Trabalho infantil: conheça a realidade de um menino que trabalha pelas vielas da Feira de São Joaquim
Trabalho infantil: conheça a realidade de um menino que trabalha pelas vielas da Feira de São Joaquim
– Quantos anos você tem?
– Eu tenho 14 anos.
– Pode falar a verdade, menino. Você é mais novo, não é não?
– Não, eu tenho 14 anos mesmo! Só não cresci muito ainda.
J.P.S.A. vai ser tratado nesta reportagem como João em conformidade ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê a preservação da identidade de menores de 18 anos. Pois João, apesar de afirmar ter 14 anos, aparenta ter, no máximo, 12. E é com a malandragem que se aprende na labuta da feira que ele, já sabedor das leis, afirma com pé firme ter a idade mínima estabelecida para que adolescentes ingressem, de forma regular, no mundo profissional.
João trabalha na Feira de São Joaquim, que fica em Salvador e é considerada a maior da América Latina. E por ser assim, imensa, por lá se vê de tudo, inclusive crianças, meninos e meninas precocemente aprendendo a trabalhar e a sobreviver.
Nosso menino paga R$ 4,00 por dia pelo aluguel do carrinho de mão que usa para trabalhar. Ele se oferece para transportar as compras dos fregueses da feira e tira, por dia, cerca de R$ 50,00, segundo ele, para ajudar a mãe. João apareceu no meio do centro de compras, com passo rápido, afinal não é fácil disputar a clientela com tantos homens mais velhos e também mais fortes. Apesar disso, ele aceitou parar um pouco para falar sobre sua vida, e foi assim que contou que tem mais dois irmãos e que ajuda a mãe de outras maneiras, além do trabalho na feira.
?Eu moro na Capelinha de São Caetano e só trabalho aqui dia de sábado. Chego às 4h30, 5 horas… Fico o dia todo e dou o dinheiro pra minha mãe. Ela cozinha em um restaurante de comida italiana. Eu tenho mais dois irmãos. Um de cinco anos e outro de quatro meses. Durante a semana eu estudo e ajudo minha mãe a cuidar dos meus irmãos, levo e busco o mais velho na escola?, contou a criança que, sem perceber, ao cuidar dos irmãos, acaba sendo vítima também da exploração do trabalho doméstico infantil, o mais difícil de ser diagnosticado e combatido.
Criança normalmente não fala muito ao ser entrevistada, muitas vezes por vergonha, mas João demonstrava outro perfil a cada pergunta que lhe era feita. O menino tinha um discurso pronto. Sabia muito bem o que podia e o que não podia falar. ?Eu só trabalho aqui dia de sábado mesmo. Eu estudo e sei que só a educação vai me dar oportunidade na vida. Eu só venho aqui porque eu gosto, minha mãe nem precisa tanto de ajuda, eu venho porque é legal, eu me divirto. Também prefiro trabalhar do que ficar na rua fazendo coisa errada. Tenho amigos que não estudam e nem trabalham porque querem ganhar dinheiro roubando ou ajudando traficante?, tentava despistar o garoto com um discurso ensinado ou aprendido com a malandragem das vielas da feira.
Mas conversando um pouco mais, o menino se sentiu à vontade para, ao menos, dar uma pista do drama familiar em que vive. Ele contou sobre a ausência do pai e disse que só o conheceu este ano, em seu último aniversário. ?Ele me levou pra encontrar minha avó no interior. Foi a única vez em que a gente se viu. Eu quero muito voltar lá pra ficar mais com eles e pra me aproximar mais do meu pai?, desabafou a criança.
Discurso pronto
Há partes da fala de João que demonstram uma preparação prévia para responder a indagações de possíveis fiscais ou repórteres. Ao falar que tem 14 anos, ele tenta se enquadrar na lei que possibilita a jovens o trabalho, a partir desta idade, desde que na forma da aprendizagem. Segundo a auditora fiscal do trabalho e presidente do Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (Fetipa) Teresa Calabrich, ?a aprendizagem é um contrato de trabalho especial, onde existe a presença do jovem, da instituição de ensino e da empresa na qual ele vai fazer a parte prática do que ele está aprendendo. Também durante a aprendizagem ele tem todos os direitos dele garantidos. A carteira de trabalho assinada, a jornada de trabalho estabelecida e a determinação de quais atividades ele deverá realizar?. Portanto, mesmo que tivesse os 14 anos completos, as condições de trabalho em que João se enquadra no momento não estão condizentes com a lei.
Ele ainda faz questão de ressaltar que só trabalha aos sábados, o que não atrapalharia sua frequência na escola. Este é um dos pontos essenciais para que um processo de aprendizagem seja aprovado, ainda segundo Teresa Calabrich: ?Devem ser observadas as restrições da legislação. O aprendiz não pode trabalhar em local considerado perigoso, em local insalubre, não pode realizar atividades penosas, não pode trabalhar em horário noturno e não pode trabalhar em local ou horário que impeça seu acesso à escola. Ele também está proibido de realizar atividades em locais que o coloquem em situações arriscadas, que comprometam sua saúde psicológica, além de não poder realizar nenhuma atividade que esteja listada na Lei das Piores Formas de Trabalho Infantil, o decreto da Lista Tip que é o 6.481/2008.
Trabalho infantil no estado
João é uma das milhares de crianças com perfis semelhantes que muito cedo precisam assumir uma postura de maior responsabilidade para ajudar na sobrevivência da família. Filho mais velho com mãe solteira e dois irmãos menores para ajudar a criar.
A Bahia é o Estado do Nordeste brasileiro que tem o maior número de crianças e adolescentes em situação de trabalho, ocupando a terceira posição no ranking de trabalho infantil no Brasil, ficando atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais. Estes números são os mais recentes levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, através do Censo 2010. O levantamento diz que existem na Bahia 288.315 crianças e adolescentes, de 10 a 17 anos, em situação de trabalho. Este número corresponde a 13,5% do total de crianças e adolescentes do Estado nessa faixa etária e a 8,5% do total de crianças e adolescentes em situação de trabalho no Brasil (confira os gráficos abaixo).
Da feira para o Pólo Petroquímico
A mesma segurança que João tem para desenvolver sua atividade na feira parece estar presente em seus planos para o futuro.
– E o que você quer ser quando se formar?
– Eu quero trabalhar no Pólo Petroquímico.
– Hum, mas você sabe que vai ter que estudar muito pra isso, né?
– Sei sim. É lá que eu vou trabalhar.
E com essa determinação João encerrou a conversa nos revelando uma faceta um pouco mais vulnerável que aquela apresentada no início da entrevista. Ele disse que iria à barraca de sua tia, seu porto seguro naquele mundo de gente e mercadorias.
Pois lá estava realmente a ?barraca da tia? de João. Só que a tia não era tia de verdade. Ela disse que o menino a elegeu na feira como alguém em quem confiar, uma pessoa que lhe dá água e comida nas horas de necessidade. Uma mãe para uma criança que, no meio de tantos adultos e de uma realidade tão dura, precisa de momentos para despir a capa da responsabilidade e procurar um colo, um refúgio onde possa ser quem ela realmente é, nem que por apenas alguns momentos.
A exploração do trabalho infantil como cultura familiar em Salvador
Boa parte daqueles que vivem nos dias atuais na capital baiana são de uma geração que valoriza as tradições familiares e, junto a elas, o ofício passado de pai para filho. Não é difícil encontrar pelas ruas da cidade senhores orgulhosos do conhecimento que passam de geração em geração, mantendo o negócio que seu pai ou avô começou para garantir o sustento da família. Mas assim como as gerações vão se renovando a cada ano que passa, a consciência coletiva também abre os olhos para perigos escondidos em antigas práticas, até então, vistas como normais.
Fazendo um breve passeio pelas ruas de Salvador é possível ver crianças dentro de oficinas mecânicas, marcenarias, em pontos comerciais… Elas estão ali muitas vezes sem ao menos saberem se era o que queriam estar fazendo, sem a noção de que há muitas outras oportunidades que poderiam ser conquistadas se elas estivessem em uma sala de aula.
Em muitos casos esta consciência aparece, mas quando o tempo perdido já não pode ser recuperado, como é o caso de Pedro Barros. Ele tem 50 anos, trabalha desde os oito e hoje se arrepende por ter interrompido os estudos na quinta série. ?Meu pai me dava oportunidade de estudar, eu que não queria porque achava que eu tinha que ajudar ele?, conta Barros, procurando se culpar por uma decisão que, na época, não deveria caber a ele. A lógica do trabalho infantil familiar é uma das mais difíceis de identificar e combater, pois ela se estrutura em relações pessoais e, em muitos casos, leva a criança a assumir responsabilidades pelo envolvimento afetivo que possui com a família, como no caso do nosso personagem, que se sentia responsável por ajudar o pai a manter o sustento de seus outros nove irmãos.
Feira de São Joaquim
Pedro Barros é filho de Santiago do Iguape, uma pequena vila de pescadores e agricultores quilombolas, pertencente ao município de Cachoeira, no Recôncavo baiano. Ele conta que, mesmo antes de se mudar para Salvador e começar a trabalhar com o pai aos oito anos, já ajudava a família como pescador. Chegando à capital baiana, Barros começou a ajudar o pai em um Box da Feira de São Joaquim, em Água de Meninos.
Entre seus nove irmãos, sendo cinco mulheres e quatro homens, apenas ele e mais um, o Alex, assumiram os negócios do pai e seguem até hoje trabalhando na feira e já passando o ofício para as próximas gerações. No Box em que trabalha, Pedro costuma ter a companhia de um dos filhos, de 13 anos, que aqui identificaremos como João, para preservar sua identidade de acordo com o ECA. Pois João também começou a ajudar o pai, mas há apenas quatro meses. Ele estuda regularmente, faz cursos extracurriculares e, enquanto trabalha na feira, não larga um aparelho eletrônico onde joga videogame.
Quando questionado sobre o que quer para o futuro, se quer trabalhar na feira como o pai, João sorri e diz que não, que quer ser engenheiro. Pois seguindo nesse caminho, o rapaz acabará realizando um dos maiores sonhos de Pedro. ?Eu acho muito bonito um pai acompanhar o filho em uma formatura. Eu nunca tive a oportunidade de me formar, mas quem sabe como pai eu consiga esse orgulho?, diz ele, que observa o filho com um olhar de satisfação.
Pedro tem outro filho de 17 anos, que parece preferir a área do comércio. O rapaz será identificado nesta reportagem como Gabriel, também em conformidade com o ECA. Gabriel chegou à feira com cinco anos e, segundo o pai, sempre demonstrou gostar muito da atividade que exerce diariamente. Tanto que, nos dias atuais, ele já é gerente da loja do tio, que tem uma estrutura física maior que o Box do pai. Apesar da aparente habilidade para o comércio, Carlos concluiu o segundo grau, sob supervisão do pai que, através de sua experiência, tentou garantir um futuro melhor para seus filhos.
?Eu me arrependo e me arrependo muito de não ter estudado. Comércio é coisa incerta, um dia estamos bem, mas no outro pode ser que não. Eu estou vendo muitas portas fechando e a única garantia pra um futuro tranquilo é um emprego fixo, um salário certo todo mês. E isso a gente consegue através dos estudos. Se hoje eu fosse uma pessoa que estudou, com certeza teria um trabalho certo e o comércio seria apenas um complemento de renda, mas infelizmente eu não percebi isso antes?, desabafa o comerciante.
Barros ainda testemunha que, pelo menos por enquanto, a situação do trabalho infantil na Feira de São Joaquim parece estar longe de ser resolvida. ?A maioria desses comércios é passada de pai para filho. Tem muita criança trabalhando aqui, principalmente nos carrinhos de mão, carregando compras, o que eu acho um absurdo?, relata.
Assista ao depoimento de Pedro Barros:
Ontem, o Aratu Online denunciou o trabalho infantil no Carnaval de Salvador. Amanhã, você irá conhecer a história de uma mulher que superou a exploração de seu trabalho doméstico durante a infância.