Influência africana na gastronomia baiana: referências ancestrais na mesa

Sob influência africana, a gastronomia se tornou um espaço de resistência na Bahia

Por Juana Castro.

A culinária da Bahia é marcada pela influência africana, resultado da chegada forçada de povos de diferentes regiões de África a partir do século XVI. Esse processo ocorreu no contexto da escravidão, um dos episódios mais vergonhosos da história mundial. Apesar da violência e da opressão, os povos africanos trouxeram saberes, ingredientes e práticas que moldaram a identidade cultural e gastronômica da Bahia.

A presença africana nos ingredientes e modos de preparo

Milhões de africanos escravizados foram submetidos a condições desumanas, mas conseguiram preservar tradições alimentares e adaptá-las ao novo território. Técnicas como o uso de pimentas para conservação, o cozimento em panelas de barro e a transformação de grãos em massas e frituras foram recriadas com produtos locais. A culinária tornou-se um espaço de resistência, garantindo a continuidade da memória ancestral.

Dendê, gengibre, pimenta, inhame e feijão-fradinho

Entre os ingredientes que marcam a presença africana na culinária baiana estão:

  • Dendê: óleo da palma africana, essencial em acarajé, vatapá e moqueca. 
  • Feijão-fradinho: base do acarajé e do abará, pratos que unem rituais e consumo popular.
  • Pimenta malagueta: intensifica sabores e atua como conservante natural.
  • Gengibre: utilizado em molhos e temperos, trazendo frescor e intensidade.
  • Inhame: tubérculo presente em preparos cotidianos e em rituais religiosos.

A combinação desses ingredientes, somada ao leite de coco, consolidou uma gastronomia que une herança africana, produtos locais e criatividade.

Herança africana e resistência cultural

A comida foi um dos instrumentos de preservação cultural e espiritual. Preparar e compartilhar receitas tornou-se uma forma de resistência. O Ofício das Baianas de Acarajé, registrado pelo IPHAN como Patrimônio Cultural Imaterial em 2005, é símbolo dessa resistência. As baianas, herdeiras de saberes transmitidos por gerações, preservam práticas ligadas à religiosidade, à culinária e à economia popular.

Da comida de terreiro à mesa popular

Grande parte dos pratos mais conhecidos da Bahia nasceu nos terreiros de Candomblé, como oferendas aos orixás. O acarajé, o abará, o vatapá e o caruru carregam significados religiosos e seguem preceitos específicos em seus preparos.

Com o tempo, essas receitas ultrapassaram os limites rituais e chegaram às ruas, levadas pelas quituteiras. Essa transição ampliou o acesso à gastronomia afro-baiana sem apagar seu caráter sagrado, transformando-a em símbolo da identidade cultural de Salvador e da Bahia.

Exemplo disso são as festas populares, que têm a comida como elemento central que une religiosidade e celebração em diversos eventos ao longo do ano. 

Caruru de São Cosme e São Damião é tradição em setembro na Bahia | Foto: Jonas Santana/GovBa

Em setembro, o baiano já anuncia que está aberta a temporada de aceitar convites para carurus. É que no dia 27 do mês o prato é o carro-chefe do Dia de São Cosme e São Damião, conhecidos como “santos gêmeos”, no catolicismo, ou ibejis, no candomblé.

A tradição popular, inclusive, diz que a iguaria deve ser servida primeiro a sete crianças. Por isso, a prática é conhecida como “caruru de sete meninos”. E quem encontrar um quiabo inteiro no prato deve oferecer um caruru completo no ano seguinte, com direito a vatapá, xinxim, feijão fradinho, acarajé, entre outros acompanhamentos.

Cabe ressaltar que em setembro de 2024 o caruru de São Cosme e São Damião se tornou patrimônio imaterial da Bahia. O título ao prato feito com quiabo, camarão seco e azeite de dendê foi aprovado por unanimidade pelo pleno do Conselho Estadual de Cultura (CEC). 

Acarajé: um símbolo gastronômico, histórico e cultural

O acarajé é muito mais que um quitute. De origem africana e com profundo significado religioso, o bolinho de feijão-fradinho frito no azeite de dendê é um ícone da culinária baiana e um patrimônio cultural de Salvador e do Brasil.

A história do acarajé começa no Golfo do Benim, na África Ocidental, de onde a receita foi trazida para o Brasil por imigrantes africanos durante o período da escravidão. A palavra, derivada do idioma iorubá, significa "comer bola de fogo" (akará = bola de fogo e jé = comer), uma referência direta ao mito de Xangô e Iansã, orixás do candomblé.

Segundo a tradição, Iansã, a deusa dos ventos e das tempestades, foi agraciada com a capacidade de cuspir labaredas de fogo após provar um preparado mágico. Em sua homenagem, o acarajé é ofertado aos orixás, sendo o preparo com nove bolinhos uma oferenda comum para Iansã.

Inicialmente, o consumo do acarajé era restrito a negros, escravizados e pessoas de baixa renda. Sua comercialização se tornou uma fonte de renda para os terreiros, com as 'escravas de ganho' vendendo o quitute para se sustentar. Hoje, o acarajé é uma iguaria popular e um símbolo da identidade baiana.

As baianas de acarajé e o ofício sagrado

Ofício das baianas de acarajé foi reconhecido como Patrimônio Nacional pelo Instituto do Patrimônio | Foto: Associação Nacional das Baianas de Acarajé

A venda do acarajé está intrinsecamente ligada às baianas, mulheres que, em sua maioria, são mães ou filhas de santo. Elas não apenas preparam a comida, mas também preservam uma tradição ancestral. O Ofício das Baianas de Acarajé foi reconhecido como Patrimônio Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2005.

O tabuleiro, onde elas expõem o acarajé e outras iguarias como abará, cocada e vatapá, é mais que um ponto de venda. É um espaço que reflete a cultura e a fé, abrigando também objetos rituais como figas e colares de conta. A indumentária tradicional das baianas — com seus vestidos longos e brancos e panos na cabeça — é um sinal de sua religião e status social.

A receita do verdadeiro acarajé

O segredo de um bom acarajé reside na sua massa. O quitute é feito de feijão-fradinho que, após ser quebrado e hidratado, é triturado em moinho ou liquidificador. A massa, temperada apenas com cebola e sal, é batida vigorosamente para incorporar ar, garantindo que o bolinho fique macio por dentro e crocante por fora após a fritura.

O preparo final é feito em um tacho de azeite de dendê. As baianas, moldam os bolinhos e os colocam para fritar. Para servir, o bolinho é cortado ao meio e opcionalmente recheado com vatapá, salada, camarão seco e, para quem gosta, pimenta. Em vídeo disponível no YouTube, a chef baiana Lili Almeida e Elaine Assis, filha da lendária Dinha do Acarajé, ensinam a fazer a receita tradicional e reforçam que a iguaria é "uma comida sagrada e oriunda de matriz africana".

Confira abaixo os ingredientes e o modo de preparo do acarajé:

  • Hidratar o feijão-fradinho quebrado em água por algumas horas (hoje em dia já há possibilidade de comprar a massa pronta);
  • Triturar o feijão com cebola e sal até obter uma massa consistente;
  • Bater a massa para aerar;
  • Fritar colheradas da massa em azeite de dendê quente;
  • Pode servir recheado com vatapá, camarão, salada, caruru e/ou pimenta.

Em tempo: Influenciador nigeriano viraliza ao comer acarajé em Salvador

Em junho, o influenciador nigeriano Jamal Capable viralizou nas redes sociais após compartilhar a emoção ao provar o acarajé em Salvador. A experiência culinária tocou profundamente o criador de conteúdo, que associou o prato à sua infância e juventude na Nigéria, especialmente por ele ser do povo yorubá, cuja cultura tem forte presença na Bahia.

Doces típicos da Bahia: cocada, bala de coco, manjar e mais; confira

Entre os doces típicos da terra de todos os santos, alguns se tornaram praticamente símbolos afetivos, a exemplo da cocada, bolinho de estudante, bala de coco (bala baiana ou, ainda, "bala de vidro"), além de sobremesas como o manjar dos deuses, cujas receitas podem ser vistas no Aratu On.

Com informações do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e Fundação Joaquim Nabuco.

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