Chacina do Cabula completa 10 anos sem julgamento de policiais
A 'chacina do Cabula' foi o episódio ocorrido em 2015 que resultou na morte de 12 jovens com idades entre 15 e 28 anos
Por Juana Castro.
Muitos números envolvem a “chacina do Cabula”, em Salvador. No dia 6 de fevereiro de 2015, nove policiais militares da Bahia atiraram 143 vezes contra 12 jovens negros, com idades entre 15 e 28 anos, na Vila Moisés. Do total, 88 tiros os atingiram. E, nesta quinta-feira (6), completa-se uma década do episódio que “envergonha a Bahia”, como disse o promotor Davi Gallo à época.
Dez anos, 3.652 dias. Nenhum julgamento.
Foto: arquivo/Aratu On
Em entrevista coletiva depois do ocorrido, o então governador Rui Costa (PT), hoje ministro da Casa Civil, comparou a ação da polícia a um “artilheiro em frente ao gol”:
“É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol. Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a bola teria entrado", disse.
À época, a Polícia Militar (PM) informou que os 12 mortos eram suspeitos de integrar uma quadrilha de assalto a banco. A Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA) chegou a divulgar áudios que indicariam ligação das vítimas com traficantes da região, reforçando a versão da legítima defesa apresentada no inquérito policial. O titular da pasta naquele período, Maurício Barbosa, disse que preferia “acreditar na versão dos meus policiais até que algum outro fato apareça”.
Mas a investigação do Ministério Público estadual (MP-BA) levantou que as mortes poderiam se tratar de vingança, pois dez dias antes, durante operação no bairro, um tenente teria sido atingido com um tiro no pé. A denúncia apresentada pelo órgão apontava indícios de execução sumária e contestava a versão oficial da Polícia Civil, que classificou as mortes como resultado de um confronto. Segundo o promotor Davi Gallo, que participou do caso, "esse caso envergonha a Bahia, com exceção do Ministério Público".
Para o historiador Dudu Ribeiro, “completar dez anos da chacina do Cabula sem responsabilização dos envolvidos, tendo passado por uma absolvição sumária num primeiro momento, demonstra que o tipo de segurança pública que nós temos hoje tem comportado a letalidade como uma possibilidade de eficácia e eficiência”. Isso, ele reforça, é uma ideia que precisa ser combatida.
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“O estado precisa reconhecer que uma ação policial com resultado de morte, ainda que seja uma, precisa impulsionar responsabilização com investigação, reparação e mudança de protocolo”, frisa. Ao chegar ao marco dos dez anos das mortes na Vila Moisés sem essas respostas, para Dudu Ribeiro, mostra a escalada da letalidade policial “que convivemos na última década”. “É uma demonstração ruim de que nós não mudamos e não aprendemos na última década, com a chacina fazendo parte do expediente das forças policiais”, declara.
Ele destaca que a letalidade policial não é produzida exclusivamente pelas forças policiais, e que é necessário que haja uma participação ativa do sistema judiciário, porque é o MP que participa primeiro, na denúncia. No caso de 6 de fevereiro de 2015, no Cabula, inclusive, o órgão apresentou o caso como execução.
“É necessário que o sistema judiciário acolha a letalidade policial como uma possibilidade e, assim, permita que a responsabilização não ocorra”, pontua o historiador, acrescentando que o poder Executivo também deve participar. Mas a declaração do então governador, Rui Costa, segundo Ribeiro, “foi uma demonstração de mensagem de sangue para a tropa. Uma ideia de que, sim, o chefe do Executivo comporta a ideia de que a letalidade é parte da política de segurança pública”.
Esse pensamento preocupa, segundo Dudu, que é cofundador da Iniciativa Negra. Sem responsabilização, parte específica da população tende a ser desumanizada. “É o que temos chamado de 'distribuição da morte enquanto política de estado', e ela é distribuída de forma desproporcional do ponto de vista racial. São as pessoas negras, sobretudo moradoras de periferia, as mais afetadas por essa letalidade, e isso reforça uma lógica de desumanização dessas pessoas que vai transbordar para além da política de segurança pública”, explica.
“As pessoas vão ser desumanizadas para o conjunto das políticas públicas, a partir do entendimento do estado de que aquela vida vale menos, que as vidas daqueles familiares valem menos, que não é necessário haver uma política de reparação aos familiares, que não é necessário haver responsabilização dos agentes envolvidos, porque é 'aceitável' que determinadas pessoas sejam assassinadas”, complementa.
Segurança pública e impunidade
Sobre a possibilidade de federalizar casos como o do Cabula, Ribeiro vê a medida como um instrumento pontual, mas não como solução estrutural: “Isso é um instrumento que pode ser utilizado a partir dos casos concretos, mas o que a gente precisa, de fato, é mudar a lógica da segurança pública, que precisa reconhecer que matar uma pessoa não é aceitável e que isso deve imprimir modificações e responsabilizações”.
Com a profissionalização das ações policiais e o entendimento de que serão responsabilizados por “eventos com resultado morte”, é passada a mensagem de que “o centro da Segurança Pública é a preservação da vida, e qualquer coisa fora disso não é aceitável e precisa ser investigada”.
O historiador chama atenção que ao longo desses dez anos, enquanto não houve responsabilização pelo caso do Cabula, houve aumento nos investimentos em forças especializadas de repressão, que de acordo com Dudu Ribeiro são responsáveis por uma letalidade maior e um “descaso com a investigação”.
Ele destaca que, nos últimos dez anos, enquanto não houve responsabilização pelo episódio do Cabula, houve um aumento nos investimentos em forças especializadas de repressão.
“A maior parte do recurso [do orçamento público da Bahia] vai para as polícias militares; uma parte muito menor vai para a Polícia Civil; e uma parte ínfima vai para a Polícia Técnica. Isso coloca a Bahia, inclusive, como um dos estados com piores índices de resolução de crimes contra a vida. Isso passa uma mensagem ruim para as tropas e para a sociedade”, reflete.
Ao ser questionado pelo Aratu On se a letalidade policial no estado se enquadra no conceito de necropolítica, Ribeiro reconhece a relação, mas afirma que a questão é ainda mais ampla. “Essa talvez seja a face mais nítida da necropolítica, mas ela não se dá exclusivamente na ação imediata e letal do estado. É o percurso de produção de morte, que começa desde a vulnerabilização das crianças e adolescentes negros das comunidades, desde a tomada de decisão sobre tipo de investimento público que é feito em nossas comunidades - que tem parte nesse processo de desumanização da população -, e o resultado final é uma bala, é um tiro, é um evento letal”, avalia. “Ela é parte do entendimento de um estado que distribui de forma desigual a cidadania e as possibilidades de vida e, assim, também distribui a morte enquanto política de Estado”, conclui.
Em decisão considerada rápida, Justiça absolveu policiais envolvidos na chacina
Em julho de 2015, passados cinco meses do episódio conhecido como "Chacina do Cabula", a Justiça da Bahia absolveu os nove policiais militares* acusados de envolvimento na morte de 12 pessoas no bairro do Cabula, em Salvador. A decisão foi proferida pela juíza Marivalda Almeida Moutinho e repercutiu nacional e internacionalmente, sendo destaque no jornal El País devido à rapidez com a qual a sentença foi proferida.
Movimentos sociais criticaram a decisão judicial. Hamilton Borges, da campanha "Reaja ou Será Morto", afirmou: "Se essa decisão se confirma, será a segunda morte dos meninos". O procurador-geral da República à época, Rodrigo Janot, solicitou acesso aos autos do processo, o que poderia levar o caso para instâncias federais caso se constate violação de direitos humanos.
Homenagem às vítimas | Foto: arquivo/Aratu On
*Os nove policiais envolvidos estão como réus e aguardam julgamento em liberdade. São eles: Julio Cesar Lopes Pitta, Robemar Campos de Oliveira, Antonio Correia Mendes, Sandoval Soares Silva, Marcelo Pereira dos Santos, Lázaro Alexandre Pereira de Andrade, Dick Rocha de Jesus, Isac Eber Costa Carvalho de Jesus e Lucio Ferreira de Jesus.