diante de uma guerra religiosa no Brasil. O racismo religioso tem violado propriedades, atacado, agredido e assassinado pessoas, e isso faz parte de uma violência, de um discurso de ódio, de um grupo religioso contra o outro. Nós temos uma urgência e não assumir que é uma guerra religiosa - e silenciosa - é manter o sentimento de impunidade a essa violência.


Quando a gente não tem uma política pública que não só reconheça, mas reduza os danos do racismo em relação à religião, a gente vai continuar com o  sentimento de algo que falta ou insuficiente para tratar desse problema. [...] Acaba ocasionando um sentimento de frustração e de impotência da própria sociedade e dessa sociedade que é mais atingida porque ela é seguidora das religiões de matrizes africanas. Então a gente precisa a gente precisa de políticas públicas eficazes, que as leis sejam cumpridas - porque o racismo religioso, desde o dia 21 de março de 2023, está equiparado ao crime de racismo e também de injúria racial. É crime inanfiançável e imprescritível.


Aratu On: Por isso, a importância da celebração do Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé...


Claudia: Uma nação que não supera o racismo, que fere a sua a sua relação das pessoas da sua sociedade, se ele não supera isso, ele não é um país para todos. E a gente precisa ter um sentimento de que o o Brasil é de todas as populações, principalmente dos povos originários e da população negra que contribuiu - e muito - para a formação da sociedade, mas que é deliberadamente atacada e tem esses valores negados e apagados. Enquanto houver apagamento dos valores e da riqueza dessas cultura negras e indígenas, vamos continuar nos relacionando e acreditando nessas narrativas demonizantes. O corpo negro quando se movimenta é para pertencer à sociedade.


SOBRE A AUTORA


Claudia Alexandre é especialista, mestre e doutora em Ciência da Religião. A tese - que originou o livro 'Exu-Mulher' - é uma pesquisa da Ciência da Religião da PUC-SP, eleita a melhor tese do programa em 2021 e concorreu a um prêmio internacional de teses e teologia em 2022. Ela foi finalista, ficando em segundo lugar.


Vinda de uma "família de Axé", como diz, a pesquisadora vem à Bahia pelo menos duas vezes ao ano. Sacerdotisa umbandista, ela foi, inclusive, iniciada com cargo de Ebomí de Oxum no Candomblé em um terreiro centenário - e hoje tombado - situado na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, o Ile Ogodo Dey.


"Ir à universidade e defender uma tese com esse objeto, falando de mulheres pretas, dos terreiros e falando de Exu demonizado, ataques... Tem a ver com a minha própria vivência religiosa", afirmou a pesquisadora.


LEIA MAIS: Dia das Tradições de Matrizes Africanas é celebrado por pais e mães de santo em Cajazeiras


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