A melhor notícia da UFBA em 2024 foi o concurso de sósias de Davi Brito
Evento ganhou o nome de Concurso de Sósias de Davi Brito e aconteceu na noite de quinta-feira (19), em Salvador.
Fonte: Pablo Reis
Estava finalizando um texto sobre Ayrton Senna e como os objetos culturais dos 30 anos de morte dele falam sobre o Brasil de hoje e de ontem, quando me deparei com algo muito mais significativo, atual e representativo. Era noite de quinta (19), e começaram a explodir pela timeline imagens do que tinha acabado de ocorrer no campus da UFBA, em Ondina. O evento ganhou o nome de Concurso de Sósias de Davi Brito, mas isso é tentar reduzir a dimensão ontológica do fato. Melhor seria a gente chamar de apoteose de muito o que a gente identifica como baianidade.
As imagens falam por si e tentar transcrevê-las, além de ineficiente, é injusto. Algumas dezenas concorrendo e centenas assistindo performances, que vão de danças até mímicas, encenações ou maneirismo, gritinhos ou maquiagens. Em determinado momento, alguém decretou nas redes sociais: “Já acabou. A vencedora é de São Lázaro”. Gabriela Queiroz, estudante de História, não tinha apenas um jaleco branco e um sonho. Ela também exalava mais carisma do que o próprio homenageado. Por uma sinfonia de aplausos, o gingado dela emulando o Brother teve vitória. O naipe bateu certo. O prêmio foi um kit de calabresa, desses inflacionados, cujo pacote de 400g vale o mesmo que um quilo de carne em alguns açougues.
Confira a apresentação da vencedora:
Só nesta equação aí (Ufba + concurso + Davi Brito + calabresa) já tem elemento suficiente para povoar meia dúzia de teses que poderiam encorpar a Plataforma Lattes. Pense na imagem de Martin Scorsese com o título Absolute Cinema. Isso aqui é o nosso Absolute cinema. Só que tem mais. “O semestre letivo nem acabou ainda, eu e meus colegas estamos indo à loucura porque o calendário bagunçou muito com as greves. Vamos ter aula em janeiro em um calor baiano nada confortável. A greve não proporcionou ganhos para os estudantes e só atrapalhou o ano letivo de muitos”, desabafou Gabriela, a Davi Brito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, na troca de mensagem que tivemos na manhã seguinte ao título.
A greve a que ela se refere foi a mobilização que começou em abril e só terminou em junho. A universidade federal é um colosso da Bahia. É uma cidade com três campi e uma área superior a 6 milhões de metros quadrados, que impacta, direta e diariamente, a vida de 50 mil pessoas: mais de 42600 alunos matriculados, com 2586 professores e 2966 servidores técnico-administrativos, além de todos os terceirizados. Por ano, mais de 90 mil estudantes se inscrevem disputando pouco mais de 8 mil vagas de graduação. São 113 cursos em campus de Salvador, Camaçari e Vitória da Conquista. A editora da UFBA publicou 123 títulos no ano passado, e 16624 exemplares foram vendidos. No ano passado, 7117 trabalhos científicos foram publicados por essa equipe, o que dá mais de um por colaborador, em média.
Essa estrutura apresenta orçamento anual pouco acima de 1,8 bilhão, com base nos dados do Ufba em Números, pela Pró-Reitoria de Planejamento e Orçamento. Desse valor, um terço (mais de R$670 milhões) vai para pagamento da previdência de aposentados e pensionistas. Para as despesas correntes, o orçamento de 2024 foi de R$173,2 milhões, R$13 milhões a menos que o ano anterior. Segundo os cálculos, se houvesse correção com base no ano de 2016, o valor para as despesas correntes deveria ser acima de R$ 270 milhões.
Diante disso, o que a gente pode falar de pauta positiva sobre a UFBA neste ano? O corte sucessivo e intensivo de gastos? Podemos chamar de pauta positiva a seguinte manchete: UFBa resiste e consegue sobreviver a um governo de direita e um de esquerda que, em sequência, só fizeram achatar orçamentos?
Dizer que a UFBA resiste às guilhotinadas sucessivas é comemorar? Tendo a acreditar que a melhor notícia do ano na universidade foi o concurso Davi Brito, mais até do que o reconhecimento de uma consultoria chinesa que colocou a instituição entre as 18 melhores do país e as 1000 melhores do mundo. Talvez, a melhor produção cultural e acadêmica do ano tenha sido esse evento por tudo o que representou de simbólico. Os grupos das faculdades estavam fazendo transmissões em tempo real. Tinha gente gravando e postando como se fosse apuração de eleições na cidade do interior.
Não fui ver. Só soube depois. E lamento demais isso. Qualquer pessoa que tenha alguma nesga de interesse sociológico gostaria de testemunhar isso. Os haters ganharam impulso para sair do armário (ou do calabouço, sabe-se lá onde esses seres habitam). “Pode sair todo mundo daí direto pro CAPS”, “Queria dar minha opinião mas não posso, não tenho advogado rs”, foram alguns comentários em publicações, seguidos de emojis depreciativos. Este me chamou a atenção: “Quem era a UFBA! Pensar que me orgulho de ser fruto desta instituição! Já não é a mesma”. Obviamente, não é a mesma. Só que não exatamente por essa ação, mas pelo conjunto de coisas que citei anteriormente.
Pois o que vi do concurso de Davi Brito me deu a certeza de ser a mais viva, proeminente, destacável e irreverente contribuição que a universidade conseguiu dar para a Bahia neste ano. Ali, a pouco mais de 100 metros de onde ocorreu o certame (na Biblioteca Central), a popular varandinha da Facom ganhou noticiários na semana anterior por algo bem menos lúdico e descontraído: um mural pintado na pilastra colocou o Papa Francisco e o Satanás, abraçados, compartilhando um cafezinho e sorrisos diabólicos. (Aliás, você já comparou as reações a essa obra e ao fato de Cláudia Leite ter tirado o nome de Yemanjá para colocar Yeshua em uma música? Reflita sobre isso)
São os alunos da maior e mais prestigiosa instituição de ensino do estado zombando de si mesmos. Reverenciando um futuro ex-famoso pra recolocar a academia na realidade pelo caminho lúdico (já que pela via do chamado contingenciamento fica dolorosa demais).
Precisamos iniciar já a documentação para implantar processos de “davibritização” das empresas. (Que, em breve, serão melhorados para os dbrites). Não foi simples chegar lá. O Brother de Cajazeiras gravou vídeo desmentindo o concurso e dizendo que não entendia a “onda de ódio” contra ele. “Isso é uma zona de perseguição contra minha pessoa. Sem uma autorização de minha pessoa, o jurídico e a assessoria estão tomando nota”, ameaçou. Só que o concurso já estava anunciado, em panfletos e na internet. Os organizadores informaram que iriam desistir.
O estudante de Teatro Marcus Vinicius N´atharde achou que o cancelamento seria mais uma estaca cravada na combalida autoestima do “ufbano” deste ano. “Isso tem que acontecer! Os estudantes estavam gostando”. Com a namorada, assumiu a organização e fez o contato com a assessoria do homenageado. Conseguiu uma caixa de som com a turma do Movimento Correnteza e depois viu a magia acontecer: de 50 pessoas, viraram 200 e, no ápice da competição, eram 300 espectadores motivados e inflamados. Alegria pelo resultado do encontro, preocupação pelo resultado acadêmico. “O saldo desse ano foi negativo, tivemos greve de professores, sem apoio do DCE, e logo após a greve os problemas persistiram. Os cortes orçamentários afetam a todos e está sendo um ano letivo difícil, que ainda não acabou”, me contou, no dia seguinte.
Portanto, você que pensa em termos de Empowerment, growth mindset, resiliência, accountability, tá sabendo de nada quando critica. “Eu não ia participar porque eu não tinha mais aula, então ia gastar dinheiro do transporte e eu moro longe da Federal”, relembra Gabriela. “Meu psicólogo acabou mais cedo e fiquei pensando que ia perder algo que ia ser no mínimo divertido. Além disso, eu gosto do Davi Brito, não acompanhei muito durante o BBB porque tinha que estudar. Depois, comecei a ver postagens e gostei muito tanto da personalidade e até das polêmicas, então eu decidi participar”. Perceba quantas nuances têm essas declarações.
“Mais difícil que entrar na Federal é ficar nela. Quando a galera vê o vídeo pensa que é só bagunça mas ali era um monte de estudante cansado, tentando se divertir um pouco depois de um ano cansativo com greves, matérias puxadas, estágios cansativos que, às vezes, tem uma baixa remuneração ou são inexistentes”, desabafou a estudante do 7° semestre, que pretende formar e seguir direto no mestrado.
Ah, Gabriela é atacante! Mudou logo o nick do perfil para “vencedora do concurso de sósias do Davi Brito”. Num dos posts que viralizou, ela aproveitou para inserir uma nota marota: “inclusive, lésbicas e mulheres bissexuais, estou solteira”. A propósito, a arroba dela no instagram é g4briela_qs . Se a UFBa tinha algo melhor para oferecer neste ano, ficou guardado para ela.
Sim, na mesma noite, ela fritou a calabresa e comeu com cuscuz. Sozinha. Comemorar é preciso.
*Pablo Reis é jornalista, apresentador da TV Aratu e da Antena 1