Jaguaripe: terra de sangue em um "Paraíso Perdido", cidade tem tradição secular de "amaldiçoar" condenados pela Justiça; conheça o inferno
Cada centímetro prédio abaixo faz pensar que, há mais de 300 anos, cada homem e mulher que era colocado ali ficava à mercê da própria sorte e dependia de não ser atacado por caranguejos.
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As águas calmas das margens do Rio Jaguaripe, correntes e se confundindo com o mar da Bahia, levam histórias que ajudaram a construir, afogando condenados pela Justiça.
Por isso, a cidade de Jaguaripe, que fica a 110 km de Salvador, ficou marcada pelos anos de tortura dentro de uma cadeia que, em 1697, começou a ser construída após o assassinato do francês Félix Bittencourt - marido de Úrsula Maria da Virgens, a mulher mais importante da região -. As décadas se passaram e inúmeros presos foram torturados.
Exatos 325 anos após a morte do francês, a temida justiça jaguaripense - que ganhou "fama" exatamente pela crueldade imposta no prédio erguido a mando de Dona Úrsula - é obrigada a julgar a morte de um homem que, assim como Félix, era muito conhecido. Quis a coincidência que Leandro Silva Troesch, empresário, fosse encontrado sem vida nas mesmas terras impiedosas com quem comete algum crime brutal.
Hoje, a Cadeia do Sal fica sob a sede da Prefeitura, onde funcionários e cidadãos passam todos os dias. Nas próximas linhas, você vai descer junto com a equipe de reportagem do Aratu On para o calabouço. Antes, porém, é preciso começar a desvendar um pouco de como a tal Justiça ficou tão temida. O primeiro personagem ouvido é o homem que, hoje, comanda o município em uma sala instalada na cobertura do histórico prédio.
"A cadeia está na borda do Rio Jaguaripe, que é de maré. Tinha entradas de água e, na hora de colocar o preso, ele ficava abaixo do nível do rio. Quando a maré enchia, o preso ficava com a água até a altura do peito. Existe um adágio que diz: a Justiça de Jaguaripe que te persiga, por conta dessa cadeia", explica o prefeito Heráclito Arandas (PSD).
CONHECENDO A CADEIA DO SAL
Bate-papo rápido e descemos para a Cadeia do Sal. O primeiro ambiente, que funcionava como uma espécie de "purgatório" para o preso - aquele limite entre o céu e o inferno -, hoje é amplo e ventilado. Quem nos acompanha é o secretário da Junta do Serviço Militar, Ozailson Muricy, que traz ainda mais detalhes históricos. "Com o assassinato do esposo de Dona Úrsula, ela pediu a prisão para punir para aqueles que aqui viessem. Não há informação precisa de quem matou o marido dela".
O segundo ambiente, onde está o calabouço em si, é mais apertado, inóspito. Hoje reformado para abrigar uma futura feira de artesanato, os cerca de 20 metros quadrados abrigam um buraco no chão. É ele a atração principal. No quadrado cabe apenas uma pessoa, que desce com a ajuda de uma escada até um chão com muita lama. O cheiro de maré com o calor também incomoda.
Cada centímetro prédio abaixo faz pensar que, há mais de 300 anos, cada homem e mulher que era colocado ali ficava à mercê da própria sorte e dependia de não ser atacado por caranguejos. No final do buraco está um túnel, com cerca de 30 metros de extensão, no qual mal cabe um corpo humano. É por ele que passa a água do rio que, quando cheio, torturava os condenados. Nunca a expressão luz no fim do túnel foi tão mal usada.
Para quem acredita em energia espiritual, o calabouço não é positivo. Saber que várias pessoas foram colocadas ali e sofreram não é confortante. Essa opinião é reforçada pelo secretário de Cultura de Jaguaripe, Carlos Silveira.
"Esse prédio tem uma energia não positiva nos calabouços, pois a pessoa que vem ser desencarnada em uma situação de maré [...] na África, sabemos que existem rituais de vodu, onde se pegava o ancião, colocava-o na catacumba, para que ele morresse, e depois pegava-se os pertences dele. Quem desceu no espaço ali, sentiu uma energia negativa. Imagine ali, naquele espaço, onde várias pessoas foram desencarnadas: essa alma vai ser desencarnada com pureza, naquele espaço? Não. É uma história contada com tristeza", lembra o titular da Secretaria.
O MITO DA JUSTIÇA DE JAGUARIPE E UM PARAÍSO PERDIDO
Somente neste ano de 2022, o tão temido lema "Justiça de Jaguaripe que te persiga" está sobre pelo menos seis pessoas que enfrentam problemas com a Polícia Civil.
As primeiras são Shirley da Silva Figueredo e Maqueila Santos Bastos - investigadas pelo possível assassinato de Leandro Silva Troesch, dono da Pousada Paraíso Perdido -. As demais são Adrian Grace Marian Barbosa Pinheiro e Laylla Cedraz - ambas estavam com Agnaldo Leite da Silva Neto e Felipe Augusto Machado Lima, mortos durante ação da Polícia Militar na mesma pousada comandada por Leandro -.
A Pousada Paraíso Perdido - centro das atenções após os dois episódios policiais - fica na Praia dos Garcez, que pertente ao município de Jaguaripe. Nas ruas da cidade há quem brinque que Shirley, Maqueila, Adrian e Laylla, caso fossem presas nos anos de 1600, seriam levadas ao temido calabouço. Mas, afinal, o que se sabe até hoje dos casos que, coincidentemente, ocorreram nas terras da Cadeia do Sal?
No dia 27 de fevereiro, um tiro na nuca matou Leandro dentro de um quarto da pousada: suicídio ou homicídio. O titular da Delegacia Territorial de Jaguaripe (DT), Rafael Magalhães, tem convicção na tese de assassinato. Após dois meses de investigações e um laudo que atestava a execução, o delegado pediu a prisão de Shirley por homicídio e o da namorada dela, Maqueila, por participação.
“No laudo cadavérico, o médico legista, que fez o laudo que é inconclusivo, diz que foi suicídio. Só que ele é médico legista, ele não é delegado de polícia que se debruçou durante dois meses nesse inquérito e ouviu mais de 20 pessoas e trabalhou em cima dos laudos. O laudo de pólvora combusta dá negativo [para pólvora] na mão dele [Leandro] e na mão dela [nome não detalhado], mas eu tenho um depoimento que diz que ela lavou as mãos, tomou banho e depois foi feito o exame”, disse o delegado durante entrevista ao programa da TV Aratu, Cidade Aratu.
Oficialmente, o delegado não pode confirmar, mas a equipe de reportagem do Aratu On apurou que, entre os anexos do inquérito, está uma carta romântica escrita de próprio punho por Maqueila, jurando amor à então esposa de Leandro. Com isso, a Polícia Civil quer provar que ambas mantinham um caso e, como o empresário não aprovava, acabou executado. Entre outras provas e depoimentos, mais de 100 páginas já foram produzidas.
Maqueila Bastos chegou a ser presa no dia 24 de março, em Aracaju (Sergipe), por estar com um carro alugado - o qual não devolveu - que tinha GPS. No dia 5 de abril, ela foi transferida para Salvador, sendo solta dias depois. Enquanto isso, a Polícia Civil da Bahia tentou tirar a investigação do caso Leandro das mãos do delegado Rafael Magalhães, mas o órgão voltou atrás sem nenhuma explicação.
Na segunda-feira (9/5), Shirley foi presa no município de Iaçu, a 279 km de Salvador. Apesar de ser investigada pelo possível assassinato, ela tinha mandado de prisão em aberto por descumprir prisão domiciliar.
Maqueila Bastos é velha conhecida da polícia por diversos crimes de estelionato (sendo tema de uma matéria especial do Aratu On que abordou os vários golpes aplicados por ela). Maqueila conheceu a esposa de Leandro após ambas ficarem presas no Complexo Penitenciário da Mata Escura.
A JUSTIÇA DE JAGUARIPE EM TIROS E DROGAS
Enquanto o caso Leandro ainda estava repercutindo quase que diariamente na imprensa baiana, uma operação da Polícia Militar contra dois hóspedes da Paraíso Perdido, no dia 11 de abril, chamou a atenção. No mesmo lugar onde acontecera um suposto homicídio, dois suspeitos de tráfico de drogas - Agnaldo Leite e Felipe Augusto Machado - morreram em confronto com agentes do 14º Batalhão (BPM/Santo Antônio de Jesus).
Pela versão oficial, a ocorrência começou após os agentes serem acionados por populares, diante da presença de dois suspeitos armados na Praia dos Garcez. Ainda de acordo com a PM, ao notarem a aproximação dos militares, os homens atiraram contra as guarnições. Houve revide e, ao término da troca de tiros, os suspeitos foram encontrados e socorridos para o Hospital Gonçalves Martins, onde não resistiram.
Os dois estavam com as blogueiras Adrian Grace, companheira de Agnaldo, e Laylla Cedraz - namorada de Felipe -. A versão oficial sustenta, ainda, que a dupla tentou fugir da abordagem policial a bordo de uma caminhonete de luxo, modelo Toro, com aproximadamente um quilo de cocaína, mas foi alcançada e levada à Delegacia Territorial de Santo Antônio de Jesus. As duas foram soltas logo em seguida.
Laylla não admite a versão da PM. Ela já relatou, em pelo menos duas oportunidades, que os policiais militares forjaram o confronto.
"Disseram que a polícia nos achou. Ninguém estava se escondendo. Os policiais estavam à paisana na pousada desde domingo. Inclusive, o policial que me levou para a delegacia [de Santo Antônio de Jesus] estava na piscina mais cedo. Isso de denúncia de homens armados é mentira", atacou.
"A gente foi para a piscina. Felipe estava sem camisa. Se ele estivesse armado e a polícia chegasse, iria dar para ver. Eu não pude entrar na piscina e Felipe entrou. Por causa do cloro, ele pediu para eu comprar um shampoo. Ele ficou na piscina e eu fui com Adrian, de carro. Quando saímos da pousada, tinha uma viatura da PM no meio do mato. Passamos por ela e compramos o shampoo. Na volta, [os PMs] mandaram a gente descer do carro".
A mulher ainda ressaltou que, antes de ser presa supostamente com cocaína, a PM já havia revistado o automóvel do grupo. Ainda na versão da namorada de Felipe, foi logo depois da segunda abordagem que os policiais foram informados sobre a situação na pousada Paraíso Perdido. "Do nada, o rádio da pousada tocou. Eles devolveram nossos celulares. Eu e Adrian fomos para a pousada achando que tinha acontecido algo lá", acrescentou.
A JUSTIÇA DE JAGUARIPE TARDA, MAS NÃO FALHA?
Assim como no caso da morte, ou suicídio, de Leandro Silva Troesch, as histórias trágicas de Agnaldo Leite e Felipe Augusto Machado seguem com perguntas não respondidas, ou respostas questionadas.
Ao contrário do que acontecia lá no final do século 17, o sistema judicial brasileiro, apesar dos inúmeros problemas que ainda apresenta, precisa responder a esses pontos de interrogação. Assim como a impunidade não pode ser celebrada, e é para evitar isso que o poder policial investiga os fatos, também já não é possível, o que é um ótimo sinal, colocar suspeitos ou condenados em um calabouço, condenando-os à própria sorte.
Que essa irônica fusão entre passado e futuro, o presente e tudo o que já aconteceu, recentemente, ou há mais de três séculos, sirva como lição e aprendizados para todos aqueles que estão, direta ou indiretamente, envolvidos, ou são afetados por esses acontecimentos. Que as águas turvas do Rio Jaguripe não atrapalhem o curso da história e ajudem a desvendar a verdade que, até agora, se esconde na outra margem.
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