Solastalgia? Conheça sofrimento psicológico ligado à degradação ambiental
A aceleração da degradação ambiental têm produzido um tipo específico de sofrimento psicológico: a solastalgia
Por Bruna Castelo Branco.
A aceleração da degradação de ecossistemas e a recorrência de eventos extremos têm produzido um tipo específico de sofrimento psicológico: a solastalgia. O conceito descreve o impacto emocional de permanecer em um território que está mudando ou se deteriorando, uma espécie de “saudade do presente” que se tornou mais frequente entre comunidades atingidas por enchentes, secas e incêndios.
Criado em 2007 pelo filósofo australiano Glenn Albrecht, o termo ganhou espaço na literatura científica e deixou de ser apenas uma metáfora. Em outubro, um artigo publicado na Nature Mental Health apontou que a solastalgia funciona como marcador sensível do desgaste psíquico causado pela crise ambiental, manifestando-se em sintomas como irritabilidade, angústia, distúrbios do sono e sensação persistente de ameaça.

“Dar nome a esse sofrimento é importante porque permite reconhecê-lo como algo legítimo, que tem causa, contexto e história”, afirma o psicólogo Lucas Marques, professor instrutor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e um dos autores do estudo. “Nomear é o primeiro passo para estudar, compreender e, principalmente, construir respostas de cuidado. A ciência começa a se mover quando percebe que aquilo que parecia um incômodo individual, na verdade, é um fenômeno social que está se tornando parte da experiência contemporânea”.
Para Marques, o conceito desloca o foco da saúde mental do indivíduo para sua relação com o território. “Pensar em saúde mental na crise climática significa entender que cuidar da mente envolve também cuidar dos ecossistemas, das paisagens e das formas de vida que nos constituem”, diz.

Críticas ao modelo psiquiátrico
O artigo observa que a solastalgia ainda não integra classificações psiquiátricas tradicionais, como o DSM e a CID. Não por falta de relevância, mas porque desafia categorias baseadas no sofrimento individual desconectado do ambiente. “O ponto central é que o cuidado não é apenas psicológico, é relacional. Sofrimento coletivo exige cuidado coletivo”, afirma Marques. “Precisamos abandonar a ideia de que cuidar da saúde mental é ‘adaptar a pessoa ao que está dado’. Muitas vezes, cuidar é justamente o contrário: é fortalecer a capacidade de imaginar e construir novos futuros coletivos possíveis”.
Os sintomas associados à solastalgia são semelhantes aos de quadros como ansiedade e depressão, ainda que tenham origem específica. Por isso, especialistas destacam que o objetivo não é transformar esse sofrimento em diagnóstico, mas avaliar seu impacto na rotina. “O quanto isso nos paralisa e nos tira das nossas atividades do dia a dia é que vai ditar se esse tema está levando a um sofrimento para o indivíduo ou para as pessoas à volta daquele indivíduo que se aproxime a um transtorno psiquiátrico”, afirma o psiquiatra Daniel de Paula Oliva, do Espaço Einstein Bem-Estar e Saúde Mental, do Hospital Israelita Albert Einstein.

Embora discorde de que o conceito evidencie lacunas da psiquiatria, Oliva reconhece que o termo sinaliza limites impostos por fatores externos. “O termo pode servir não como um diagnóstico, mas como uma percepção de uma finitude dos recursos e do modelo de vida que a gente tem hoje”, diz.
Para os autores do estudo, a solastalgia é um marcador sensível de desgaste emocional, assim como o corpo reage ao estresse crônico.
Emoções relacionadas
A solastalgia dialoga com outras respostas psíquicas às mudanças climáticas, como a ecoansiedade e o luto ecológico. A ecoansiedade está associada à angústia diante da incerteza climática; o luto ecológico, à perda irreversível de espécies, ecossistemas ou territórios culturalmente significativos.

A solastalgia, por sua vez, ocupa posição intermediária: trata do sofrimento presente, vinculado ao território, decorrente de um processo de perda em andamento. “Esses conceitos são complementares, e não intercambiáveis: juntos, eles delineiam um espectro de respostas psicológicas às mudanças ambientais que vai da ansiedade voltada para o futuro ao luto por perdas irreversíveis e ao sofrimento imediato de testemunhar a degradação sem deslocamento”, escrevem os autores.
O processo pode produzir tanto paralisia quanto mobilização, afirma Oliva. “O que pode, por um lado, afetar a nossa saúde mental, trazendo mais ansiedade e preocupação, por outro pode gerar mobilização para a reconstrução de uma forma mais saudável de vida com nosso planeta, de mudança da relação que a gente tem com o consumismo”.
Impactos práticos
Os efeitos são evidentes em populações submetidas a transformações rápidas ou intensas do ambiente. No consultório, Oliva relata maior angústia entre pacientes que percebem o futuro como ameaçado. “Ainda veremos bastante tanto pessoas que perderam alguém quanto as que precisaram mudar de lugar devido às mudanças climáticas”, afirma. “Ou até mesmo quem passa a lidar com uma rotina mais hostil, com calor, frio, inundações, que vão tensionando o dia a dia e adicionando preocupações e adaptações”.
Segundo o artigo da Nature, o sofrimento tende a se concentrar em grupos vulneráveis — povos indígenas, moradores de periferias urbanas, comunidades ribeirinhas e agricultores familiares — onde impactos ambientais e sociais se acumulam: “Reconhecer e responder à solastalgia representa, portanto, um ato de justiça epistêmica: um passo em direção à legitimação de formas de sofrimento historicamente excluídas dos paradigmas dominantes de cuidado”.

O desafio é transformar o conceito em ferramenta para antecipar efeitos emocionais da crise ambiental. “O cuidado começa reconhecendo o território como parte da saúde”, afirma Marques. “A primeira mudança é compreender que saúde mental não é apenas um tema clínico, é um tema ecológico e social”.
Ele defende que o tema entre nas escolas, em políticas públicas, no planejamento urbano e na mídia. “Precisamos de cidades com acesso real à natureza, comunidades fortalecidas, políticas de proteção ambiental que considerem saúde e bem-estar como parte de seus objetivos e narrativas públicas que reconheçam que sentir dor diante da destruição do mundo é uma resposta humana profundamente compreensível”, afirma. “A crise climática é real, mas as formas de enfrentá-la também são, e passam pelo reencontro entre cuidado, território e comunidade”.
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