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Na Oceânia tupiniquim, mais pessoas trans e travestis foram mortas em 2020 do que em todo o ano passado

Na ?Oceânia? tupiniquim, mais pessoas trans e travestis foram mortas em 2020 do que em todo o ano passado

Por Diorgenes Xavier

Na Oceânia tupiniquim, mais pessoas trans e travestis foram mortas em 2020 do que em todo o ano passadoCréditos da foto: Carla Galrão/Vivian Alecy

Em Oceânia, nação fictícia onde se passa a história de 1984, obra literária clássica do escritor britânico George Orwell, os olhos do Grande Irmão, pseudônimo usado para se referir ao Estado e que se tornou mundialmente conhecido como “Big Brother”, controlam a vida de boa parte da sociedade. As teletelas, aparelhos instalados em quase todos os lugares, inclusive nas casas das pessoas, são capazes da captar imagens, áudios e reações, determinando e monitorando os comportamentos dos indivíduos.


Há, contudo, uma exceção. Os proletas, classe social mais pobre e moradora dos subúrbios, vivem com certa dose de liberdade que não é concedida aos outros. Esse “benefício” é resultado de um sistema político que os abandona à própria sorte e que deixa claro, mesmo que indiretamente, que as vidas daquelas pessoas não importam tanto, ou que elas importam menos.


No Brasil, em 2020, 129 pessoas trans e travestis foram assassinadas entre janeiro e agosto, número que já supera o registrado em todo o ano de 2019. Os dados são fruto de um levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Na opinião de Keila Simpson, presidenta da entidade, eles são, na realidade, ainda maiores. “Daria muito mais se a gente conseguisse somar tudo. Dá até um certo alívio no coração, de certa forma, não saber quais são os números reais, pois eles seriam ainda mais assustadores”.


Simpson aponta, ainda, a indiferença com a qual, não apenas o campo político, mas a própria sociedade civil olha para este quadro. Tal qual na Oceânia de Orwell, vidas parecem ter pesos e provocar emoções e reações diferentes em nosso país. “Essas mortes não importam, de fato. Existe um apelo heteronormativo que se reflete, também, no campo da violência. A sociedade vê, mas não enxerga. O olhar é de discriminação e preconceito. Ufa! Uma a menos!”.


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Dados dos assassinatos de pessoas trans no Brasil entre 2017 e 2020 | Arte: Vivian Alecy


Para a professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Jaqueline Gomes de Jesus, esse retrato que mistura agressão, discriminação e indiferença é resultado de um contexto histórico e social que se mantém há séculos no Brasil.


“É fundamental compreender esses atos de violência dentro do cenário deles. Porque senão, as pessoas vão continuar pensando essa violência como atos isolados de indivíduos com transtorno. E, de fato, essa violência vem de uma lógica da própria sociedade. A sociedade é violenta. A sociedade é transfóbica. A sociedade brasileira, que é estruturalmente machista, racista, ela também, até por conta destes elementos básicos da cultura nacional, se torna estruturalmente transfóbica”.


Prova dessa construção e imposição de poder, que têm reflexos nos dados de mortes coletados, é que a maioria absoluta das vítimas é mulher. Na opinião de Jaqueline de Jesus, esses números, mais uma vez, não podem ser encarados como mera coincidência.


“Quando a gente fala desses crimes, estamos falando de um feminicídio. Mais de 90% dessas mortes são de travestis e mulheres trans. Tem uma marca de gênero aí, que reforça, dentro da cultura, o machismo estrutural. É indissociável. O Brasil é o quinto país do mundo em feminicídios e o primeiro no feminicídio de travestis e mulheres trans”.


CONFIRA ENTREVISTA COM A PROFESSORA JAQUELINE GOMES DE JESUS:



VIOLÊNCIA EMOCIONAL: O IMPACTO ABSTRATO DO ATAQUE FÍSICO


O nível de anulação imposto a estas pessoas supera, em muito, o aspecto físico propriamente dito. As camadas de violência emocional, psicológica, o estado de negação constante da própria existência, fazem parte da rotina das pessoas trans e travestis. Isso pode ser facilmente percebido, por exemplo, quando a sua própria identidade, aquela através da qual a pessoa se reconhece e é reconhecida, é ignorada.


“O assassinato não é o fim. Para a população trans, o sofrimento continua mesmo após a morte, quando a sua identidade de gênero é desrespeitada, quando a família faz uma maquiagem no corpo, para diminuir o sentimento de vergonha que eles ainda têm. É toda uma vida de exclusão, que não termina no ato final, no assassinato. A matéria se vai, mas, na maioria das vezes, essas pessoas sequer são visitadas no cemitério”, afirma Simpson.


O reforço quase que diário de estigmas, de preconceitos. As piadinhas constantes, o desrespeito praticado sem nenhuma espécie de pudor, compõem uma equação que faz com que, vistas de fora, estas minorias sejam classificadas como um estorvo. “Não basta a informação de que as travestis têm direitos, que não devem ser assassinadas, se a cultura reitera a todo momento que as travestis e as mulheres trans não pensam por si mesmas, só podem existir enquanto prostitutas, só podem existir enquanto aquelas que não podem ser vistas de dia, que não podem ter relações afetivas. Como se fossem, única e exclusivamente, objetos sexuais”, comenta Jaqueline de Jesus.


Existir, sem ser vista. Viver, sem ser respeitada. Qualquer pessoa submetida a esse nível de pressão psicológica tende a trazer, consigo, marcas que, mesmo não sendo percebidas a olho nu, podem ser sentidas na carne. Não se trata apenas de administrar o medo do soco, do tiro, do sangue. É preciso lidar, ainda, com a morte quase que diária, paulatina, que acontece por dentro.


“No Brasil, temos a ansiedade e, principalmente, o estresse pós-traumático, que é maior do que em outros países. O que é isso? É uma resposta a um evento traumático que aconteceu e que tem relação com essa violência sistemática que é mais explícita, mais direta do que em outros países, por mais que a população trans tenha mais suporte social do que, por exemplo, no Quênia, ou na Índia”, analisa Jaqueline de Jesus.


Para a psicóloga, esse sentimento do perigo real, que potencialmente existe em cada esquina, essa ideia tão materializada da violência, que a torna tão brutalmente palpável e aponta para um destino final tão cruel, potencializam esse quadro. “Essa notícia constante de violência, a forma como essa informação chega. Não é que não tenha que ser divulgada, mas esse dado do real, provoca danos já em si. É o reconhecimento de que a pessoa trans mal pode sair à rua. Esses fatores de negação e esse risco constante afetam esses dados de estresse pós-traumático”.


OLHOS DO ESTADO: O SISTEMA LEGAL AMPARA AS PESSOAS TRANS E TRAVESTIS?


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Pequeno dicionário com definições de gênero | Arte: Vivian Alecy


E como o Estado brasileiro olha para esta questão? O que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário têm feito para amparar essa parcela da população que mais precisa de ações contundentes e afirmativas? Para Diego Nascimento, graduando em Direito e Conselheiro Estadual LGBT do Estado da Bahia, existem avanços, ainda que paulatinos.


“Além do marco legal de 2018 (decisão do Supremo Tribunal Federal que concedeu o direito pleno à identidade de gênero, sem requisito de diagnóstico médico, cirurgia ou decisão judicial), existe uma jurisprudência, desde 2017, que enquadra as mulheres trans e travestis na Lei Maria da Penha. Ou seja, que contempla aquelas que são vítimas do que costuma se classificar como violência doméstica”.


Contudo, elas têm dificuldades, por exemplo, para relacionar os crimes dos quais são vítimas com a Lei Geral do Feminicídio. “Isto acontece porque a terminologia utilizada na Lei Maria da Penha é gênero. Gênero é uma expressão social, faz parte da identificação sociocultural do indivíduo. Já a Lei do Feminicídio usa a palavra sexo. Então, as mulheres trans e travestis não podem ser enquadradas. Este texto é fruto de um Congresso mais atrasado, retrógrado, que não levou essa questão em consideração”.


Nascimento cita mais um ponto problemático, que é o entendimento jurídico majoritário vigente no Brasil no que diz respeito aos crimes de racismo. “Outra dificuldade é da aplicação da Lei do Racismo nestes casos, porque o Brasil não pune crimes contra a comunidade LGBT com base nesta lei. Isto porque, o entendimento do STF permite enquadrar a homofobia, a LGBTfobia, a transfobia como crimes de racismo, mas a ofensa precisa ser destinada a todo um grupo e não apenas a uma pessoa, um indivíduo. Quando isto acontece, o crime é caracterizado como injúria racial. Esse entendimento, fruto também de um sistema judiciário que é racista, preconceituoso e elitista, dificulta o processo de punição dos responsáveis. Na maior parte dos casos, lidamos com crimes dirigidos a uma pessoa, e não a um grupo”.


Apesar de defender a importância do ordenamento jurídico e do fortalecimento de mecanismos que protejam as pessoas trans e travestis, ele alerta que a criação de leis, por si, está longe de ser solução única e definitiva para esta questão. “Um problema que é de natureza social e econômica, não se resolve pela via jurídica. A lei que combate o racismo, por exemplo, é de 1989, e ele existe no Brasil até hoje. Os marcos legais são um amparo, mas eles não resolvem e nem são a principal dimensão do problema”.


Para Jaqueline Gomes de Jesus, esse é um processo que, necessariamente, só será efetivado com uma mobilização que extrapole os organismos oficialmente constituídos e que invada as cabeças e os corações. “A denúncia precisa avançar para políticas públicas e eu não vejo, nos governos atualmente estabelecidos no Brasil, o desejo de fazer isso. Depende da sociedade civil organizada, toda ela, todos os movimentos sociais, garantirem condições de acesso e permanência da população trans em qualquer ambiente social, e de inclusão e enfrentamento da violência. E isso demanda esforços, não apenas boa vontade”.


É esse senso de justiça e, mais do que isso, de igualdade, que reverbera nas opiniões de quem, como Keila Simpson, vive a luta diária de ser uma pessoa trans ou uma travesti. “A sociedade precisa compreender que nós não somos bichos papões. Queremos uma sociedade livre, justa, na qual todos possam viver livremente e ser respeitados por suas escolhas. Não queremos impor uma bandeira LGBT, colorida, como dizem por aí. Queremos a convivência ampla, sem exclusão de ninguém”.


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