O que fazemos com nossos aposentados é sintoma de nossa covardia
Fraudes bilionárias, omissão estatal e tecnologia cúmplice revelam um país que devora seus próprios alicerces, os idosos. Há uma máquina bem montada, com empresas de crédito, associações fantasmas e servidores públicos. Não são estelionatários de esquina
Por Pablo Reis.
Imagine trabalhar durante quarenta anos, pagar impostos, criar filhos, contribuir com cada centavo possível para um país que prometeu cuidar de você na velhice. Agora, imagine descobrir, aos 75 anos, que sua aposentadoria foi devorada por empréstimos que você nunca pediu, que seu nome foi usado como moeda de troca por lobistas, e que o Estado que deveria protegê-lo é o mesmo que permitiu, na melhor das hipóteses – quando não facilitou – o golpe.
Bem-vindo ao Brasil de 2025. Um país onde ser idoso é quase um crime, e ser aposentado é convite para o roubo.
Os números são escandalosos - e ainda iniciais. Em 2023, 35 mil aposentados foram vítimas de fraudes com empréstimos consignados. Isso mesmo: empréstimos que eles nunca pediram, nunca autorizaram, mas que foram descontados de seus benefícios como se fossem uma conta a pagar. É como se você acordasse um dia e descobrisse que seu nome está negativado por uma dívida que você nem sabia que existia. Agora, multiplique isso por 35 mil pessoas, muitas delas idosas, que dependem daquela aposentadoria para sobreviver.
O caso da senhora Maria da Glória, de Porto Alegre, revela a profundidade do abismo: 45 empréstimos em seu nome, dos quais apenas três foram realmente autorizados. O rombo? R$160 mil. O que deveria ser segurança virou pesadelo – só que há milhares de donas marias vivendo esse pesadelo.
Por trás disso, há muito mais do que estelionatários de esquina. Há uma máquina bem montada, com empresas de crédito, associações fantasmas e servidores públicos. O pior: as investigações levam a crer que todos eles operam juntos. Há R$ 6,3 bilhões desviados em cinco anos, só com descontos associativos indevidos. É dinheiro que deveria pagar remédios, moradia, alimentação – e que agora alimenta lobistas, como o infame Careca do INSS, o nome de vilão Marvel para Antonio Carlos Camilo Antunes, sócio de 22 empresas, quatro delas envolvidas nas investigações da PF. O glabro movimentou quase R$25 milhões em poucos meses. Alimenta com relógios de grife, carros importados, viagens, apartamentos.
Tecnologia para o mal
A tecnologia, vendida como escudo, virou brecha: um rombo. Sistemas de biometria falharam. A Dataprev, responsável por proteger dados sensíveis, é agora ela mesma investigada. O Estado brasileiro, que deveria ser o cofre, virou a chave esquecida na porta.
Agora, você deve estar se perguntando: mas e a tecnologia? Não era para ela garantir mais segurança? Sim, era. A biometria, por exemplo, deveria ser uma barreira contra fraudes, mas as investigações mostram que ela falhou miseravelmente. É como ter um sistema de alarme de última geração que não dispara quando os ladrões invadem a casa.
A Dataprev, que gerencia os sistemas do INSS, está sob investigação, e há suspeitas de que servidores e lobistas receberam propinas para facilitar essas fraudes. Os avisos foram dados. Auditoria da Controladoria Geral da União revelou galhas no sistema, falta de transparência e necessidade de mudanças. O documento informa que “grande parte dos registros do sistema apresentavam inconsistências em seu preenchimento, inclusive quanto aos valores dos empréstimos contratados. As situações relatadas são prejudiciais ao acompanhamento das operações por parte do INSS, chegando, em certa medida, a inviabilizar a realização de determinadas verificações, especialmente em relação à observância aos limites estabelecidos para a cobrança de juros." Uma das conclusões é que mais de ¼ das reclamações (26%) recebidas pelo órgão são relacionadas a esses empréstimos não autorizados.
O nosso sistema de seguridade social é um castelo, alto e imponente, majestoso como poucos no planeta. Suas colunas de sustentação são confiança, segurança e integridade. Hoje, percebemos que é montado com cartas, que desmoronam a um simples sopro. E o bafo pestilento dos sanguessugas com sua ganância são vento que pode fazer tudo desabar.
Os desvios, graves, falam sobre dinheiro. Mas não é o mais aterrador. Algumas coisas não têm preço, como o silêncio institucional, a paralisia ética, a normalização do absurdo. A demissão do ministro Carlos Lupi, embora simbólica, não foi suficiente para estancar o sangramento. Porque o problema é mais profundo: está no desprezo sistêmico por quem já deu tudo.
Se nossos aposentados são os alicerces invisíveis de uma casa, o Brasil, ingrato, permite que os cupins da fraude corroam tudo. E quando as fundações cedem, isso qualquer ajudante de pedreiro sabe, a casa inteira desmorona.
A casa de Mãe Joana
Imaginem o INSS como um cofre, onde os aposentados guardam suas economias. Esse cofre deveria ser inviolável, mas o que estamos vendo é que ele tem buracos por todos os lados, e os ladrões estão entrando e saindo como se fosse a casa da mãe Joana. E quem são esses ladrões? São os parasitas do Estado, pessoas que se aproveitam das brechas, da falta de controle e da fragilidade dos órgãos públicos para enriquecer às custas dos mais vulneráveis.
E o que dizer dos valores envolvidos? Em 2023, as movimentações com empréstimos consignados no INSS totalizaram R$90 bilhões. Nem todo esse montante é fraudulento, claro, mas as 35 mil reclamações indicam que uma parcela significativa foi obtida de forma ilícita. No escândalo dos descontos associativos, foram R$6,3 bilhões desviados entre 2019 e 2024. É dinheiro que deveria estar no bolso dos aposentados, pagando remédios, alimentação, moradia, mas que foi parar nas mãos de criminosos.
Para piorar, tudo isso acontece em um momento em que a tecnologia avança a passos largos. Deveríamos estar usando inteligência artificial, blockchain, biometria avançada para proteger os dados e os direitos dos cidadãos. Mas, em vez disso, vemos que a tecnologia está sendo subutilizada ou, pior, manipulada para facilitar as fraudes. É como ter um carro de Fórmula 1 e usá-lo para entregar pizza.
Não se trata aqui de mais um caso de Polícia Federal apenas. É um espelho do que somos como nação. Se a medida da sociedade é como ela trata seus idosos, não apenas falhamos miseravelmente, mas nos comportamos de maneira vil e covarde, contra quem deveríamos estar zelando.
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