Bolsonaro e tragédia anunciada: um 'eu autorizo' para a própria prisão

O rito para um veredito de culpado já está traçado

Por Pablo Reis.

Sabe aquela frase “eu autorizo”, que virou um mantra coletivo por apoiadores do então presidente derrotado para avisarem que apoiavam o dispositivo da Garantia da Lei e da Ordem, a chamada GLO? No domingo (16), na ensolarada Copacabana, o ex-presidente Jair Bolsonaro deu um “eu autorizo” para a própria prisão.

Era para ser um ato de força, uma demonstração de que o político inelegível ainda tem fôlego eleitoral e capacidade de aglutinação. Em vez de um levante popular, testemunhamos um político refém do próprio mito que construiu.

No artigo 5°, inciso LXVIII, da Constituição, há o estabelecimento do direito ao silêncio por acusados ou réus, o que segue o princípio nemo tenetur se detegere, que significa "ninguém é obrigado a se incriminar". Bolsonaro não se incriminou no evento, mas liberou instituições de constrangimentos que viriam caso uma grande massa de brasileiros estivesse presente.

A estratégia inicial parecia inteligente. O deputado federal Nikolas Ferreira, um dos escudeiros fieis de Bolsonaro, queria um ato contra o governo Lula e a inflação dos alimentos. Era um mote que poderia ganhar outro caráter - e outra dimensão na adesão popular. Não foi assim que ocorreu. O que era para ser um protesto com pautas concretas virou um culto personalista, centrado na vitimização do ex-presidente (embora algumas palavras fossem dedicadas a outros prisioneiros).

Foto: Metrópoles/Reprodução

A solidão dos discursos vazios

Bolsonaro vai se emaranhando na própria quimera megalomaníaca que o discurso principal deveria ser centrado… em si mesmo. É improvável, para não dizer raro, conseguir uma grande mobilização popular “a favor” de algo. Seria muito mais fácil mobilizar energias para combater uma série de medidas que provocam incômodo e insatisfação na sociedade. Mas, neste caso, o líder de camisa da Seleção Brasileira e coletes à prova de bala perderia protagonismo - na visão dele mesmo. 

Mobilizar uma multidão a favor de um político já é difícil. Tornar essa mobilização efetiva quando se trata de alguém encurralado pela Justiça (ela atuando tecnicamente, ou politicamente, não mais importa) é quase impossível. O eleitor médio agora tem preocupações mais imediatas: o preço dos ovos, a conta de luz, a gasolina. E quando a fome entra pela porta, a lealdade sai pela janela.

Quantos foram? O dilema dos números

A ausência de uma massa incontestável tornou-se o tema central. Principalmente, pelo líder ter caído na cilada de estabelecer meta de público (primeiro, um milhão de pessoas, depois, 500 mil). Os números variam de 18,3 mil a 400 mil, acordo com quem conta. O Monitor do Debate Político no Meio Digital, da USP, em parceria com o Cebrap, utilizou uma metodologia baseada em inteligência artificial e estimou cerca de 18.300 pessoas no pico do evento. O Poder360 subiu um pouco esse número para 26 mil, enquanto o Datafolha, mais generoso, chegou a 30 mil. Já a Polícia Militar do Rio de Janeiro cravou um inverossímil 400 mil.

Foram lançadas dúvidas sobre a metodologia e a imparcialidade do Monitor do Debate Político no Meio Digital, vinculado à USP, que frequentemente trabalha em parceria com o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), sendo coordenado por pesquisadores como Pablo Ortellado e Márcio Moretto, ambos professores da USP com atuação na área de ciências sociais e análise de dados.

Eles explicaram o método Point To Point Network (P2PNet) permite contar cabeças em imagens aéreas, oferecendo uma margem de erro de 12%. Esse mesmo sistema já foi usado para estimar multidões em outros atos políticos, e os números nunca foram tão discrepantes quanto os oferecidos pela PM do Rio.

Análises anteriores: 
- A manifestação pró-Bolsonaro na Avenida Paulista em 7 de setembro de 2021 (estimada em 125 mil pessoas);
- O ato na mesma avenida em 25 de fevereiro de 2024 (185 mil pessoas);
- O evento em Copacabana em 7 de setembro de 2022 (64,6 mil pessoas);
- Outro ato em Copacabana em 21 de abril de 2024 (32,7 mil pessoas).

Esses estudos são amplamente reconhecidos por sua abordagem científica e têm sido utilizados por veículos de imprensa como g1, O Globo, Estadão e Carta Capital para contrapor estimativas menos fundamentadas, como as de organizadores de eventos ou forças policiais. A experiência do grupo abrange anos de refinamento técnico, com o uso de tecnologias avançadas para contagem de multidões, destacando-se por sua consistência e transparência metodológica.

Já os 400 mil da PM viraram motivo de chacota. No mesmo dia, num Ba-Vi que lotou a Fonte Nova na decisão do Campeonato Baiano, o público foi de 42 mil pessoas. Alguém se arriscaria a fazer uma odd, numa bet online, para dizer que tinham quase dez estádios lotados entre aquele público?

Os 18 a 30 mil participantes são um reflexo mais realista. Um número significativo? Sim, mas insuficiente para a comoção nacional que Bolsonaro esperava.

Foto: Metrópoles/Reprodução

O início do fim?

A manifestação de Copacabana não foi o grito de revolta de um país indignado. Foi um sinal claro de que a capacidade de mobilização do ex-presidente está em queda livre. E, mais do que isso, serviu para mostrar que a população já internalizou sua próxima etapa: o julgamento.

No próximo dia 25 de março, o Supremo Tribunal Federal deve aceitar a denúncia contra Bolsonaro no caso da tentativa de golpe. Ainda não é a sentença, mas é a largada para um rito que, salvo uma reviravolta improvável, levará à sua condenação.

A partir daí, com mais ou menos protelação, o rito para um veredito de culpado já está traçado. Não vai haver comoção popular, nem panelaço em metrópoles, ou autoimolação de fanáticos. Todos estarão mais preocupados em saber quanto estará, no dia seguinte, o preço do ovo e do café.

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