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Desconstruir para instruir: escola aposta em educação decolonial para crianças
Desconstruir para instruir: escola aposta em educação decolonial para crianças
Você sabe quem foi Maria Felipa? As crianças da escola que leva o nome dela, no bairro da Federação, em Salvador, responderiam prontamente: heroína da Independência, baiana e negra. Lá, não só a placa de Marielle Franco se faz presente, mas também a diversidade cultural, de gênero e raça entre os 33 alunos da instituição de ensino afro-brasileira bilíngue pensada por um casal de professores que estava prestes a adotar uma criança afrodescendente e não via as escolas tradicionais, com ideologias eurocêntricas, como opção para iniciar os estudos da pequena Iana, hoje com 11 meses.
Em 2017, Bárbara Carine e Ian Cavalcanti decidiram construir o futuro da filha que ainda nem havia nascido. Os dois docentes, ele de grandes escolas particulares da capital baiana e ela da Universidade Federal da Bahia (Ufba), perguntaram para pessoas do movimento negro e da área educacional: ?qual seria a escola ideal para seu filho??. No ano seguinte, construíram o Projeto Político Pedagógico (PPP) da Maria Felipa e, em janeiro de 2019, botaram a mão na massa. Graças aos empréstimos que pegaram em um banco, colocaram a unidade de pé e começaram a empreitada pelo ensino decolonial.
?O Ian, historicamente, trabalha em escolas privadas de grande porte da cidade. Eu já fui professora de escola pública estadual também, e nossas vivências nos direcionaram para dois caminhos: um deles era colocar nossa filha em escola pública de qualidade, que a gente poderia conseguir pelas relações que a gente tem, mas estaríamos ocupando uma vaga de alguém que precisa mais que nós. Ou a gente poderia colocar nossa filha em uma escola privada, inclusive o Ian tem direito a uma bolsa integral em uma escola que ele trabalhava. Entretanto, nessa outra via a gente se questionou acerca dos padrões de representação das escolas privadas?, explicou Bárbara.
Completando o pensamento da companheira, Ian pontuou a recusa de apresentar um modo de vida marcado pelo consumo para a filha. ?Isso sempre me incomodou muito. Contudo, são espaços que me ensinaram muita coisa. Aprendi sobre educação, no sentido de metodologia de ensino, de aprendizagem, mas sabia que queria algo diferente para os meus filhos ou filhas. Não queria que eles estivessem ali reproduzindo uma sociedade pautada na competição e consumo?.
Apesar da experiência em sala de aula, faltava a bagagem para lidar com a educação infantil. É aí que entrou a pedagoga Naiara Ferreira, também amiga de infância de Bárbara. Depois de passar anos em escolas tradicionais, ela assumiu a coordenação pedagógica, maior desafio da sua carreira. ?Estou desconstruindo o que achei certo na minha vida toda e buscando novos caminhos para outras aprendizagens a partir de novos pressupostos teóricos?, revelou Naiara.
A profissional explica que a pedagogia utilizada na Maria Felipa é a histórico-crítica, da perspectiva do que a criança leva como vivência e qual o conceito daquilo que foi apresentado. A lógica se aplica, inclusive, às datas comemorativas durante o ano letivo, que em sua maioria são feriados católicos. ?Muita gente diz que ?é a escola do candomblé?, porque liga a ancestralidade africana com a religião, mas somos uma instituição laica, cujo ponto de partida é a experiência do educando e a essência disso para o contexto que a gente vive?.
E não são só as crianças que compõem o perfil diverso da Maria Felipa, o quadro de docentes é a prova de que a instituição é insurgente e revolucionária. ?Enquanto uma escola que defende a diversidade, a gente queria ter um quadro de professores e professoras que representasse essa vontade. Queríamos que tivessem mulheres negras, ameríndias, brancas, homens negros, ameríndios, brancos, cis ou trans, homossexuais ou heterossexuais. A gente foi contratando as pessoas e, no final das contas, ficou uma equipe com bastante dissemelhança?, escureceu Ian.
Em março deste ano, a Escolinha Maria Felipa ganhou repercussão nacional após uma publicação viralizar nas redes sociais. Na postagem, uma cliente em potencial questionou a contratação de Bruno Santana, professor de capoeira da instituição. O motivo? Ele é um homem transexual.
?O fato de Bruno ser trans não entrou no critério de seleção. Queríamos excelentes profissionais, com experiência, que gostassem de trabalhar com as crianças e, principalmente, que caminhassem junto conosco nessa luta. Sabendo que ele era um homem trans, a gente ficou super feliz em poder casar as duas coisas. O Bruno para a gente é o Bruno, capoeirista e excelente professor?, afirmou. Bruno é o primeiro homem trans formado pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
As famílias dos educandos da Maria Felipa acreditam que o método decolonial de ensino oferecido pela unidade garante uma visão mais igualitária entre as crianças. ?Colocamos meu filho lá porque a mãe dele é negra e nós queríamos uma escola que incluísse não só ele, como toda sua família. Me agarrei a pequenos detalhes que via no antigo colégio: alguns brinquedos eram divididos em ?para meninas e para meninos? e não é isso que eu espero para a educação do meu filho?, contou Rafael Gomes, analista de sistemas e, antes de qualquer coisa, pai de Vicente Ayô, de 4 anos.
Para Laila Bragato, os tempos atuais foram decisivos na hora de escolher onde a pequena Nia iria iniciar os seus estudos. ?O que estamos vivendo, com episódios diários de intolerância e preconceito, pesou muito na hora de decidir onde matricular ela. Procurei instituições que fugissem desse modelo eurocêntrico e me deparei com o acolhimento da Maria Felipa. O que eu mais gosto é a preocupação deles com a questão da inclusão, é uma proposta incrível?.
PREOCUPAÇÃO AMBIENTAL
Nem a horta da unidade de ensino passa despercebida da desconstrução do conhecimento. A ideia, de acordo com Bárbara, é ensinar a filosofia Ubuntu, que prega o pensamento de que ?o eu e o nós são indissociáveis?. ?Eu e o outro somos autorreflexo, eu me reconheço no outro e o outro não necessariamente é um outro ser humano. É aí que entra a perspectiva ambiental do Ubuntu, um outro que não sou eu, e natureza é outro, animais são outros. Eu me reconheço nessa natureza, me reconheço nesse outro, e quando eu cuido do outro, eu cuido de mim. Negligenciar e agredir o outro é agredir a mim mesmo. É a partir dessa filosofia, dessa cosmovisão, que nos constituímos aqui?.
PROJEÇÃO
Mesmo estando no início da empreitada, os fundadores do projeto Maria Felipa sabem bem onde querem chegar. ?A escola é a construção de um modelo de sociabilidade que a gente acredita?, frisa Bárbara. Para ela, as crianças que têm acesso à essa diversidade, hoje, entre dois e cinco anos de idade (faixa etária atendida pela instituição), serão adultos críticos em qualquer espaço de poder. ?Elas vão se questionar: ?cadê as pessoas iguais a mim?? e não serão coadjuvantes. Irão escolher ? tudo ? juntas?.
E é esse pensamento que o grupo ?respira o tempo todo?, como reforça a consultora pedagógica, que conecta o presente à força motivadora, a pequena Iana. ?Quero que a Iana viva essa escola que foi pensada para ela. A gente quer que ela tenha a escola que queremos para os outros?, conclui.