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ESPECIAL ‘DOZE’: Os medos, traumas e origem da Vila Moisés, o palco da tragédia em Salvador

ESPECIAL ‘DOZE’: Os medos, traumas e origem da Vila Moisés, o palco da tragédia em Salvador

Por André Uzêda

ESPECIAL ‘DOZE’: Os medos, traumas e origem da Vila Moisés, o palco da tragédia em SalvadorFotos: André Uzêda

Nesta segunda-feira (15/2) o Aratu Online inicia a série especial ‘Doze’. Serão reportagens para recontar o atentado da Vila Moisés, no bairro do Cabula, ocorrido no dia 6 de fevereiro de 2015.


O material foi batizado com o nome ?Doze?, em duplo significado: 12 foi o número de mortos na ação policial; como também representa o número de meses (1 ano) em luto pela morte daqueles jovens.


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Nesta primeira reportagem serão abordados os traumas, medos e a origem da Vila Moisés — palco da cena trágica.


Boa Leitura!


***


O peito já reivindica descanso ao fim do primeiro lance de escadas. A boca arqueada tenta buscar um pouco ar. Lentamente, os lábios descolam-se em efeito que se confunde entre espasmos aeróbicos e o espanto diante do que os olhos avistam.


Estamos mergulhando na garganta profunda da Vila Moisés, localidade do bairro do Cabula (bairro distante do centro de Salvador). O corpo vai de lado, moldando-se às dificuldades. Os degraus, definitivamente, não foram projetados aos reclames da boa engenharia. São íngremes, irregulares e estreitos.


Ao fim da incursão pelo labirinto imperfeito, a paisagem abre-se em um campinho de futebol em reforma. Lá, encontramos um dos líderes comunitários do bairro. Ele é irmão de uma das vítimas mortas no atentado do Cabula, em dia 6 de fevereiro de 2015.


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Labirinto imperfeito: as escadarias estreitas que dão acesso a Vila Moisés, no Cabula


Inicialmente o homem é resistente às nossas perguntas. Mas, aos poucos, desarma-se. Fala sobre os 12 meses que transcorreram desde que 88 disparos abriram chagas incuráveis naquela comunidade.


“Tá vendo aquela casa ali”, diz o líder apontando para uma placa de ‘vende-se’. “Os moradores estão vendendo abaixo do preço para sair daqui. Ninguém quer mais ficar”, completa.


A especulação imobiliária às avessas está longe de ser a única marca daquela noite que nunca terminou.  Há uma série de referências visíveis e outras tantas camufladas que expõe os motivos pelos quais a penumbra permanece intocável à espera dos primeiros raios de sol na Vila Moisés.


Quando nos aproximamos com câmeras fotográficas e crachás, símbolos que prontamente identificam uma equipe de reportagem, os moradores escondem-se em suas casas. Saem das rotas de acesso. Ou viram os rostos. Em última instância, simplesmente tampam-no com as duas mãos espalmadas.


“Eles têm medo. Medo de aparecer. De serem identificados. Da polícia marcar a cara”, explica o líder comunitário.


No chão, onde provavelmente uma das vítimas tombou impávida, a palavra “luto” está escrita em carvão. Outros dizeres se somam à apressada grafia. A palavra “paz” ressalta-se pichada em um banco de cor verde. Em outro assento, distante poucos metros do primeiro, a frase vem completa: “paz na favela”.


“Aqui virou um inferno. Até o barulho de uma descarga de uma moto dá medo nas crianças. Todo mundo acha que é tiro”, me diz um senhor, na garantia que não revele seu nome.


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Vista das casas da comunidade do Cabula


Durante a passagem por uma das vielas, uma senhora me interpela para falar sobre a fatídica noite. Inconscientemente, ao iniciar o relato, baixa o tom de voz.


“Era muito tiro. Ninguém dormiu. A gente sabia que era com os meninos, mas não podia sair de casa ou morreria também”, finaliza, já quase aos sussurros.


Os disparos teriam começado por volta das 2h da manhã. Morreram 12. Três ficaram feridos e um policial levou um tiro de raspão, na cabeça (teve alta no mesmo dia). Na reconstituição feita pela Polícia Civil, em maio do ano passado, contabilizou-se 88 cápsulas projetadas dos tambores frenéticos das armas de fogo. Nove policiais do Batalhão Rondesp Central — grupamento de Rondas Especiais da PM baiana — estavam envolvidos na ação.


São eles: subtenente Júlio César Lopes Pitta, o sargento Dick Rocha de Jesus e os soldados Robemar Campos de Oliveira, Antônio Correia Mendes, Sandoval Soares Silva, Marcelo Pereira dos Santos, Lázaro Alexandre Pereira de Andrade, Isac Eber Costa Carvalho de Jesus e Lúcio Ferreira de Jesus.


Morreram naquela noite: Adriano de Souza Guimarães, 21 anos; Jeferson Pereira dos Santos, 22; João Luís Pereira Rodrigues, 21; Bruno Pires do Nascimento, 19; Vitor Amorim de Araújo, 19; Tiago Gomes das Virgens, 18; Caique Bastos dos Santos, 16; Evson Pereira dos Santos, 27; Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19; Natanael de Jesus Costa, 17; Ricardo Vilas Boas Silva, 27; e Rodrigo Martins Oliveira, de 17 anos.


Em 26 de julho, demonstrando celeridade, em primeira instância a Justiça — comandada pela magistrada substituta Marivalda Almeida Moutinho — absolveu os policiais por entender que agiram em legítima defesa. Prevaleceu, aos olhos da Justiça, a versão que no coração da Vila Moisés um grupo de traficantes planejava explodir um terminal bancário naquela noite que terminaria em banho de sangue. A inteligência da polícia teria interceptado a ação e antecipado a investida.


“Olhe, não vou mentir pra você. Alguns dos meninos que morreram naquela noite eram sim ligados ao tráfico de drogas. Mas nunca planejaram explodir banco nenhum. Eles deveriam sim ser presos, mas jamais mortos da forma que foram. Armaram essa história de explodir banco depois que executaram eles”, me diz uma garota.



O Ministério Público do Estado da Bahia, tendo à frente a figura do promotor Davi Gallo, sustenta que os militares agiram por vingança. Dez dias antes do atentado no Cabula houve uma operação policial que terminou com um tenente baleado com um tiro no pé. Isso teria motivado, na versão do MP, a contraofensiva policial.


“Foi justamente isso. Quando aconteceu o primeiro caso, dez dias antes, já sabíamos que a polícia iria responder. É assim que eles sempre fazem. Mas ninguém imaginou que seria dessa forma. Ninguém jamais imaginou que seria desse jeito”, me diz uma senhora, a mesma que minutos antes havia me abordado em uma das travessas da comunidade.


RELIGIÃO E AS ORIGENS


“Foi uma hora e meia de tiro de relógio. Só tiro. Tiro e mais tiro. Depois começaram os gritos. ‘Tem alguém vivo aí?’. Os feridos se mexiam pedindo socorro. Mas eram os policiais que perguntavam. Eles chegavam e, à queima roupa, atiravam naqueles que estavam caídos”.


O relato é de um dos homens que diz ter presenciado toda a cena por uma greta da janela de casa. Ele jura veracidade no relato. Conta ainda que passou noites em claro revisitando às lembranças sangrentas.


Outros tantos também não esquecem. O número de igrejas neopentecostais aumentou na vila após o 6 de fevereiro de 2015. Numa mesma rua duas dividem o mesmo espaço: a Assembleia dos Milagres e a Assembleia de Deus. Ambas funcionam em pequenas casas que nada lembram templos suntuosos de outras partes da cidade.


Em uma das esquinas da localidade é possível ler um trocadilho alusivo à Bíblia: “A Vila Moisés serve ao Deus de Israel”.


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Esquina da Vila Moisés faz referência à Bíblia


Na tradição judaica-cristã, Moisés é aquele que liberta o povo hebreu da escravidão dos faraós do Antigo Egito. Durante a fuga, guiado pelas mãos de Deus, abre o Mar Vermelho para a passagem e salvação dos seus.


O mar vermelho de sangue aberto naquele 6 de fevereiro é apenas uma variante fúnebre do nome da vila. Uma ironia amarga hoje perfeitamente encaixável. Mas o local nem sempre foi chamado assim.


Entre o fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 as primeiras famílias começaram a chegar naquele terreno. “Fomos invadindo. Era tudo mato. Minha família foi uma das primeiras a chegar. Na época chamávamos o lugar de Guine”, conta uma antiga moradora, também reticente em revelar seu verdadeiro nome.


O nome ‘guine’ era uma referência às estações de eletricidade que cortavam a área — pois assim eram chamados os enormes postes das companhias elétricas da época.


“Só tinha mato e esses postes com fios enormes. Quando chegamos aqui não tinha luz, água, esgoto… Nada. Fomos aos poucos instalando tudo e mais pessoas foram chegando. Teve um tempo que fui morar em outro lugar e quando voltei novamente aqui já se chamava Vila Moisés. Não sei ao certo quando mudou”, complementa a moradora.


Num outro campo de futebol — não aquele em reforma — ocorreu a maioria das mortes. O grupo Reaja ou Será Morto/Morta (movimento em defesa dos negros e direitos humanos ) pôs, em agosto passado, uma lápide para relembrar os DOZE que tombaram em confronto.


Em fevereiro completou-se DOZE meses.


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Bandeira do Brasil pintado em muro da Vila Moisés


Enquanto os trâmites da Justiça congelam o andamento do caso e impedem a resolução jurídica em novas instâncias, uma bandeira do Brasil, num muro de uma das casas da Vila Moisés, descansa em lábaro estrelado.


A simbologia, por si só, já bastaria completa. Mas pichações completam a cena rabiscando o brasão nacional. Uma voz feminina antecipa a revelação final.


“Aquele muro tinha marcas de bala também. Reformamos tudo e pintamos a bandeira do Brasil. Agora só precisamos recomeçar”.


Importante: Os comentários são de responsabilidade dos autores e não representam a opinião do Aratu On.

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