Conhecimento e cooperação: projetos rurais transformam realidade de moradores em Presidente Tancredo Neves
A cidade de Presidente Tancredo Neves tem crescido com comercialização de mandiocas e bananas por meio de duas iniciativas: a Casa Familiar Rural (CFR) e a Cooperativa de Produtores Rurais (Coopatan)
No baixo-sul da Bahia, mais precisamente a cerca de 258 km de distância de Salvador, a jovem cidade de Presidente Tancredo Neves (PTN) é lar de 27.734 pessoas (Censo 2022) e também de duas iniciativas, que têm mudado a realidade do município e de seus moradores, de acordo com eles mesmos.
O Aratu On foi ao município, fundado em 1989, após se emancipar da cidade de Valença, para conferir a Casa Familiar Rural (CFR) e a Cooperativa de Produtores Rurais (Coopatan), iniciativas voltadas para a atividade agrícola da região, que é a principal fonte econômica de PTN, por meio do cultivo e comercialização de produtos in natura e derivados da mandiocas e bananas.
O primeiro projeto visitado foi a Casa Familiar Rural, fundada em 2002, uma instituição de ensino médio e técnico, voltado para a agropecuária, totalmente gratuita, que se mantém por doações e parcerias. De acordo com funcionários e estudantes da CFR, é nas hortas e salas de aula do local que acontece uma verdadeira “transformação de vida”.
[caption id="attachment_347933" align="aligncenter" width="700"] Lucas Pereira/Aratu On[/caption]
A Casa recebe inscrições de jovens entre 14 e 18 anos que tenham interesse e aptidão para a agricultura e busquem, a partir da educação no campo, se desenvolverem. Ao longo desses 22 anos, mais de 500 estudantes foram formados, algo que, de acordo com o diretor da instituição, Thales Lima, é motivo de “muito orgulho”.
Há 12 como integrante do projeto, Thales, que também é formado em zootecnia, conta que deixou para trás a cidade de Ilhéus, no sul da Bahia, para se dedicar ao trabalho na instituição. Atualmente, a CFR conta com 131 jovens, divididos em três turmas de Ensino Médio e Técnico, ele explicou que a instituição atende os moradores de Presidente Tancredo, mas também de cidades do entorno, como Teolândia e Wenceslau Guimarães.
“O nosso grande objetivo aqui é que esses jovens se tornem empresários rurais da agricultura familiar. A implantação da Casa visa com que esses jovens, filhos de agricultores familiares, possam olhar para essa propriedade rural e ver ela como uma empresa, uma oportunidade de melhora de vida”, destaca.
Adotando um modelo francês de educação, baseado no princípio da alternância, esses estudantes ficam sete dias na instituição de ensino e outros 15, atuando em suas comunidades. “Eles ficam imersos aqui durante sete dias, dormindo e convivendo uns com os outros, tendo aulas de matérias do ensino médio e também as matérias técnicas. Após essa semana, eles retornam para atuarem em suas comunidades, levando algumas atividades teóricas e práticas, que são acompanhadas por monitores, que vão até esses locais, até a casa desses jovens, para avaliar, tirar dúvidas e ajudar também na relação com a família e com a comunidade”, explica ele.
“A nossa missão é oferecer uma educação profissional de qualidade e permitir que esses jovens possam continuar nas comunidades, no município, trabalhando com agricultura” - Thales Lima, diretor da CFR
Em todo território baiano, existem apenas três unidades de CFRs: além da CFR-PTN, existe uma Casa na cidade de Nilo Peçanha e outra em Igrapiúna. Questionado sobre a razão pela qual a proposta das Casas Familiares Rurais não se espalhou, Thales afirma que não há investimento suficiente por parte das empresas, que dizem considerar o projeto "caro demais", algo que o diretor classifica como uma "bobagem", uma vez que "é a partir da educação que a gente consegue transformar vidas".
Para manter a Casa em Presidente Tancredo Neves, o projeto conta com parcerias com empresas como Braskem, Bayer, Sebrae, Banco do Nordeste e, em especial, a Fundação Norberto Odebrechet, que é de onde vem a maioria dos recursos, através do programa "Tributo Futuro", que arrecada doações dos próprios funcionários do grupo.
Enquanto pessoa física, é possivel contribuir com o projeto em até 6% do imposto renda, na hora de declarar, para o Fundo da Infância e Adolescência de Presidente Tancredo Neves, que repassa os valores para a Casa e outros cinco projetos locais.
ATRAÇÃO E PERMANÊNCIA
Outro fator importante que Thales destaca é o fenômeno da “permanência”, onde, segundo o gestor, graças às capacitações técnicas, esses jovens deixam de seguir para outros municípios maiores como Ilhéus e Santo Antônio de Jesus, para se dedicarem às atividades em “casa”.
A visão é compartilhada pela engenheira agrônoma Ivanete Santos, que atua como monitora das turmas da Casa. Vinda de Teolândia, que fica a 21 km de Tancredo, Ivanete é ex-estudante da CFR, matriculada em 2008 e formada em 2010, e desde que deixou a instituição, já havia o desejo de retornar para a região. “Após sair da Casa, eu fui fazer agronomia na UFRB [Universidade Federal do Recôncavo da Bahia], e depois, surgiu a oportunidade de voltar para fazer meu TCC aqui na Coopatan e estagiar na CFR. Quando eu formei, eu já tinha esse desejo de continuar contribuindo com a educação com a formação dos jovens da região e pude continuar”, afirmou.
Vinda de uma família de produtores, a professora contou ainda que sempre trabalhou com a terra, mas que o trabalho realizado por seus pais e avôs exigia um grande esforço físico e tinha um resultado pouco satisfatório. Mas, por meio do que aprendeu ao longo dos três anos de curso, a situação mudou drasticamente.
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“A gente sempre viveu do campo e então eu já tinha essa relação de produzir, só que a gente não sabia ainda como produzir bem. Então nós trabalhamos de uma forma que tinha um grande esforço físico, mas a produtividade era muito baixa. Depois dessa passagem pela escola, isso impactou minha família como um todo, não apenas a mim, mas também as pessoas ao me redor”.
“Quem entra na Casa Familiar Rural, com certeza, não sai a mesma pessoa” - Ivanete Santos
Mais que aprimorar aqueles que já tem uma afinidade com a terra, o trabalho desenvolvido na CFR também serve como um “norteador” para quem ainda não sabe o que quer fazer da vida. Quem conta um pouco sobre a importância da escola é o jovem Elismar Brito, de 20 anos, formado na última turma, em dezembro de 2023.
“Eu digo sempre que a Casa contribuiu muito para mim. Eu era um jovem que não tinha terras e após ter passado pela CFR, me tornei um empresário rural, tenho quatro hectares de terras minhas e coordeno cinco funcionários que trabalham para mim. Eu sempre fico emocionado em falar, porque a Casa realmente mudou a minha vida", revelou.
Criado com os avós e alguns tios, Elismar afirma que, os parentes já trabalhavam com agricultura, mas que não costumava se ver nesse universo e o choque de realidade após iniciar os estudos foi grande.
"A maior dificuldade que tive foi de me adaptar, eu não costumava dormir fora de casa, passar uma semana fora, mas, depois de um tempo, eu fui pegando gosto, vi as mudanças acontecendo e segui, aquilo acabou sendo muito rápido".
[caption id="attachment_347935" align="aligncenter" width="700"] Elismar Brito - Arquivo Pessoal[/caption]
MULHERES NO CAMPO
Com aulas de práticas agrícolas, adubação e cuidado com a terra, e cultivo de fruticultura, como bananas e abacaxis, aliado aos componentes curriculares básicos do Ensino Médio, como sociologia e matemática (aulas dadas por Ivaneide e Thales, respectivamente), a busca por inscrições na instituição só tem aumentado bastante ao longo dos anos, tendo alcançado no ano passado, cerca de 583 inscrições, para 35 vagas.
Durante a entrevista, Thales também comentou sobre a presença feminina no campo. Apesar de ser ainda um ambiente “muito machista”, há uma melhora perceptível graças à presença de meninas e mulheres nesse meio.
“Hoje, 44% dos nossos jovens são meninas. E nós saímos de 30% para 44%, ao longo desses anos e agora a gente tem que trabalhar ainda mais. Aí eu destaco que no nosso primeiro ano de formação, a metade das turmas é de meninas, 50% meninos e 50% meninas. Então a gente tem realmente feito um trabalho muito grande para poder intensificar e quebrar esses paradigmas”, destacou o diretor.
Aos 18 anos, a jovem Camila Pereira, é mais um exemplo de como a instituição atua na vida das pessoas. Colega de classe de Elismar, formada em dezembro do ano passado, ela conta que só se matriculou após incentivo de uma professora da Casa Familiar Rural de Igrapiúna. Graças à insistência da educadora, que trabalhava na fábrica de polpas da família de Camila, a jovem resolveu participar da seleção e foi aprovada nas etapas.
“Eu já ajudava minha família, mas não tinha muita aptidão para o campo, e não pensava em seguir em frente com isso. Após ela insistir e também um primo meu, que estudou lá, me inscrevi e já fui gostando durante o processo de seleção”, revelou. Apesar da dificuldade enfrentada pela questão das aulas virtuais, adotadas por causa da pandemia de Covid-19, a jovem contou que, após o reestabelecimento dos encontros presenciais, outras dificuldades apareceram:
“De início, o que mais surgiu de conflito para mim foram as atividades, que puxavam muito para o meio rural, e era uma coisa que eu não gostava tanto. Mas, no decorrer do tempo, eu fui me desenvolvendo no profissional, mas, principalmente, na parte pessoal, pelas visitas técnicas e acompanhamento dos monitores. E foi aí que eu descobri o que realmente eu queria me dedicar, que a de empresária”.
[caption id="attachment_347936" align="aligncenter" width="700"] Camila Pereira - Arquivo Pessoal[/caption]
A técnica em agropecuária revelou que o mundo do agro ainda é “muito complicado”, devido à resistência que muitos produtores rurais têm com a figura e presença da mulher. Formada, a jovem, que presta assistência a pequenos produtores da comunidade aos finais de semana, revelou que o tratamento recebido é diferente, por ser mulher.
“É muito complicado, ainda é muito tabu. E para você ser uma técnica, você precisa ser muito boa, porque, a gente sabe que o machismo é estrutural, e o produtor rural não olha para uma profissional mulher da mesma forma que olha para um homem, na função de técnico. Em comparação a 10 anos atrás, a situação é outra, mas ainda a mulher precisa se aprimorar mais, porque não é todo mundo que acredita”, destaca Camila.
Essa presença cada vez maior de meninas e mulheres em atividades do campo, de acordo com a professora Ivaneide, se dá por causa de fatores como a “sensação de pertencimento e o orgulho de ser do campo”, impulsiona essa tomada de posição, ainda que as dificuldades existam, primordialmente no seio familiar.
“Os meninos têm mais facilidade em desenvolver o seu projeto produtivo, as meninas têm mais dificuldade, porque depende mais do pai e alguns pais são mais resistentes quando se trata de meninas falando do campo. A gente verifica isso muito forte a própria estrutura familiar. Mas tanto as minhas colegas, quanto eu, sabemos que a nossa presença influencia de forma muito positiva outras meninas a entender que é possível sim desempenhar um papel importante no campo, mas é um grande desafio”, revelou a jovem.
Atualmente, Camila está disputando uma vaga para o curso de agronomia na UFRB e tem trabalhado na fábrica da família, “fazendo um pouco de tudo”. “Pretendo me aprimorar e voltar com mais conhecimento para poder auxiliar no gerenciamento da fábrica. Hoje é esse meu desejo, já que, anteriormente, eu pretendia fazer algo ligado a contabilidade”.
TRABALHO EM COOPERATIVA
Para além do trabalho educacional de referência na região, outra iniciativa de grande impacto em Presidente Tancredo Neves é Coopatan, cooperativa de produtores rurais. O projeto, fundado nos anos 2000 por um grupo de 30 produtores rurais da região que buscavam organizar a cadeia produtiva da mandioca, principal produto do município, se expandiu para a fruticultura e conta atualmente com 366 associados e uma fábrica própria de produção de farinha, tapiocas e beijus, além de doces de banana.
[caption id="attachment_347937" align="aligncenter" width="700"] Lucas Pereira/Aratu On[/caption]
Ex-presidente da cooperativa e atualmente na assessoria da presidência, Juscelino Macedo, brinca que é “suspeito” para falar da Coopatan, onde é membro há 20 anos, e que tem “história atrelada diretamente a do município de PTN.
“A gente tem um foco muito no trabalho, de conseguir organizar a produção do cooperado através da assistência técnica. Aqui na cooperativa, então, o produtor se responsabiliza pela produção agrícola [matéria-prima], e a Coopatan, na agroindustrialização e depois a comercialização dos seus produtos”, explica.
[caption id="attachment_347938" align="aligncenter" width="702"] Juscelino Macedo - Divulgação/SDE[/caption]
Classificando a Coopatan como um dos “pilares de desenvolvimento econômico” em PTN, Juscelino acrescenta que com o desenvolvimento da cooperativa e a inserção de técnicas e tecnologias, a produtividade da região teve um aumento significativo e a mudança é percebida no comportamento dos cooperados:
“A partir do trabalho, o agricultou tem essa visão de que ele é um empresário e não é um pobre coitado. Ele é um comerciante! E por conta disso, ele tá sempre buscando novas técnicas para aumentar a produtividade, ao mesmo tempo que também vai se aprimorando, e isso gera um reinvestimento”.
PRODUÇÃO E PRODUTORES
Crescendo ao longo do tempo, além da comercialização de produtos in natura, como mandioca e outras frutas como bananas e abacaxis, a Coopatan possui atualmente um parque industrial para a produção de produtos derivados da mandioca e da banana, como farinha, beiju e doce. Apenas em 2022, foram mais de 4,9 mil toneladas de alimentos produzidos, segundo a cooperativa.
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Um dos pilares para o crescimento da produção são as parcerias firmadas pela cooperativa com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e com a Casa Familiar Rural de Presidente Tancredo Neves. Esta última está localizada a menos de um quilômetro de distância e as proximidades não param por aí. Para além das parcerias de pesquisa, com a cooperativa e seus associados disponibilizando terras para que estudantes da CFR coloquem em prática seus projetos, há também casos de funcionários da Coopatan que estudaram na instituição, a exemplo do atual presidente da Coopatan, Nildo Costa.
A história de Nildo é bem parecida com a de Camila, Elismar e Ivanete: com nove irmãos, ele é filho de produtores rurais e, a partir dos conhecimentos obtidos na escola rural, pode melhorar de vida a partir da otimização da produção de suas próprias terras.
"Eu não tinha noção nenhuma da agricultura, trabalhava de qualquer jeito, fazia tudo avulso, sem conhecimento nenhum. E aí, a partir do momento que o passei a estudar na casa, fui adquirindo conhecimento e aplicando na minha propriedade , podendo chegar ao nível que eu estou hoje", conta o produtor rural.
Nildo ressalta que graças a outro projeto que Coopatan executa, o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), ele passou a ser dono de uma área estimada em 12,3 hectares de terra produtiva - o que equivale a quase 15 campos de futebol.
Quem explica sobre o PNCF é o assessor de projetos da cooperativa, Ademar Barreto. Resumidamente, o crédito fundiário é um programa federal de financiamento agrário, onde, nesse caso, a Coopatan realiza a intermediação entre os trabalhadores e candidatos, às propriedades disponíveis para uso e as instituições para o financiamento e o Governo Federal. Atualmente, são quatro condomínios agrícolas, como são chamados os espaços de terra repartidos entre os trabalhadores.
"Essa série de benefícios e facilidades tem realmente impactado na realidade das pessoas. É uma reforma agrária real, que destina essas terras não produtivas para pessoas que realmente querem trabalhar e produzir para si", destaca Ademar. Apenas em 2021, quando ainda existiam apenas três condomínios agrícolas, a movimentação econômica gerada pelo projeto representava cerca de 19,6% do total da cooperativa.
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Cooperado há três anos, Érico "Cowboy" fala com alegria sobre ser um dos contemplados no Crédito Fundiário. "Antigamente, eu não tinha terra para mim, trabalhava para os outros, e graças à Deus agora eu posso me considerar um produtor rural". Por serem culturas de rápido retorno, banana e mandioca dão tom da paisagem nas terras de "Seu Cowboy", na Comunidade Agrícola Mussurunga.
Questionado se espera que, no futuro, os filhos toquem a sua produção agrícola, Érico não pestaneja na resposta: "Ave Maria, eu espero que eles multipliquem [a produção]. Eu acredito que é possível viver hoje da agricultura, sem precisar que nossos meninos se formem e vão para outra cidade buscar uma oportunidade para sobreviver".
E é assim, entre uma aula e outra, um plantio e uma safra, que uma nova forma de fazer agricultura dá uma nova perspectiva de vida para moradores de Presidente Tancredo Neves e região, através da educação, da dedicação e amor ao que a terra dá.
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