Prefeitos baianos pagam dívidas pessoais com verbas municipais; tribunais divergem sobre quem deve fiscalizar casos
Os tribunais de contas responsáveis pela fiscalização divergem a respeito de quem deve investigar casos semelhantes, o que pode culminar em subnotificação de casos
Prefeitos do interior da Bahia vêm utilizando recursos oriundos dos cofres municipais para pagar dívidas particulares com o Governo da Bahia. Segundo apuração do Aratu On a partir de documentos públicos e dados disponibilizados no portal da Transparência do Estado, ao menos titulares de quatro Prefeituras baianas se utilizaram do expediente, que é considerado irregular. Por outro lado, os tribunais de contas responsáveis pela fiscalização divergem a respeito de quem deve investigar casos semelhantes, o que pode culminar em subnotificação.
Os casos constatados aconteceram em Santo Estêvão, Cachoeira, Biritinga e Sobradinho. Os municípios firmaram convênios com a gestão baiana, com recursos utilizados para obras de infraestrutura nas cidades. Os excedentes do acordos fechados, que, junto, somam R$ 600 mil, foram ressarcidos corretamente ao cofres do Estado. Contudo, os valores deveriam ser pagos pelos gestores que assinaram os acordos, não pelos cofres municipais, como foi feito.
A determinação está contida no 89º artigo da Constituição Estadual. “Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais o Estado e os Municípios respondam, ou que, em nome destes, assumam obrigações de natureza pecuniária”, diz trecho do documento.
Segundo o advogado especialista em Direito Tributário, Pedro Cravo, “os gestores são responsáveis pelas contas que movimentam” [VEJA ENTREVISTA EM VÍDEO ABAIXO]. “O gestor, querendo ou não, é uma pessoa que está atrelada ao orçamento que ele aprova. Ou seja, qualquer movimentação que tenha, financeira, orçamentária, ou alguma diretriz nova, vai ser atrelada a esse gestor, porque ele fica como se fosse responsável por toda a gestão da municipalidade naquele determinado evento”, avalia ele, que é membro da comissão de direito tributário OAB-BA e pós-graduando em Direito Público Municipal.
A informação também é reiterada pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), que, em nota enviada à reportagem, diz que “os débitos são imputados aos responsáveis (pessoas físicas) pelos convênios que causaram o dano”.
A reportagem identificou estes quatro casos, mas o número de gestores que se utilizam deste expediente pode ser ainda maior. Os Tribunais de Contas dos Municípios (TCM) e do Estado não possuem entendimento semelhante a respeito do assunto, o que impede que haja mapeamento mais detalhado das cidades que podem ter cometido irregularidades neste sentido. Na mesma nota enviada à reportagem, o TCE informa que “não é possível identificar estes casos de forma automatizada nos processos em tramitação, pois a competência é do TCM”. “Quando identifica as situações, o TCE oficia o TCM para informar”, explica.
A corte dos municípios, por outro lado, atesta que a investigação é de competência do TCE. “Como os recursos foram devolvidos aos cofres do Estado, acreditamos que os convênios foram firmados entre as Prefeituras e o Estado da Bahia. Assim, a competência para acompanhamento e fiscalização é do TCE/BA”, disse o tribunal, em resposta aos questionamentos feitos pelo Aratu On.
Para Pedro Cravo, “cada qual tem sua esfera de competência e vai ter sua interferência em âmbitos de competência distintos”. Ele ainda crê que não haja intencionalidade por parte das autoridades competentes em não investigar os casos, porque, na visão dele, a possibilidade é que haja a priorização de investigações de casos que são enxergados como mais recorrentes.
“Eu creio que não necessariamente seja algo intencional, mas que, sim, perante a outras prioridades, [são casos que] passam ao largo da questão fiscalizatória na apuração de conta”, analisa.
Para ele, os gestores municipais também precisam se atentar ao assunto. Cravo entende que, em parte dos casos, os prefeitos não agem de má-fé. Para isto não acontecer, ele opina que a fiscalização deve ser reforçada pelos Executivos e Legislativos locais. Isto deve ser feito, inclusive, pelos gestores subsequentes àqueles que firmaram os convênios.
“Os gestores que verificarem que houve algo do tipo com relação a imputação de multa, a ressarcimento a ser feito aos cofres municipais, devem comunicar ao Poder Público”, indica.
Se há divergência entre TCM e TCE, o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) depende dos dois tribunais para iniciar as apurações. Dos quatro municípios citados, o parquet se debruçou a um caso envolvendo Santo Estêvão, mas que nada tinha a ver com o convênio citado na reportagem.
De acordo com o MP, em 2016, o ex-prefeito Orlando Santiago (PSD), atual vice do prefeito Rogério Costa (PT), foi denunciado em razão de ter autorizado, no exercício financeiro de 2014, contratações diretas, por dispensas ilícitas, com a empresa Francinei Soares de Oliveira de Feira-ME/Limpa Fossa Moderna para suposta prestação de serviços de limpeza de fossas sépticas. Uma das contratações foi no valor total de R$ 10,5 mil, tendo ainda utilizado verbas públicas indevidamente no valor de R$ 9,5 mil. De acordo com a denúncia, o ex-gestor, diz o parquet, “fez a dissimulação de despesas em valores menores, mas que, pelo período e reiteração, revelaram se tratar de parcelas de uma mesma obra”.
Em relação às dívidas de prefeitos pagas por cofres municipais, o MP diz que não há investigações em curso no momento.
DETALHAMENTO DOS CONVÊNIOS
Como citado, um dos casos envolve Santo Estêvão. O atual prefeito Rogério já era chefe do Executivo na ocasião. À época filiado ao DEM, ele firmou um convênio em 2011 para uma reforma do Centro de Abastecimento Lineu Cerqueira. Entre 2013 e 2016, Orlando Santiago se tornou prefeito. Em 2017, Rogério retornou à chefia da Prefeitura e, em 2020, pagou a dívida com verba municipal a dívida de R$ 248 mil que tinha com o Governo do Estado.
Em Cachoeira, o ex-prefeito Tato (PSD) pagou, com dinheiro da Prefeitura, o excedente de R$ 135 mil de convênio fechado em 2010 para pavimentação de ruas localizadas no distrito de Capoeiruçu. O pagamento foi feito em 2020, no seu retorno à Prefeitura, após rápida passagem de Carlo Pereira (PP), seu sobrinho, pela cadeira de prefeito, entre 2013 e 2016.
Em Biritinga, o atual prefeito Gilmário Oliveira, conhecido como Gil de Gode (PSB), assinou um convênio em 2009 – portanto, em outro mandato – para pavimentação do bairro Sapolândia. Em 2020, ele promoveu o ressarcimento ao erário estadual de R$ 112 mil com uma conta do município.
Já no município de Sobradinho, o ex-prefeito Luiz Berti, do PSD, (2013 - 2020) pagou em 2019 R$ 104 mil para quitar a dívida de um convênio firmado em 2010 para reurbanização do Balneário Chico Periquito, firmado pelo ex-prefeito Genílson Silva (2009 – 2012), do PT.
QUAIS AS SANÇÕES?
Segundo o TCE, as punições previstas são as seguintes: aplicação de multa; suspensão dos direitos políticos, afastamento ou perda da função pública, indisponibilidade de bens e ressarcimento ao erário; inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou confiança, demissão, arresto e indisponibilidade de bens; sequestro de bens; e inelegibilidade. Todas estas estão previstas pela Lei Orgânica e pelo Regimento Interno da Corte de conta do estado.
O especialista ainda alerta para um novo dispositivo decorrente da nova Lei de Improbidade Administrativa, do Governo Federal: a Lei Rosemberg. O texto foi promulgado pela Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA) em 4 de fevereiro deste ano sem ter sido sancionado pelo governador Rui Costa (PT).
A lei, confeccionada pelo deputado estadual Rosemberg Pinto (PT), líder do governo na Casa, proíbe que gestores públicos sejam responsabilizados ou sofram a sanção de multas, aplicadas pelo Tribunal de Contas dos Municípios (TCM), quando não ficar comprovado o desvio de recursos em benefício próprio ou de familiares, ou quando não existirem provas de que o gestor agiu com dolo (intenção) no desvio.
Para Cravo, o texto terá “grande implicação” na investigação destes casos, que, como ele destacou, passam muitas vezes despercebidos pela fiscalização. “Deve haver a maior comprovação de que ele [gestor] teve o interesse de desviar a verba para proveito próprio. Vai ser um trabalho mais árduo dos tribunais de conta”, lamenta.
ASSISTA A ENTREVISTA COMPLETA COM PEDRO CRAVO
RESPOSTA DOS CITADOS
Consultada, a Prefeitura de Cachoeira, hoje gerida por Eliana Gonzaga (Republicanos), preferiu não se manifestar. Os responsáveis pelas Prefeituras de Santo Estêvão e Sobradinho não responderam aos questionamentos enviados pela reportagem, enviado aos e-mails disponibilizados nos seus respectivos sites oficiais.
O Aratu On também não conseguiu contato por meio dos números telefônicos disponíveis nos endereços eletrônicos.
O atual prefeito de Biritinga, Gil de Gode, contou que, “por ser uma pessoa pública, deve prestar contas à sociedade”. “Depois de muito tempo, não sei porque cargas d’água, houve uma tomada de contas. Um parecer da Conder apontou que o próprio município deveria fazer o ressarcimento”, justificou.
Ele afirmou que, posteriormente, iria à reportagem o parecer emitido pela Conder para embasar o pagamento feito pela própria prefeitura. Cobrado, ele não respondeu novamente.
No caso das Prefeituras em que os atuais gestores não possuem relação com os convênios, Pedro Cravo ressalta que o prefeitos que estão em exercício devem promover investigações internas, junto com os tribunais e o Ministério Público de Contas.
O Aratu On enviou uma mensagem ao ex-prefeito de Sobradinho, Luiz Berti. Contudo, não obteve resposta até a publicação desta matéria.
O site não conseguiu contato com Rogério Costa e Orlando Santiago, de Santo Estêvão; com Tato, de Cachoeira; e com Genilson Silva, de Sobradinho. O espaço segue aberto para manifestação.
(Matéria atualizada às 12h04 para ajustes na entrevista com Pedro Cravo)
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