Quatorze corações e uma história: o drama dos moradores do Juliano Moreira - desamparados até pelas próprias famílias
Renata Passos, assistente social da unidade há sete anos, explica que, geralmente, o que leva uma pessoa a permanecer num hospital psiquiátrico é a falta de contato com a família.
Um corredor colorido e enfeitado com bandeirolas leva até a sala do antigo Hospital Dia em que Marina* e outros 13 moradores do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira vivem juntos. Marina mora lá há “seis ou nove anos”, como conta, e foi internada após sofrer um aneurisma que trouxe sequelas cognitivas irreversíveis.
Atualmente, 14 pessoas vivem no Hospital Juliano Moreira - e, como já é de se esperar, não por escolha -. Renata Passos, assistente social da unidade há sete anos, explica que, geralmente, o que leva uma pessoa a permanecer no hospital psiquiátrico é a falta de contato com a família. O paciente, que está em crise, entra na unidade e, quando recebe alta médica, não tem para quem, nem para onde voltar.
“Nós temos pacientes que eram moradores de rua que a polícia trouxe para cá, e esse paciente não sabe dar dados de ninguém, não sabe dizer onde mora. Não sabe, às vezes, dizer o próprio nome. E temos pacientes que as famílias trouxeram. Muitas vezes, o pai e a mãe. Aí, o paciente ficou internado um tempo, saiu algumas vezes, voltou novamente, aí os pais morrem, e os irmãos não dão conta. Às vezes, o paciente não tem esposo ou esposa, não tem filho, só tem os irmãos. Nossa maioria é assim. Então, o paciente vai ficando”, diz Renata.
Esse é mais ou menos o caso de Marina e de uma outra moradora do hospital: a idosa tem duas filhas, mas, por mais que o hospital tente retomar o contato e incentive a família a levá-la de volta para casa, aparece um contratempo.
“Enquanto os pacientes estão aqui, a gente não deixa de procurar as famílias. Só que as famílias alegam que não têm condições de buscar. Nem todo mundo está preparado para lidar com o transtorno mental. E existem várias outras questões: a questão financeira, a questão de saber lidar. Às vezes, o paciente recusa a medicação, aí precisa convencer, montar alguma estratégia. Isso tudo leva tempo. Eu consegui resgatar a família de uma paciente, e aí, eu disse: ‘Venha visitar!’. Dei todas as opções: ‘Eu vou lhe buscar, eu vou com o carro lhe buscar na sua casa, depois eu vou lhe deixar’. Mas, estava sempre botando um empecilho, sabe?”.
No final das contas, por mais que Marina, como ela diz, ainda espere o dia em que vai voltar para casa, ela quase não recebe visitas.
UTI DA PSIQUIATRIA
Diretor clínico do Juliano Moreira, o psiquiatra Antônio Freire ressalta que hospital psiquiátrico não é asilo, pelo contrário, só interna casos gravíssimos, como se fosse uma UTI - e ela só é acionada quando a assistência ambulatorial não consegue mais dar conta. “Quando todos os equipamentos extra-hospitalares falham, vem a indicação do hospital psiquiátrico. O hospital psiquiátrico é exclusão, não é regra. Ele é a última medida”.
Por isso, só é internado o paciente que, devido à doença psiquiátrica, está correndo risco de morte, ameaçando a vida de outra pessoa, depredando patrimônio ou está apragmático, ou seja, perdeu a capacidade de cuidar de si mesmo.
“A primeira coisa para a gente pensar que o paciente pode necessitar de uma internação é que ele tenha uma doença psiquiátrica descompensada. É preciso que esse indivíduo tenha critérios de risco, ou seja, a internação é o último recurso. Por exemplo: esse paciente, por conta da doença, está colocando a vida dele em risco. Ou um paciente que tem um elevado risco de agredir alguém por causa da doença psiquiátrica”, comenta Antônio.
JUSTIÇA
O que acontece com frequência, porém, é um embate entre a medicina e a Justiça, como analisa o médico: a Justiça decide pela internação de um paciente e ela mesmo define quando esse paciente deve ter alta, contrariando a alta médica. E aí, por mais que a pessoa já esteja bem e já possa sair do hospital, ela fica lá até por meses, esperando o tempo do judiciário.
“Por exemplo: o paciente fez uma psicose induzida por drogas. Nesses casos, uma boa parte deles têm uma melhora rápida. Em 24 ou 48 horas o paciente melhora e, 48 horas depois, pode se estar programando a alta já. Aquilo que motivou a internação foi resolvido? Foi. Alta hospitalar, acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial. A proposta é sempre proporcionar a esse indivíduo o resgate dos direitos dele de cidadão”, comenta Antônio.
No Juliano, uma pessoa passa, em média, de duas a três semanas internada, já que medicamentos psiquiátricos levam um tempo para mostrar resultados. É aí que a disparidade entre a alta médica, a decisão do juiz e até o desejo da família se encontram - e, geralmente, de formas contraditórias.
“Às vezes, a família quer que o paciente fique por três meses, seis meses. Às vezes, o juiz quer que o paciente fique seis meses internado, como se fosse uma pena. Mas, não é uma pena, é tratamento. Por exemplo: o juiz determina que o paciente fique, no mínimo, 60 dias. Mas, aí, o paciente com 20 dias está ótimo. E aí?", completa.
"Uma outra coisa que a Justiça traz para o hospital psiquiátrico é a decisão: ‘Não autorizo a desinternação’. Ou seja, não autoriza que o paciente saia. Você pode dar alta médica, mas o paciente só pode sair quando a Justiça autorizar, o que é uma extrapolação do que prevê a Lei”, acrescenta o médico.
A Lei 10.216, de 2001 - chamada de Reforma Psiquiátrica -, prevê que uma internação aconteça por três modalidades diferentes: a internação voluntária, que se dá com o consentimento do paciente; a internação involuntária, que acontece sem o consentimento do paciente, mas com o pedido de uma terceira pessoa; e a internação compulsória, que é determinada pela Justiça.
Assim, o Ministério Público realmente pode determinar que um paciente seja internado. O que chama a atenção é a alta: se a pessoa está bem, por que ficar presa? E como isso pode contribuir para a superlotação das unidades psiquiátricas do país?
“A questão é que a Lei não prevê que precisa de autorização para a saída. E isso, muitas vezes, faz com que esse tempo de permanência se prolongue para além da indicação médica. Esse é um problema. O paciente está de alta, a gente manda o ofício informando isso, mas tem que esperar o juiz dizer: ‘Proceda com a desinternação’. O nosso hospital tem 88 leitos para pacientes agudos, num hospital de referência para a Bahia toda. Eu preciso girar leito. Senão, rapidamente, eu fico com uma superlotação”, conclui Antônio.
RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS
Para os pacientes que são mantidos nos hospitais e não têm mais para onde voltar, há uma solução: o Serviço Residencial Terapêutico (STR). Quem mora lá, faz de tudo: cozinha, arruma a cama, varre a casa, limpa a área externa, põe a mesa e lava a louça. Por isso, como explica a assistente social Renata Passos, antes de estar apto para ir para uma residência, o paciente vai aprendendo - ou reaprendendo - a fazer todas essas coisas do dia a dia. “Esses pacientes que estão aqui há 15 anos, 20 anos, são os candidatos para as Residências Terapêuticas (TRs)”.
Atualmente, de acordo com dados da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), há 27 Residências Terapêuticas em municípios espalhados pelo estado, que abrigam 173 pessoas. A maioria das casas já habilitadas para receber moradores fica em Salvador, que acomoda 51 pacientes desinstitucionalizados.
No Juliano Moreira, antes da pandemia, alguns moradores com condições menos graves viviam em casinhas que ficam ali perto da portaria do Hospital, os Lares Abrigados, que tinham lugar para 12 pessoas. A vida lá, como conta o diretor geral do Juliano, Geovane Costa, era como uma preparação para a mudança para as TRs.
Quando a pandemia estourou, para evitar surtos de Covid-19 entre os pacientes, o hospital decidiu fechar os Lares Abrigados e levar os habitantes de lá para um local mais seguro e isolado - o antigo Hospital Dia do Juliano Moreira. A unidade foi modificada para ficar com mais cara de casa, mas, como relembra Geovane, o espaço continua sendo um prédio hospitalar, com uma estrutura hospitalar e um serviço hospitalar.
Diferentemente das duas casinhas rosadas dos Lares Abrigados, em que os moradores tinham mais independência para tudo, menos cozinhar, no Hospital Dia tem quem arrume as camas e limpe o local. No final do ano passado, oito antigos moradores dos antigos Lares Abrigados conseguiram vagas em uma Residência Terapêutica e, depois de décadas morando no Juliano, foram para uma casa nova. E eles tiveram sorte: esse grupo, que já vivia junto há anos, conseguiu ficar na mesma residência, no município de Itapetinga, Sudoeste da Bahia.
Geralmente, como explica Renata, a maioria dos pacientes quer, sim, ir morar em uma casa. E aí, quando abre vaga em alguma RT no estado e o paciente cumpre os requisitos para a mudança, começa a etapa de adaptação. Lá nas Residências, todo o suporte médico e psicológico do paciente fica por conta do CAPS.
“O CAPS de referência da região vem aqui, conhece os pacientes, e os pacientes vão lá no CAPS, vão na Residência Terapêutica. Inicialmente, passam o dia, ou passam uma manhã, e a gente fica lá acompanhando. Depois, a gente leva para dormir. A gente vai fazendo essa adaptação e vai conversando com eles também aqui”, comenta a assistente social. Quando a TR fica longe, esse processo é feito online, por meio de videochamadas.
E, mesmo depois da mudança, o contato com alguns ex-moradores continua. “Tem alguns que sempre ligam para cá”, revela Renata. A despedida, de acordo com ela, é impactante para todos: tanto para quem vai, quanto para quem fica e também para os funcionários do hospital. “A maioria sente saudades. Querendo ou não, os moradores formam uma grande família. Como eles perderam os vínculos lá fora, os vínculos todos ficaram aqui, dentro do hospital”.
Mesmo que já esteja no Juliano há quase uma década, Marina, que adora cozinhar, mas, como está no hospital, não pode, conta que não sente vontade de ir para uma dessas residências. “Nem para poder cozinhar?”. “Não”, responde ela. “Por quê?”. “Porque eu tenho a minha casa”.
*Nome fictício para proteger a identidade da paciente.
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