Dados do Censo Demográfico 2022 divulgados nesta quinta-feira (27/7) apontaram a Bahia como o estado com maior número de quilombolas no Brasil, com 397.059 pessoas, o que representa 29,9% do total dessa população no país. Esta foi a primeira edição da pesquisa em que povos e comunidades tradicionais foram incluídos no levantamento. Para líderes quilombolas ouvidos pelo Aratu On esse foi um avanço importante, mas eles apontam para a necessidade das comunidades terem mais apoio do governo.
Presidente da ONG Maresom dos Quilombolas da Ilha de Maré, Luciete Neves dos Santos afirma não ter sido entrevistada durante as pesquisas do Censo, alertando para uma subnotificação da pesquisa. Quem também se surpreendeu com os dados do Censo foi Anatelson Conceição das Neves, conhecido como Mestre Reitel do Berimbau, que é morador e representante da Comunidade Quilombola do Tereré, na Ilha de Vera Cruz. Para ele, o número de quilombolas na Bahia é bem maior, já que diversas pessoas não foram ouvidas.
Tanto a quilombola de Ilha de Maré, em Salvador, quanto o representante do Tereré, em Vera Cruz, possuem a mesma visão sobre as políticas governamentais voltadas para as comunidades quilombolas e tradicionais: precisam ser mais aplicadas. Reitel conta que falta infraestrutura básica em boa parte da comunidade, como saneamento básico e pavimentação:
“Quando chove aqui, fica bem difícil de transitar, fica tudo cheio de lama, falta mais saneamento básico, por vezes eles não vem fazer o recolhimento do lixo. Então é preciso que os governantes façam mais por nós”.
Outro ponto abordado pela dupla é o sentimento de “isolamento” causado pelas gestões públicas. Luciete, que trabalha como assistente social, afirma que é comum a contratação de profissionais de fora das comunidades para serviços nos locais em vez de moradores. Isso, segundo ela, mantem a dependência das comunidades, com a centralização de favores, onde figuras políticas prometem determinados serviços em troca de apoio eleitoral.
“A Ilha de Maré tem 40 anos sendo explorada pelas empresas e até hoje a gente não tem retorno. A gente não tem apoio, e não seria necessariamente dos governantes, mas também das empresas”, pontua Luciete.
A QUESTÃO DAS TERRAS
Para a presidente da ONG de Ilha de Maré, é preciso que o debate em relação às terras quilombolas ocorram assim como as discussões sobre a demarcação das terras indígenas. Na comunidade de Vera Cruz, a questão da disputa pelas terras se agravou desde o anúncio do governo Jacques Wagner, que prometeu a construção de uma ponte de ligação entre Salvador e Itaparica em 2009.
“Desde o anúncio da ponte, muitas pessoas chegaram aqui, dizendo que a gente não tinha direito das terras, que eles eram donos. A especulação imobiliária chegou forte. Então muitas pessoas foram ameaçadas e a gente tem vários processos correndo por causa das terras“, contou Luciete.
Mestre Reitel se posiciona contra a construção: “A gente não é a favor da ponte, mas também tem como intervir. O que nós queremos é o garantia do nosso território, que é onde a gente nasceu, onde a gente vive hoje, com nossos filhos e nossos futuros netos”. Para ele, é preciso que haja uma compensação pela apropriação das terras e que não se penalize os moradores da localidade.
A situação em Ilha de Maré é parecida, Luciete afirma que pessoas acabam se instalando no local e ocupando esses espaços. Para ela, essa situação acaba enfraquecendo a comunidade local. “A gente sempre esteve aqui, foram nossos antepassados que chegaram, plantaram, fizeram suas casas. E aí vem empresas, o Estado, outras pessoas, dizendo que a terra são delas, tirando o que é direito nosso!”
TEMPOS COLONIAIS
Criada em 2018, a ONG que Luciete preside busca manter viva a cultura e ancestralidade dos quilombolas de Ilha de Maré, que estão lá desde o Brasil Colônia, conforme narra a moradora: “A comunidade aqui existia desde os tempos coloniais, quando nossos ancestrais vieram para cá para trabalhar no engenho e depois estabeleceram morada, com suas famílias, E foram montando suas casinhas e estabelecendo a comunidade”.
Tendo a “identidade própria” com a cultura ancestral enraizada nas pessoas que moram na localidade, Luciete afirma que a descoberta “do que era ser quilombola”, com todos os direitos populacionais assegurados, foi algo recente, mas que fez “todo sentido” quando elucidado. Mas, ainda assim, algumas pessoas se aproveitam desses direitos, fingindo fazerem parte da comunidade:
“Tem gente que vem para cá e acha que, só porque se mudou para o quilombo, que é quilombola. Não! Cadê a sua ancestralidade? Cadê as dificuldades que passou? Cadê a sua herança, a sua raiz?”.
GUERRA DE CANUDOS
Já Reitel conta que seus familiares se mudaram para a Ilha de Vera Cruz fugindo da Guerra de Canudos; além deles, outros migrantes da região do Recôncavo integraram a comunidade do Tereré. Lá, os direitos dos quilombolas só foram reconhecidos em 2015. Através de uma monografia feita por Anatelson, a comunidade conseguiu reunir as provas para dar entrada nos processos. Segundo ele, foi algo importante para a preservação de suas terras:
“A comunidade foi crescendo e a gente viu a necessidade de procurar esse órgãos, como a Fundação Palmares, para poder se auto declarar como quilombola, para ter todos os nossos direitos assistidos e a garantia do território”.
MANUTENÇÃO DA CULTURA
Luciete afirma que a criação da ONG foi para manter viva a cultura e aprendizados da população negra que habitava a ilha, através da perpetuação dos saberes populares e no incentivo às novas gerações: “A gente busca viver da mesma forma que nossos avós, cultivando os conhecimentos religiosos, espirituais, culturais”. Ela lembra da participação da avó na comunidade. “Ela era curandeira e parteira aqui, ajudou todo mundo com os conhecimentos das folhas, das rezas, e a gente tenta preservar isso”.
É através dos saberes populares que se mantém viva a tradição e a cultura locais, como aponta Reitel. “A gente tem nosso projeto de ensinar capoeira, artesanato, a tocar berimbau, tudo para nossos jovens, mas a gente também está aberto para o turismo”. Reitel afirma que quer compartilhar as experiências para pessoas de fora e, assim, garantir mais renda para o sustento da comunidade. “Mostrando nossa resistência”, diz o representante quilombola.
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