Margem Equatorial: o Ibama como réu dos próprios acertos
Explorar a Margem Equatorial é o equilíbrio na corda bamba entre necessidade energética e responsabilidade ecológica: “Quando o futuro do país é medido em barris de petróleo e o futuro do planeta é medido em graus Celsius, qual o custo da prosperidade?"
Por Pablo Reis.
Antes de pensar que a autorização para perfurar em busca de petróleo na Margem Equatorial está distante da gente (que é coisa para quem é do Acre se preocupar), precisamos mergulhar melhor. A decisão do Ibama nem bem autorizou os poços, mas já abriu mais do que uma fissura, um precipício, na opinião pública. Setores que, até ontem, reverenciavam o órgão como símbolo de rigor científico agora o tratam como herege técnico. O Ibama negacionista.
O mesmo juiz que, antes, aplaudiam — agora é condenado por não decidir a seu favor. Uma cena que lembra times de futebol que, derrotados, subitamente questionam a grama onde já ergueram taças, ou a figura do árbitro que marcou um pênalti desfavorável. O que se manifesta é a insatisfação com o resultado, e não necessariamente a invalidade do processo. De repente, acusam de estar quebrada a bússola técnica que sempre marcou as direções apontadas pelo órgão. “Onde foram parar a autonomia e a neutralidade técnica do Ibama?”, gritam.
A coerência parece ter prazo de validade em nosso país. Quando o resultado agrada, o Ibama é farol da razão; quando não, é o vilão da vez. Ninguém pensa que o órgão continua sendo o mesmo — apenas sua sentença deixou de soar conveniente. E o país continua refém do barulho político gritando mais alto que o método.
A nova fronteira do ouro negro
A Margem Equatorial — faixa costeira que se estende do Amapá ao Rio Grande do Norte — é apresentada como o “novo pré-sal”. Um filão estratégico para evitar que o Brasil dependa de petróleo importado a partir de 2030, segundo o Ministério de Minas e Energia.
A Petrobras, que lidera a empreitada, planeja investir mais de R$ 24 bilhões entre 2024 e 2028, apostando que o subsolo guardará cerca de 10 bilhões de barris.
Governadores do Norte e Nordeste comemoram o licenciamento como se o futuro já tivesse sido encontrado sob o leito do Atlântico.
Os defensores da medida argumentam que a exploração trará benefícios diretos e imediatos, impulsionando a economia com:
- Segurança Energética: O país busca novas reservas para manter o fornecimento de energia, essencial para uma transição energética justa e viável nos próximos anos.
- Geração de Empregos e Renda: A atividade deve gerar milhares de empregos e impulsionar o comércio, os serviços e a logística em cidades litorâneas como Oiapoque (AP), Macapá (AP), Belém (PA), São Luís (MA), Fortaleza (CE), Mossoró (RN) e Natal (RN), elevando seu *status* a novos polos de riqueza.
- Royalties: O aumento da arrecadação municipal por meio dos *royalties* é visto como um caminho para o desenvolvimento socioeconômico. O governador do Amapá classificou a licença como uma "grande vitória".
Há otimismo, e não é pouco. Fala-se em segurança energética, em “transição justa” — essa expressão mágica que serve para tudo — e em descentralizar a renda do petróleo, ainda concentrada no Sudeste. O discurso é potente, quase messiânico. Mas, como toda promessa de Eldorado, vem com sombra e sedução.
O espelho negro do progresso
Debaixo desse horizonte de prosperidade, repousa um risco que não cabe nas planilhas.
A Margem Equatorial é uma das regiões marinhas mais sensíveis do planeta — berço de 80% dos manguezais do Brasil, além de um cinturão de recifes de corais recém-descobertos que se estende por 1.350 quilômetros.
Especialistas alertam que um possível derramamento de óleo poderia afetar gravemente este ecossistema. A região abriga:
- Manguezais Vítimas: Cerca de 80% de todos os mangues do país, incluindo o maior cinturão contínuo do mundo, espalhados pela costa do Amapá, Pará e Maranhão, estariam em risco.
- Recifes Inexplorados: Recifes de corais, que se estendem por 1.350 quilômetros, cuja descoberta é recente e pouco pesquisada, poderiam ser colocados em risco pela perturbação da perfuração.
- Ameaças à Fauna: A região é área de reprodução de espécies. Em caso de vazamento, modelos de dispersão de óleo indicam que a mancha poderia alcançar 132 km em apenas 72 horas, sendo mais difícil de conter que o desastre do Deepwater Horizon no Golfo do México, devido à maior profundidade do poço (2,88 km) e às fortes correntes.
A resposta mais próxima, mesmo com o novo centro de reabilitação da Petrobras em Oiapoque, levaria até 12 horas para chegar. Tempo suficiente para o estrago se consolidar.
E aí está o dilema: a pressa de explorar o fundo do mar pode custar o fôlego da superfície.
Não é alarmismo — é física, biologia e memória. O desastre no Golfo do México ainda é um fantasma recente. E o que se tenta evitar é que ele renasça sob a bandeira da autossuficiência.
O Ibama entre o petróleo e o pânico
Em 2023, o Ibama negou o pedido de licença, alegando falhas graves no plano de resposta. Dois anos depois, após uma bateria de exigências, reavaliações e construção de uma estrutura de emergência em Oiapoque, concedeu a autorização.
O órgão não mudou de posição ideológica — mudou o cenário técnico. Fez o que deve fazer qualquer instituição séria: revisou, reavaliou, reautorizou. Em vez de carimbar como impossível, mostrou os caminhos para a possibilidade.
Mas vivemos tempos em que o raciocínio técnico perdeu o charme. A decisão virou torcida.
E o Ibama, que antes era guardião da floresta, agora é acusado de traí-la.
A ex-presidente do órgão, Suely Araújo, criticou a decisão como contradição climática — afinal, liberar mais petróleo às vésperas da COP30 em Belém soa, no mínimo, paradoxal.
Já o governo fala em “equilíbrio responsável”.
Entre uma e outra narrativa, o que se perde é a compreensão de que o Ibama não é oráculo nem militância: é termômetro. Mede o risco, não os desejos.
A lição da bússola
No fundo, o episódio revela algo maior: a dificuldade nacional em aceitar decisões técnicas quando elas não confirmam nossas convicções. Atacar o Ibama por liberar um projeto é tão irracional quanto atacá-lo por vetar outro. O que muda não é o órgão — é o humor de quem o observa.
O que não parece legítimo é que paixões da hora sirvam para condenar o juiz por aplicar as próprias regras do jogo. No fim, talvez o verdadeiro vazamento não seja o do petróleo, mas o da coerência. Atacar a instituição por uma decisão que desagrada é, metaforicamente, cancelar o jornalista que publica um editorial que contraria nossa visão.
A exploração na Margem Equatorial é o delicado equilíbrio na corda bamba entre a necessidade energética e a responsabilidade ecológica. Ela nos força a perguntar: Quando o futuro do país é medido em barris de petróleo e o futuro do planeta é medido em graus Celsius, qual é o verdadeiro custo da prosperidade?
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