Atacar catolicismo é cruel, flerta com crimes e Igreja dá a outra face
A fé que mobiliza centenas de milhões no mundo, sobretudo na América Latina e na Europa latina, vem sendo açoitada por várias frentes, há quase dois mil anos. Artigo de opinião
Por Pablo Reis.
Não lembro bem a qual personagem excêntrico cabe a frase “com grandes poderes, grandes responsabilidades”, se é para o Super-Homem, para o Homem Aranha, ou para Elon Musk. Mas ela se aplica bem ao calvário secular da Santa Madre Igreja Católica.
A fé que mobiliza centenas de milhões no mundo, sobretudo na América Latina e na Europa latina, vem sendo açoitada por várias frentes, há quase dois mil anos. E, podemos concordar nisso, muitas das vezes não é por falta de razão. Só que não precisamos voltar em guerras santas para perceber que as batalhas migraram de cavalaria e armaduras para ataques simbólicos. Muitos deles com toscas e puramente desagradáveis.
O que parece se iniciar com análise e crítica, passa para uma zombaria, e da zombaria para a acusação leviana, e daí para uma generalização ou deturpação de ícones considerados sagrados, o que começa a margear o limite do preconceito religioso.
A mais recente investida, eu vi no AratuOn, foi a exibição, pública e gratuita (em vários sentidos), de um rapaz fantasiado com a imagem de Jesus Cristo, vestindo fio dental. Ocorreu no pré carnaval de Porto Alegre, no chamado Bloco da Laje, e obrigou a faculdade Unisinos, de origem jesuíta, a se pronunciar negando qualquer ligação com a “fantasia” e com o nada reverente folião.
Diabo no quadril
Menos de dez dias antes, um vídeo de uma jovem circulava na rede social em que ela comemorava o fato de o adro da Igreja do Santíssimo Sacramento do Passo, histórica no centro de Salvador, por seus quase 300 anos, por sua escadaria, pela cena de cinema em Cannes, pelo respeitoso evento promovido por Gerônimo Santana… esse patrimônio, tombado pelo IPHAN e aderente ao que de mais íntimo tem no folclore baiano, estava ocupado por gente em mesas de bar, “galera tomando uma cervejinha, usando uma droga, falando uma putaria, porque equilíbrio é tudo: é Deus no coração e o Diabo no quadril”.
Em Dezembro de 2024, faltando pouco mais de duas semanas para o Natal, um mural na escola de Comunicação da Ufba escandalizou poucos alunos com a imagem de um Satanás confraternizando e bebendo um cafezinho na companhia do Papa Francisco.
Estive lá na varandinha, há alguns dias, e a obra continua lá, a despeito do clamor da comunidade católica de que algum responsável pela instituição viesse a se pronunciar. Um dos autores, João Pedro Vasconcelos, pediu “desculpas aos que se sentiram ofendidos”, disse que não queria atacar pessoalmente o pontífice, mas “criticar o Vaticano”.
O Brasil tem 106 milhões de católicos, segundo estimativa de 2021, um pouco menos que os 108 milhões de mexicanos que têm a mesma fé. Naquele país, quase 90% da população comunga desta religião. No Brasil, é a metade. De cada dez católicos no mundo, um está no Brasil, outro está no México.
Missas antropológicas
Não sou o exemplo de católico, apesar de ter cumprido aquela iniciação de infância a qual o brasileiro médio é submetido. (Preciso até confessar que uma parte da antipatia que sentia pela instituição era pela ausência no futebol na tarde de sábado, por causa da aula de catequese). Atualmente, minhas visitas em igrejas são bissextas, testemunhando um casamento, ou meramente contemplativas. É mais como uma experiência antropológica para apreciar e analisar alguns rituais - ou se emocionar com a missa de domingo no Mosteiro de São Bento.
Portanto, o lugar de fala aqui não é de devoto. Embora eu concorde com a importância da Santa Sé em grande parte do processo civilizatório do ocidente, há dívidas históricas, pendências atuais, cumplicidade com práticas condenáveis, passadas e presentes, que fariam o próprio Jesus levantar a voz e destruir o templo contra a hipocrisia de fariseus.
Muita gente boa se aproveitou dessa lacuna entre o que é dito nas escrituras e o que é praticado por humanos representantes delas. Madonna praticamente construiu uma carreira em cima disso. Depois de Taxi Driver e Touro Indomável, Martin Scorsese ganhou projeção mundial com o polêmico A Última Tentação de Cristo. John Lennon também não ganharia comenda no Vaticano.
Não só de tanguinhas enfiadas, pinturas profanas e cerveja misturada com maconha vive o tiro ao alvo contra o legado de Pedro. Há formas bem bem elaboradas, e sensíveis. Como o excelente filme Conclave, que acabei de ver com atuações, com o perdão do trocadilho, abençoadas (Ralph Fiennes, Stanley Tucci, Isabella Rossellini). A obra mostra o que se supõe acontecer nos bastidores da eleição de um papa. É realmente uma filmagem magistral.
Não se avalia aqui a qualidade estética de um filme que merece Oscar, mas os recortes que colocam a Igreja menos como uma instituição de fé e devoção, solidariedade e amor ao próximo, e mais como um palco de intrigas e política (minúscula e nada sagrada), regada a chantagens e perversões ocultas. E, se você puxar na memória, vai perceber que a cada geração há pelo menos um bom filme que tem o pano de fundo essa disputa secular por uma das instituições mais ricas e poderosas do planeta. Na tela, cobiça e outros pecados capitais, embalados por aqueles cenários estonteantes da Basílica de São Pedro ou da Capela Sistina.
Charlie Hebdo: dez anos
O islã não parece muito tolerante a essas investidas na arte. Muçulmanos ficaram indignados com Os Versos Satânicos do britânico Salman Rushdie, em 1988, pelo fato de o autor ter livremente se inspirado na vida de Maomé e no Alcorão. Isso valeu para ele um ultimato do aiatolá. Neste mês, completaram-se dez anos do infame ataque de dois militantes islâmicos à sede do jornal satírico francês Charlie Hebdo. Onze pessoas foram mortas a tiros, incluindo os cinco chargistas que ousaram o grande crime: desenhar na capa uma caricatura do profeta Maomé.
É baseado em ações insanas e fundamentalistas deste tipo que uns aproveitam para alegar passividade dos católicos, como indivíduos, e como instituição. O nome pode variar com fraqueza, frouxidão e displicência. Quem é favorável diz que a Igreja oferece a outra face.
Com uma mão direita sobre a Bíblia, podemos realmente testemunhar que tratamos os ataques feitos à fé dos católicos do mesmo jeito que nós empenhamos para zelar pela liberdade de culto de outros credos? A quem pode interessar essas constantes e incansáveis investidas contra determinado dogma? Como disse lá no começo, com grandes poderes advém grandes responsabilidades. E, que tal se, além destes necessários deveres também existam os mesmos direitos?
*Pablo Reis é jornalista, apresentador na TV Aratu e na Antena 1 FM Salvador
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