Kim: a história da mulher trans que pediu para ter o nome corrigido pela PM da Bahia; "recebo só abraços"
A Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% das pessoas transexuais trabalhem como profissionais do sexo no Brasil por falta de oportunidades
No país que mais mata pessoas transexuais no mundo há treze anos consecutivos, uma mulher trans, policial militar da Bahia lotada em Feira de Santana, pediu à comandante para ter o nome retificado na corporação - e o pedido foi aceito -. Desde agosto, Kim Villanelle Figueiredo só é chamada no feminino, o que, para ela, nem foi uma surpresa entre os colegas.
“Na verdade, acho que sempe souberam, pelo meu jeito, que eu era mulher. Depois, a minha ‘comandanta’, que é uma pessoa excepcional, me chamou para conversar. Estávamos conversando normalmente, aí eu falei: ‘Sou mulher mesmo, queria até lhe falar. Não quero mais cortar o meu cabelo’. Isso foi em maio. Aí, eu falei para ela que queria mudar o meu nome e gênero, e ela falou que tudo bem, que está do meu lado, que eu poderia contar com ela a qualquer momento”, relembra ela em entrevista ao Aratu On.
No dia em que Kim, que está na PM há oito anos, chegou no trabalho oficialmente como mulher pela primeira vez, as colegas PMs usaram batom para recebê-la. “Sempre recebo só abraços. Eu me lembro da primeira que me recebeu, ela estava com um batom rosa um pouco cintilante, lindo. E ela disse: ‘Olha, a major pediu para a gente vir de batom’. Depois, vieram as outras. E até as que eu só via de longe estavam de batom. Eu me senti tão bem nesse dia”.
Kim sempre foi mulher, e quem convivia com ela já sabia disso. Ainda na infância, para evitar preocupações, ela decidiu não compartilhar com família as diversas vezes em que foi vítima de bullying na rua. “Eu não falava em casa, porque em casa era tão bom”.
Mas o tempo passou: na vida adulta, Kim queria ser Kim, se vestir como Kim, falar como Kim e trabalhar como Kim. E ela, que está terminando o curso de Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), conhecia os seus direitos e, diferentemente de muitas outras, teve condições e apoio para ir atrás deles.
“Eu sempre fui mulher. Acho que, lá, eu fingia. E não era bom, né, é uma coisa que eu acho que me deixava doente. Por outro lado, eu não sentia que estava me escondendo do mundo, ou que estava com medo do mundo, porque eu nunca tive medo. Eu fazia terapia, então, teve um momento em que eu queria me vestir do meu jeito, e comecei. Eu precisava ser eu, e precisava de um trabalho, e o meu trabalho era aquele. Foi natural, bem natural”.
MERCADO DE TRABALHO
De acordo com o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), que levanta informações sobre a situação de pessoas LGBTQIAP+ em todo o mundo, 70% de todos os assassinatos notificados entre 2020 e 2021 aconteceram na América Latina, sendo que 33% no Brasil. A Bahia, de acordo com um relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), é o segundo estado com maior número de mortes, e Salvador é a capital mais violenta para LGBTQIAP+ do país.
Quando a gente fala em empregabilidade, os números continuam estarrecedores: a Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% das pessoas transexuais trabalhem como profissionais do sexo no Brasil, principalmente mulheres trans e travestis. De acordo com o professor da Universidade Federal da Bahia, Felipe Fernandes, que pesquisa gênero, mulheres trans, geralmente, acabam trabalhando em três grandes áreas.
“Um deles é o campo da estética, como cabeleireiras, manicures. Nesses lugares, principalmente em salões de beleza de bairro, ou salões de beleza próprios, quando a gente vê uma mulher trans, não parece que ela está fora de contexto. O segundo, um pouco mais presente para as mulheres trans, é o campo das artes. A gente vê muitas mulheres trans trabalhando na noite, em bares, principalmente bares voltados para o público LGBTQIA+. E um terceiro campo é a prostituição e a indústria do sexo, principalmente para aquelas meninas trans que passaram por uma situação de transfobia muito extremada na família, e que iniciaram o processo de transição muito novinhas. Muitas vezes, é o único lugar que as aceita”.
LUTA
Kim não foi a primeira PM a baiana a fazer a transição de gênero enquanto trabalhava na polícia. No dia 6 de março de 2018, depois da transição, a soldado Jane Oliveira foi exonerada sob a justificativa de ter promovido ofensas contra um supervisor hierárquico. Para ela, porém, o caso se tratou de transfobia, termo definido como “discriminação contra as pessoas transexuais e transgêneros”.
A “ofensa” que Jane teria cometido contra um superior aconteceu em uma madrugada no município de Guanambi, a 674 km de Salvador. Ela estava em um bar com amigos, quando foi abordada por um cabo que, como ela alega, a perseguia e assediava há anos, e uma discussão começou.
O homem prestou queixa no 17º Batalhão de Polícia Militar, acusando a colega - que estava abaixo dele na hieraruia da polícia - de ofendê-lo. O resultado foi um Processo Administrativo Disciplinar (DAP) contra Jane, e, algum tempo depois, a demissão dela. Poucos meses após o ocorrido, o homem que a denunciou foi promovido a sargento.
Desde 2019, mesmo ano em que a PM passou a admitir que candidatos se inscrevessem nos concursos usando o nome social, Jane luta na Justiça para ser reefetivada. Mas, até agora, sem sucesso. Em 2016, um decreto presidencial (Nº 8.727) determinou que o nome social e a identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais fossem respeitados no âmbito da administração pública federal. O texto ainda serve como parâmetro para que estados e municípios também adotem o uso do nome social.
No dia primeiro de junho deste ano, a Assembleia Legislativa (Alba) aprovou o Projeto de Lei (PL) Milena Passos (22.845/2018), que determina que sanções admistrativas sejam adotadas contra quem promover atos de discriminação a pessoas LGBT, incluindo quem ocupa cargos públicos. Além disso, responsáveis por estabelecimentos comerciais, industriais, associações, prestadores de serviço, entre outros, poderão ser penalizados caso discriminem pessoas da comunidade LGBTQIAP+.
Entre os atos discriminatórios listados na PL estão: “Impedir, obstar ou dificultar o acesso de pessoas, devidamente habilitadas a qualquer cargo ou emprego da Administração direta ou indireta, bem como das concessionárias e permissionárias de serviços públicos; Negar, obstar ou dificultar o acesso de pessoas, devidamente habilitadas a qualquer cargo ou emprego em empresa privada; Negar, obstar ou dificultar o acesso de pessoas, devidamente habilitadas a qualquer cargo ou emprego em empresa privada”.
Millena Passos, que está à frente da secretaria executiva do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher, da vice-presidência da União Nacional LGBT e da coordenação do Grupo Gay da Bahia (GGB), sente orgulho em dividir o nome com a PL. “Acho que a gente precisa homenagear as pessoas em vida”.
De acordo com ela, não é fácil ser a primeira mulher trans em um lugar - como aconteceu com Jane. Mas, não há muita saída: para que outras consigam entrar, alguém precisa dar o primeiro passo:
“O mercado de trabalho ainda é velado. Eu trabalho na Secretaria de Mulheres, sou secretária Executiva do Conselho da Mulher, sou a primeira mulher trans no Brasil a assumir essa posição. O que é uma vergonha. É uma vergonha para mim dizer isso. É motivo de orgulho para muitas pessoas, mas eu estou desbravando esses espaços para que outras pessoas como eu ocupem vários espaços. O que a gente quer é mais pessoas trans no mercado de trabalho”.
O site TransEmpregos, maior plataforma de vagas para transexuais do Brasil, fundado 2013, reúne e divulga centenas de oportunidades diariamente. Mas, como ressalta o pesquisador Felipe Fernandes, não basta empregar: é preciso que as empresas e instituições permitam que essa pessoa fique.
“Ariane Moreira de Sena, que foi a primeira psicóloga trans da Bahia, fala de uma experiências que elas vivem que é a ‘Solidão da Mulher Trans’. E o que seria essa solidão? A sociedade é tão fechada para elas que, mesmo que elas estejam em um emprego, elas estão sós. No emprego, elas não vão ter o nome social respeitado, vão estar o tempo todo sob suspeição, como se estivessem mascarando algo. A pessoa trans precisa de uma série de políticas internas, administrativas. Por exemplo, a questão do banheiro. A gente tem que pensar o seguinte: uma mulher não vai suportar usar um banheiro masculino, isso não existe”.
PARA NÃO ERRAR:
Fonte: Manual de Comunicação LGBTI+ da Aliança Nacional LGBTI
Identidade de gênero: É como uma pessoa se reconhece: pode ser no gênero feminino, no masculino, em uma combinação entre os dois ou até mesmo em nenhum dos dois.
Transgênero: São pessoas que não se identificam com o gênero que foi designado a elas ao nascer. Travestis e transexuais, por exempo, são transgênero.
Cisgênero: São pessoas que se identificam com o gênero que foi designado a elas ao nascer.
Travesti: É uma pessoa que, ao nascer, foi designada ao gênero masculino, mas se identifica com o gênero feminino. A palavra “Traveco” é extremamente pejorativa, usada para atacar e desmerecer Travestis.
Transexual: É quem não se identifica com o sexo que foi designado a ela no nascimento. Algumas pessoas transexuais decidem fazer tratamentos médicos, como a terapia hormonal e a cirurgia de redesignação de sexo.
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