ALÉM, PORÉM AQUI: Barracão das Artes traz vida e ressignifica Forte que serviu de tortura para escravos e presos políticos
ALÉM, PORÉM AQUI: Barracão das Artes traz vida e ressignifica Forte que serviu de tortura para escravos e presos políticos
Do lado de fora, sinto-me pequena e solitária diante de toda a imensidão da estrutura megalomaníaca bem diante de mim. Acima do escancarado portão da entrada, desenhos de uma coroa e das armas imperiais esculpidas em pedra. Uma placa mostra que a construção do Forte foi concluída em 1736, durante o governo do Vice-Rei do Brasil, o Conde das Galveas.
Finalmente entro. Do meu lado direito e esquerdo vejo portões menores de madeira pintados na cor verde escuro. Não faço ideia do que tinha lá dentro nem para que eram/são utilizados. Não havia ninguém que eu pudesse perguntar. O lugar estava deserto.
Um cachorro fazia companhia a uma segurança fardada. Gorda, a moça parecia com preguiça de se movimentar e falar. Talvez pela falta de costume de receber visitantes. ?Boa tarde, tudo bem??, pergunto. E nenhuma resposta é dada. Então saio de fininho…
Confusa para que lado devo seguir para encontrar o Barracão das Artes ? local que eu procurava para fazer a minha entrevista ? perguntei a funcionários que faziam algum serviço em um pequeno espaço do Forte. As outras partes estavam desmanteladas.
Nem parecia que o lugar tinha passado recentemente por reformas emergenciais. Em 2012, o Governo do Estado disponibilizou para as obras, através da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, uma verba no valor R$ 3,3 milhões.
As obras foram concluídas em 2014. Entre as melhorias, estavam capinagem de toda área, pintura, reformas de duas salas que estavam para desabar, além da recomposição e consolidação da alvenaria e dos muros da estrutura.
Subi uma ladeira íngreme e dei de cara com um corredor composto por várias portas e, lá no fundo, avistei jovens negros com cabelo Black Power. Imaginei que eu estava ficando ?quente? e chegando (até que enfim!) ao meu lugar de destino. Até então, pessoas era o que eu menos via desde que adentrei o portão.
As vozes, gritos, sorrisos e euforias ecoavam pelos muros silenciosos do Forte do Barbalho ? o maior Forte de todo o estado. O equipamento foi entregue aos cuidados do 7º Batalhão de Polícia Militar em 18 de maio de 1982 pelo então governador da Bahia — a época Antonio Carlos Magalhães.
O pôr do sol atravessava as paredes duras com pedras entranhadas. Para os desavisados, a irradiação solar seria um dos poucos indícios de vida no local. Mas não. Lá também está instalado o picadeiro do Barracão das Artes, um espaço com multifunções ? mas todas voltadas para a arte.
É lá a sede do Bando de Teatro Sem Nome. A divertida arena também serve de base para as oficinas gratuitas que são oferecidas a crianças, jovens e adultos das periferias de Salvador. ?Aqui oferecemos oficinas de arte integradas, como de teatro, moda, dança, papel marche, música, capoeira e circo àqueles que não têm condições de pagar por essas atividades?, afirma o idealizador do projeto, diretor teatral e educador Fábio Viana.
Implantado em 2011 por Viana, o Barracão das Artes ousa e vai no contrafluxo do aspecto fúnebre do Forte e traz cor, vida e alegria, além de elevar o clima do lugar. É um trabalho de ressignificação do espaço, que outrora serviu de prisão e açoitamento de escravos rebeldes no período colonial. Presos políticos também eram fortemente torturados durante a Ditadura Militar (de 1964 a 1985) no Forte do Barbalho ? que surgiu como trincheira contra as investidas dos invasores holandeses no século XVII, em 1638.
?O Forte tornou-se um espaço de convivência humana, experiências artísticas e culturais, trocas e compartilhamento de boas emoções tendo as artes como instrumentos de inclusão e transformação?, garantiu Viana.
O atual coordenador do espaço, Fernando Machado, acompanhou a trajetória do Barracão desde quando entrou para o grupo em 2011 como aluno, virou instrutor, assistente, passou a ajudar na administração como estagiário e hoje atua como coordenador. “Fui subindo degraus aos poucos e ganhando experiência. Sou muito feliz em poder ajudar jovens a encontrarem prazer na arte”, disse.
A presença dos jovens que estavam lá para as oficinas ? que acontecem de segunda a sábado das 10h às 21h ? era sentida pela alegria e entusiasmo com que falavam do projeto. O empenho também era demonstrado durante as aulas, que acontecem em um tablado de madeira que eles chamam de tatame. Na frente da estrutura, duas arquibancadas fazem jus à proposta do Barracão de servir como espaço cultural de formação de plateia e público e, assim, descentralizar o acesso das pessoas a tradicionais espaços culturais.
“Eu saí do ócio quando comecei a vir pras aulas. Eu chegava da escola e ficava a tarde toda sem fazer nada em casa. Agora me sinto mais disposta e mais bonita”, disse a estudante Paloma Daltro, de 18 anos.
Com apenas 15 anos, Rudmilla Costa – umas das mais vaidosas da turma – diz que se sente feliz de fazer as aulas do Barracão e que, inclusive, já perdeu peso e se sente mais bonita. Veja depoimento da jovem no vídeo abaixo:
Um dos poucos critérios exigidos pelo Barracão (se não o único) é que o integrante esteja matriculado na escola. “Nós pedimos a documentação dos novos integrantes e, se ele for de menor, só deixamos ele fazer parte do grupo se estiver estudando”, disse Viana.
O trabalho de inclusão e remodelagem da vida dos jovens que ali estão é nítido. “Muitos deles não têm dinheiro pra vir pra cá, mas a gente sempre dá um jeito de ajudar. O melhor disso tudo é que eles gostam e se importam de vir para as oficinas. Eles são felizes aqui. E isso me impulsiona a continuar mesmo com tanta dificuldade”, afirma Viana.
A afirmação do educador ficaria no âmbito das palavras se não fosse o coincidente fato de sermos interrompidos por um aluno que acabara de chegar. O céu já estava escuro e a noite adentrava o misterioso Forte.
?Só consegui chegar agora porque não tinha dinheiro do transporte pra vir pra cá. Tive que ir na casa de uma amiga minha pra ela me emprestar, por isso atrasei?, explicou o aluno Vinícius, comprovando a tese do professor
A impressão que tive no Barracão foi que estava renascendo. Saí da vida real e entrei na vida ideal. Lá não há espaço para tristeza. Lá há vida. Sorrisos. Felicidade. Tem toque. Aqui fora, vivemos num mundo cada vez mais digital, mecânico. As pessoas mal se olham, se abraçam, se beijam, mal se sentem.
Saí de lá revigorada. Entusiasmada. Prometi voltar. E vou. Me senti bem, me senti sentida.
O Barracão das Artes segue poderoso nas suas convicções de emitir e exalar amor. Que seja piegas ou não o que vou dizer, mas lá sim está a esperança de um futuro melhor. Mundo, abrace o Barracão. Pessoas, abracem o Barracão. Eles e a nossa vida agradecem.
Mais fotos do espaço onde fica o Barracão das Artes: