Bahia na Segunda Guerra Mundial: Salvador foi ocupada por militares americanos e teve blecaute obrigatório
Durante a guerra, para dificultar ataques a Salvador, era proibido acender as luzes à noite na orla e eram realizados exercícios antiaéreos nesta região da cidade
Entre 1942 e 1945, as luzes das casas de Salvador não podiam ficar ligadas à noite. O Farol da Barra, primeiro sistema de sinalização náutica das Américas, também foi apagado. Para garantir que ninguém descumprisse a norma, foi criada uma Comissão de Fiscalização do Escurecimento, e exercícios antiaéreos, com sirenes, aeronaves e simulações, eram realizados constantemente na orla da capital baiana — que, naquele tempo, ia da Barra à Boca do Rio, e só.
As áreas de alerta noturno, que iam da Pituba a Paripe, no Subúrbio Ferroviário, eram supervisionadas por centros de monitoramento e ocupadas por voluntários e equipes especializadas em defesa civil. E isso tudo porque, um ano antes, submarinos alemães começaram a bombardear navios brasileiros na costa do país, e Getúlio Vargas, pressionado pelo governo americano, se viu obrigado e declarar guerra ao Eixo, grupo formado por Alemanha, Itália e Japão. Para dificultar o trabalho do exército inimigo em encontrar a orla à noite, os baianos passaram a anoitecer no escuro.
Em 1944, 25.834 brasileiros e brasileiras foram enviados para a Itália pela Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada por Getúlio especialmente para a guerra na Europa, que mobilizou cerca de 100 milhões de militares de todo o mundo. Mas, a guerra foi além: por aqui, 35 navios foram afundados, causando a morte de pelo menos 1.074 pessoas. Quem vivia em Salvador naquela época, como a mãe da historiadora e pesquisadora Marina Helena Chaves, professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), ainda lembra bem das consequências do conflito:
“Quando os navios começaram a ser afundados na costa do Brasil, e também na costa da Bahia, houve o estado de guerra. A minha mãe, que já faleceu, lembrava desse momento em que se apagavam as luzes de casa, porque havia um medo. Não podiam ouvir um ruído de avião, que já achavam que era os alemães que estavam invadindo a Bahia. Era um clima tenso, que atingiu boa parte da população”.
[caption id="attachment_257133" align="alignnone" width="657"] Para evitar que submarinos alemães encontrassem a costa de Salvador à noite, o Farol da Barra, primeiro sistema de sinalização náutica das Américas, foi apagado. | Foto: Redes Sociais[/caption]
Nos jornais locais, como explicita o historiador Rafael Dantas, especialista em história da Bahia, a guerra, que, nessa altura, já era mundial, costumava estar entre as principais manchetes diárias. O desassossego era geral. “A partir de pesquisas em jornais da época, um ponto interessante para a gente destacar é o temor que a guerra representava. Isso, no contexto mundial como um todo, inclusive na Bahia. Muitos jornais noticiavam, com certa velocidade, aquilo que estava acontecendo na Europa. E os baianos estavam inseridos nesse processo, acompanhando todo esse desenrolar do conflito”.
A população tinha motivo para ter medo: além dos ataques à costa, havia racionamento de comida, toques de recolher, restrição de circulação no porto de Salvador, desconfiança e rejeição a imigrantes estrangeiros na Bahia, e até a criação de um “campo de concentração” para alemães em Maracás, no interior do estado. O pesquisador Raul Barreto Neto, mestre em História Regional e Local e especialista em História Militar, aponta que, na Bahia, muitos produtos, especialmente gêneros alimentícios, começaram a faltar nas prateleiras dos mercados.
“A inflação estava altíssima, e no mercado paralelo, cobravam duas ou três vezes mais por gêneros alimentícios básicos. A população estava sem trabalho e sem renda. Isso, já a partir de um contexto anterior à própria guerra. Então, naquele período, você só tinha direito a 1kg de açúcar ou de feijão, porque grande parte desses produtos agrícolas era exportada para abastecer as tropas aliadas na Europa, os Estados Unidos, e o eixo Rio-São Paulo”, explica ele.
O pesquisador, que também é autor do estudo “Você já foi à Bahia?: a presença militar norte-americana em Salvador na Segunda Guerra Mundial”, detalha, no artigo, como funcionava o esquema de vigilância e controle social na capital baiana:
“A zona portuária de Salvador era um dos principais focos de atenção. Centro de especulações por possivelmente abrigar uma rede de espionagem, que teria vazado dados, em outubro de 1942, sobre uma escolta para o Recife, a capital baiana convivia com uma série de restrições impostas, dentre outros, pelo Serviço de Informações de Interesse da Segurança Nacional. Os funcionários do porto, estivadores, fornecedores, lavadeiras e prostitutas eram alvos de certa inquietação, sendo que os marinheiros, muitas vezes, eram proibidos de manter contato com tais grupos”.
[caption id="attachment_257135" align="alignnone" width="1000"] "A zona portuária de Salvador era um dos principais focos de atenção. Centro de especulações por possivelmente abrigar uma rede de espionagem", explica o historiador Raul Barreto. | Foto: Redes Sociais[/caption]
E, além de o Farol da Barra estar apagado, os navios brasileiros também navegavam com as luzes desligadas à noite, o que, como explica o pesquisador, era um perigo para os tripulantes. “Navios mercantes começaram a receber a proteção de navios de guerra contra submarinos. Todo mundo tinha que navegar à noite, para não chamar a atenção dos submarinos. Nas noites de lua cheia, menos mau, havia alguma claridade. Mas, fora isso, o perigo aumentava muito. Nós temos registros de navios que acabaram se chocando no meio do Atlântico por conta disso”.
Pelo mesmo motivo, jornalistas também estavam proibidos de ir às docas com câmeras fotográficas, lanternas ou refletores. E tanta restrição e preocupação contribuíam para que o baiano, que já gosta de um causo, arquitetasse novas lendas. Segundo o professor Raul Barreto, o Serviço de Inteligência dos Estados Unidos identificou, em Salvador, uma história que circulava na cidade sobre uma espiã loira, conhecida como Aninha dos Torpedos, que “trocava amores com marujos por informações sobre os navios” que deixavam a Baía de Todos-os-Santos.
PONTE AÉREA
Enquanto brasileiros viajaram para a Europa para tirar alemães de cidades do norte da Itália, tropas americanas vieram para a Bahia para reforçar a segurança de Salvador e ocupar o território. Por aqui, os estadunidenses instalaram pelo menos cinco bases militares. E não era porque eles achavam a capital baiana bonita e queriam protegê-la — era porque, como explica Raul, Salvador, assim como outras capitais do nordeste, como Natal e Recife, poderia servir de ponte área para o norte da África e de atracadouro.
“Como as tropas americanas que foram combater na Europa chegavam lá? Até que havia navios que faziam essa rota diretamente, mas o Atlântico Norte é muito mais largo do que o Atlântico Sul, e isso colocava a navegação em um perigo muito maior. E não existiam ainda aviões de transporte capazes de fazer essa travessia sem escala. E é por isso que Natal, no Rio Grande do Norte, ficou conhecida como o ‘Trampolim da Vitória’. Eles saíam dos Estados Unidos, iam fazendo várias escalas no Caribe, Belém, Fortaleza, até Natal. De Natal, cruzavam o oceano até o Senegal, no Norte da África, e iam para a Europa”, conta o pesquisador. Só no Nordeste, foram construídas 16 bases terrestres e cinco para hidroaviões, mais do que o triplo planejado inicialmente entre os governos brasileiro e americano.
Fora o “Trampolim da Vitória”, Salvador só era menos importante para os americanos do que Recife: Natal, pela proximidade com o continente africano; Recife, por abrigar o comando da 4ª Esquadra Americana, a sede da Marinha dos Estados Unidos na América do Sul. O problema é que Recife não tem baía e, por isso, não tinha espaço para guardar todos os navios americanos que estavam no Brasil. Salvador tem baía, uma santa baía para as forças armadas do país norte-americano, grande o suficiente para acolher as embarcações que não cabiam em Recife. “Chegou uma época que Salvador começou a disputar essa condição de importância com Recife. Só que Salvador fica um pouco mais ao sul do que eles gostariam, por isso, militarmente, em termos de efetivos, acabou ficando atrás”, justifica Raul.
Para abrigar os militares, a cidade precisou passar por mudanças, promovidas pelos próprios americanos. A Base dos Fuzileiros Navais, que fica no Comércio, foi construída por eles e chamada de Base Baker. O Aeroporto Internacional de Salvador que, até então, era só uma pequena pista de pouso controlada pela Air France, foi reformada pelos estadunidenses, e se transformou na Base Aérea Americana. “Eles aproveitaram o pouco que existia de uma estrutura muito precária ali, e melhoraram”, comenta o pesquisador. Para facilitar o acesso à base aérea, os fuzileiros navais dos Estados Unidos abriram uma via entre Ipitanga e Aratu, onde estavam suas principais bases militares. Daí, nasceu o que hoje conhecemos como Estrada Velha do Aeroporto.
Nesse período, a Baía de Todos-os-Santos, um dos estacionamentos de navios americanos no Brasil, também passou por modificações. “A Marinha do Brasil instalou uma rede anti-torpedos de um lado a outro da Baía de Todos-os-Santos, entre o Farol da Barra e a Ilha de Itaparica, para evitar que torpedos atingissem a baía”.
O avô do professor Raul, que também se chamava Raul, era da Marinha do Brasil no período da Segunda Guerra. Como a Marinha não foi para a Europa, o militar ficou por aqui, garantindo a proteção da costa brasileira e escoltando os navios que circulavam pelos nossos mares. Sobre a presença estrangeira na cidade, ele dizia, como comenta o historiador, que: “A Bahia melhorou muito graças à Guerra”.
[caption id="attachment_257138" align="alignnone" width="1024"] Durante a Segunda Guerra, a Marinha do Brasil ficou encarregada de defender a costa brasileira e escoltar navios de carga. | Foto: Redes Sociais[/caption]
Que houve melhoras na infraestrutura de Salvador, houve, mas elas não chegaram a representar uma grande transformação para a cidade. “Sim, eles fizeram intervenções, algumas bastante importantes. Mas, não dá para você dizer que eles transformaram urbanisticamente a cidade, seria um grande exagero”, explica Raul Barreto. O que foi transformado mesmo foram as relações pessoais e comerciais na capital baiana.
BRIGA DE HOMEM
Quando chegaram a Salvador, os americanos não sabiam muito bem o que esperar. Desde aquela época, pouco se sabia sobre o Brasil nos Estados Unidos, e o que se conhecia, era distorcido e distante da realidade. “E também os baianos não sabiam exatamente quem eram esses gringos, esses estrangeiros que estavam chegando aqui”, conta o pesquisador. Para evitar problema, o Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda da Bahia (DEIP), a prefeitura de Salvador e outros órgãos fizeram uma campanha para melhorar a opinião do soteropolitano sobre os visitantes internacionais e, assim, ajudar a “reduzir uma certa cultura xenófoba”.
Fora o estranhamento inicial, a relação era harmoniosa. Na verdade, até um pouco mais do que isso: Salvador não era Los Angeles, mas, a elite local, quando viu aqueles estrangeiros desembarcarem aqui cheios de dólares na carteira, estendeu um tapete vermelho para que eles passassem. “Era uma coisa diferente, né? O pessoal falando outra língua, cheio de dólar. Isso afetou bastante o cotidiano da cidade”, aponta Raul.
No livro “Pé de Guerra: memórias de uma menina na guerra da Bahia”, a escritora Sonia Robatto descreve a euforia que tomou conta da cidade com a chegada dos estrangeiros em Salvador:
“Quando os navios dos aliados da gente chegavam na Bahia, a cidade virava uma festa. Eles foram entrando no porto da Barra, com todos os marinheiros de pé no convés. Era tão bonito, mas tão bonito, que todo mundo batia palmas. Não ficou uma alminha em casa, todo mundo saiu para ver a chegada dos gringos aliados. Eles vinham para uma tal de base naval que tinha na Bahia, a base Baker. Eu não sei direito o que eles vinham fazer aqui. Quem sabe, espantar os tais submarinos que viviam afundando os navios da gente! Quem sabe, proteger a gente do tal do Hitler e do Mussolini e dos amigos deles, os espiões! Eu não sei”.
Naquela época, era comum que os mais endinheirados frequentassem clubes de luxo, e alguns desses espaços, assim como cafés, bares e restaurantes, passaram a atender exclusivamente os militares estadunidenses. Baianos não eram bem-vindos. “Ou, homens estrangeiros acompanhados de mulheres brasileiras. Não aceitavam homens locais, e isso criou muito atrito na época”. Todo país que recebia forças americanas, providenciava clubes exclusivos para eles. Lá, tinha dança, shows, bebidas, cassinos, e tudo o que os fizessem lembrar um pouquinho de casa, do “American Way of Life”.
Em sua pesquisa, Raul entrevistou veteranos brasileiros que serviram em Salvador durante o conflito, e eles contaram que até os bares mais simples passaram a negar bebida a quem não fosse falante de inglês. “Os americanos pagavam em dólar, né? Eles não queriam mais servir bebidas para brasileiros. E eles também pagavam um salário muito alto, se comparado ao praticado aqui na época, a prestadores se serviço que trabalhavam para eles. Como o desemprego era enorme, todo mundo passou a querer trabalhar para eles”.
[caption id="attachment_257140" align="alignnone" width="1024"] Naquela época, era comum que os mais endinheirados frequentassem clubes de luxo, e alguns deles, assim como restaurantes, passaram a ser exclusividade dos militares estadunidenses. | Foto: Redes Sociais[/caption]
E o fascínio pela moeda estrangeira não ficou restrita aos bares, restaurantes e clubes. Segundo o pesquisador, a prostituição aumentou consideravelmente na cidade depois que os americanos chegaram. Apenas na Ladeira da Montanha, ficavam cerca de seis mil meninas. “Vieram garotas de várias regiões do estado. Até de outros estados, como Sergipe e Alagoas. Elas vinham para cá e para Recife, e muitas delas saíam só com eles, não com os brasileiros, porque eles pagavam melhor, e em dólar, e bancavam bebidas e comidas melhores para elas”. Além do crescimento da prostituição, a circulação do dólar americano trouxe outra consequência para a Bahia: um aumento considerável na inflação.
Essa preferência geral pelos gringos, como aponta o professor, acirrou os ânimos por aqui. De Guerra Fria, constituída por olhares atravessados, fofoca e ressentimento, a rixa entre baianos, civis e militares, e americanos, chegou a se tornar física em alguns momentos. “Se você pega os jornais da época, você vê casos de briga em bar, com faca, com arma de fogo, por causa disso”. Além das relações consentidas, casos de assédio praticados pelos militares estrangeiros contra jovens soteropolitanas também se tornaram caso de polícia, como relata Raul Barreto em sua pesquisa:
“Não foram poucas as oportunidades em que praticantes do boxe estadunidenses foram às vias de fato contra capoeiras da terra, exigindo a intervenção da Military Police. A fim de evitar estas lamentáveis cenas, as autoridades americanas enfatizavam aos seus subordinados o fato de serem hóspedes em um país estrangeiro, apelo que, como se percebe, nem sempre surtia o efeito desejado”.
Em 1945, os militares, brasileiros e americanos, comemoraram a rendição da Alemanha com grandes festas em Salvador. Uma delas, como conta o pesquisador, aconteceu no Yacht Clube da Bahia. E aí, como a cidade já não era mais de interesse dos Estados Unidos, eles foram embora. Aqui, ficaram bases militares e estruturas de lazer esvaziadas, milhares de meninas, agora prostitutas, vindas do sertão e do agreste baiano, o gosto pela Coca-Cola e pela música norte-americana, alguns dólares, e um monte de histórias.
Essa matéria faz parte da série de reportagens do Aratu On, “Bahia na Segunda Guerra Mundial”, que detalha a relação da Bahia e dos baianos com a Segunda Guerra Mundial, conflito que aconteceu entre 1939 e 1945.
Conheça a série:
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