O crime está aposentando o fuzil para atacar de trader na Faria Lima
O crime organizado no Brasil transcendeu fronteiras da ilegalidade, vestiu terno e sentou-se à mesa da economia formal. Agora é um camaleão corporativo que se esconde à vista de todos. A Carbono Oculto prova: estamos diante apenas da ponta de um iceberg
Por Pablo Reis.
Cite o nome da facção criminosa de três letras, sem precisar dizer a sigla de três letras. Eu começo: assalto a banco, tráfico internacional de armas, mercado clandestino de combustíveis… Faria Lima… Congresso Nacional… Judiciário. Depois das revelações da mega operação Carbono Oculto, é impossível dizer até onde o PCC está instalado e até que ponto ele pode ir.
A ação da polícia federal com integrantes da Receita Federal, deflagrada em agosto de 2025, não foi apenas uma investida contra o crime organizado; foi um holofote implacável que revelou a inquietante metamorfose do Primeiro Comando da Capital: de uma quadrilha poderosa, passamos a ver que se transformou em um conglomerado criminoso-empresarial sofisticado e multifacetado. É um raio iluminando por segundos a silhueta de um império subterrâneo que já não se contenta em viver nas sombras.
Mais do que a crônica de um esquema bilionário no setor de combustíveis – movimentando R$ 52 bilhões e operando mais de 1.000 postos em dez estados entre 2020 e 2024 –, a operação expôs uma verdade tão incômoda quanto alarmante: o crime organizado no Brasil transcendeu as fronteiras da ilegalidade, vestiu um terno e sentou-se à mesa da economia formal. A ameaça já não é mais simplesmente à segurança pública, mas à própria integridade dos mercados e a estabilidade do sistema financeiro nacional. Aquele adversário que o Estado tinha costume de enfrentar (ou agia como se o enfrentasse) agora é um camaleão corporativo que se esconde à vista de todos.
Follow the products
Se antes a inteligência policial apontava a bússola para o “follow the money” pra tentar desvendar os intrincados estratagemas de lavagem de dinheiro, agora, a rota é “follow the products”, como indica o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A infiltração em cadeias de suprimentos de bens lícitos, como combustíveis, bebidas, ouro e tabaco, tornou-se o principal motor de lucro. Algumas estimativas chegam a um faturamento global de até 27 bilhões por ano. De dólares!
Só que para chegar nesse valor, a cocaína é dos “ativos” menos importantes entre os negociados. Bater na porta da B3 não é mera diversificação de portfólio, mas uma evolução do modelo de negócios para um campo com maior potencial de lucro, fluxos de receita mais estáveis e, paradoxalmente, uma menor percepção de risco regulatório e penal.
A “Carbono Oculto” é a materialização dessa tese, revelando como o grupo criminoso aplicou uma estratégia de integração vertical para dominar metodicamente toda a cadeia de valor dos combustíveis. Desde a importação fraudulenta de matérias-primas – usando uma rede de empresas de fachada –, passando pela posse ou financiamento de quatro usinas produtoras de álcool, uma frota própria de 1.600 caminhões para distribuição capilarizada, até a vasta rede de postos de gasolina que serviam como “lavanderia” gigantesca para o dinheiro. Além disso, pasmem, a compra de um terminal portuário, de seis fazendas no interior de São Paulo, e de uma mansão em Trancoso, avaliada em R$13 milhões.
Vendem medo e compram cumplicidade
O modus operandi da facção espelha o de um conglomerado monopolista, com a perversa "vantagem competitiva" da violência e da intimidação, que expulsa operadores legítimos e garante o controle de mercado. Em outras palavras, vende o medo.
Aqui na Bahia, o Sindcombustiveis evita falar pública e ostensivamente contra essas ações. Em uma das poucas vezes, o representante citou o Ministério Público para mencionar 200 estabelecimentos que seriam dominados pela organização na Bahia.
No coração do capitalismo brasileiro, a Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo, descobre-se que pulsa o motor financeiro dessa multinacional do crime. A operação expôs o uso de fintechs como “bancos paralelos” ou “clandestinos”, aproveitando-se de um ambiente regulatório historicamente menos rigoroso.
Uma única instituição de pagamento, por exemplo, movimentou R$ 46 bilhões não rastreáveis entre 2020 e 2024, utilizando “contas de bolso” que ocultavam os verdadeiros beneficiários. Além disso, o PCC controlava uma rede de pelo menos 40 fundos de investimento com um patrimônio somado de R$ 30 bilhões, que era usado como máscara para as aquisições.
Essa penetração alcançou grandes nomes do mercado financeiro, revelando uma “classe de facilitadores” de colarinho branco – gestores de fundos, advogados e contadores – cuja cumplicidade consciente é essencial para a operação do esquema. Profissionais que podem ser apontados como engenheiros do crime. A facção, além de armas e fuzis, também é municiada de Excel.
A condenação desses atores do mercado financeiro é tão crucial quanto a prisão dos membros da facção, pois ataca a infraestrutura intelectual que permite a existência de tal conglomerado.
A ponta do Iceberg e a internacionalização do mal
Apesar de, por si só, as revelações serem estarrecedoras, não é difícil acreditar que estamos diante apenas da ponta de um iceberg gigantesco. A sofisticação e a abrangência da infiltração no setor de combustíveis sugerem que outros segmentos da economia legal, como a construção civil, o setor de transportes, o imobiliário e empresas de importação/exportação, podem estar igualmente comprometidos ou são alvos potenciais.
A capacidade do crime organizado de se adaptar e explorar vulnerabilidades regulatórias e institucionais é significativa. O professor Rafael Alcadipani, do FBSP, alertou que "a situação está muito mais complexa do que a gente imagina, o comprometimento dos setores da nossa economia é significativo". Não se trata de problemas isolados, mas de tentáculos estendidos por uma vasta rede oculta que pinta de legalidade a prosperidade do que é ilícito. E conta com a engrenagem estatal emperrada no século XX, enquanto o adversário já opera com algoritmos e redes globais.
A expansão do PCC não se limita às fronteiras brasileiras. A presença confirmada em pelo menos 28 países é viabilizada tendo Portugal como porta de entrada estratégica para a Europa. Relatórios de inteligência indicam que a facção não está exportando apenas cocaína, mas um sofisticado modelo de negócios.
Infiltrar-se em setores da economia legal europeia para lavar capital e estabelecer fachadas empresariais duradouras é a meta e também um alvo. O mundo e, sobretudo, os EUA vão cada vez mais rotular o contágio global como questão de soberania nacional, tanto para o Brasil quanto para as nações receptoras. É a internacionalização do mal.
Se o Estado não conseguir deter o avanço dessa organização em seu próprio território, corre o risco de ver sua soberania econômica e institucional corroída por um ator econômico hostil com ambições transnacionais.
Se o momento certo para uma ação decisiva contra o crime organizado for "agora", isso já seria um desafio enorme para estruturas de segurança pública que ainda estão ancoradas no século XX, enquanto o mal já avançou para outros níveis de modernização. Pior ainda se esse timing já tiver passado. A operação, embora um marco de cooperação interinstitucional, viu a fuga dos principais líderes do esquema, levantando suspeitas de vazamento de informações.
Bolsa de Valores e noticiário policial na mesma página
O estrangulamento orçamentário de agências fiscalizadoras como a ANP, com apenas um quinto de seu orçamento de cinco anos atrás, enquanto o número de postos cresce, demonstra uma desatenção sistêmica que pavimenta o caminho para a infiltração criminosa.
A análise profunda revela que a batalha contra o crime organizado moderno não é travada apenas nas ruas, mas em balanços fraudados, nos contratos de investimento e nos pregões da bolsa de valores. A "Carbono Oculto" é um espelho do avanço do crime para uma forma híbrida, corporativa e globalizada, que desafia as fronteiras entre o lícito e o ilícito. Enquanto isso, no norte da América, Donald Trump continua espalhando regra, insinuando que não há combate adequado ao narcotráfico entre os países latinos e buscando tirar do fraque a carta da organização terrorista internacional.
A questão para o Brasil é existencial: será que a nação tem a capacidade e a vontade política de desarticular as engrenagens financeiras que sustentam, expandem e protegem as atividades ilícitas dessas facções? O futuro não será decidido apenas em operações policiais, mas em votações no Congresso, na força das agências reguladoras, na capacidade de desmontar o conluio de engravatados que dá sustentação a esse projeto obscuro.
A resposta do Estado precisa ser igualmente sofisticada, integrada. A janela para deter essa "metamorfose" pode estar se fechando, ou já se fechou, transformando o sonho de um país soberano em uma distopia sob a sombra de um império criminoso - em que Bolsa de Valores e noticiário policial são siameses compartilhando um mesmo DNA.
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