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De ponto em ponto: marca baiana de produtos de Jiu-Jitsu apoia projetos sociais e reescreve histórias em Salvador

As peças vendidas pela pequena empresa são produzidas em Salvador, por costureiras mais velhas, que já estavam fora do mercado de trabalho e não tinham fonte de renda

Por Bruna Castelo Branco

De ponto em ponto: marca baiana de produtos de Jiu-Jitsu apoia projetos sociais e reescreve histórias em SalvadorCréditos da foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On

Até os dez anos de idade, Tainá Santos, que hoje tem 14, era vítima de bullying. Quase todos os dias, ela costumava ouvir de colegas da escola e de vizinhos da mesma idade que era baixinha, gordinha e tinha “cabelo de bombril”. “Tinha algumas meninas que eram maiores do que eu e que tinham uma brincadeira de bater. Aí, eu conversei com a minha mãe, que decidiu me botar em algum esporte”, relembra ela. O principal objetivo, como conta Tainá, era impor respeito — e, caso tudo desse errado e os valentões partissem para o ataque, aprender a se defender. Mas, a gente já adianta: tudo deu certo.


Depois de passar pelo karatê e judô e não se adaptar, ela conheceu o projeto Rato de Tatame, que fica em Nova Brasília de Itapuã, em Salvador, e entrou para o Jiu-Jitsu. Na época, ela era a única menina inscrita na iniciativa, que oferece aulas gratuitas do esporte para crianças e pré-adolescentes de 10 a 14 anos de idade. “Fui a primeira menina a entrar no projeto! Aí, chamei umas vizinhas minhas, e elas gostaram. Eu via muitos vídeos de mulheres que eram campeãs mundiais, e me inspirava”, relata. Esse recomeço foi tão marcante que Tainá ainda lembra a data do primeiro dia de aula: 16 de setembro de 2020.


“O projeto fazia ‘miniapresentações’ na quadra da escola. Aí, o pessoal via e ficava brincando comigo, falando: ‘Você é pequena, mas é bruta’. Daí em diante, comecei a ganhar mais confiança”, conta ela, que, hoje, participa de competições estaduais e já até perdeu o medo de perder. “Antes, eu ficava muito nervosa. Agora, eu entendo que nem sempre a gente ganha, e não tem problema”, conta. No final dessa história, que, como garante Tainá, ainda está longe de terminar, o bullying acabou.


Aos 10 anos de idade, Tainá entrou no Jiu-Jitsu com o objetivo de se defender do bullying. | Foto: Arquivo Pessoal


O kimono que Tainá e todos os outros colegas usam para treinar no Rato de Tatame, um projeto educacional, soteropolitano e sem fins lucrativos, fundado pelo lutador Lucas Ratto, também é baiano. Aliás: é produzido por uma das únicas empresas que faz uniformes de Jiu-Jitsu na Bahia, a Zeux, que nasceu justamente da escassez de produtos de qualidade do esporte no estado.


Rafael Sampaio, de 33 anos, proprietário da marca, começou no esporte há sete, e foi de um jeito parecido com o de Tainá: com a vontade de perder o medo, ganhar mais confiança e preservar a própria vida. Na época, Rafael estava tratando uma depressão e, com a ajuda do esporte, encontrou “um caminho para seguir”, um caminho do meio. Em 2019, pouco antes do começo da pandemia de Covid-19, quando o pequeno empresário já praticava e participava de campeonatos de Jiu-Jitsu, ele criou a Zeux:



“A empresa surgiu de duas necessidades que encontrei: primeiro, na época, não existiam produtores na Bahia. Segundo, a gente tem muito atleta de ponta, profissional, mas sem acesso a apoio, patrocínio, recursos. A gente vê atletas cheios de garra, que lutam com o coração, que dormem em academias para poder treinar, limpam a academia para poder pagar. Atletas que não têm condições financeiras de se manterem, mas é o sonho e aptidão deles. A Bahia é referência na área do boxe, e tem crescido muito no Jiu-Jitsu também, mas, ainda assim, não existem tantos patrocinadores. O único apoio que existe hoje é o Bolsa Atleta, que dá apoio a atletas de alto rendimento, de pódio, mas que, infelizmente, não tem vaga para todos”.



Em 2023, o Bolsa Atleta, programa do governo federal, distribuiu R$ 120,5 milhões para 8.057 inscritos. Neste ano, a iniciativa recebeu um número recorde de candidaturas, com 9.076 solicitações, e a expectativa de investimento é de cerca de R$ 160 milhões. O governo do estado, por meio da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb), tem uma iniciativa parecida, o Programa Estadual para Apoio à Prática do Esporte (Bolsa Esporte), que concede a atletas um auxílio financeiro para treinamento e participação em competições regionais, nacionais e internacionais.


Mas, por enquanto, o Jiu-Jitsu está de fora: em 2024, as modalidades esportivas contempladas pelo programa são Futebol de Cinco, Boxe, Canoagem, Karatê, Remo, Taekwondo, Vela, Natação e Bicicross. Para que uma nova modalidade seja incluída, de acordo com a Sudesb, a confederação ou federação do segmento esportivo precisa estar regularizada perante o Sistema Desportivo Nacional. Este ano, o Bolsa Esporte irá oferecer um benefício de até R$ 3.800 mil por mês para atletas que moram na Bahia, que podem ser desde os iniciantes, até os de alto rendimento.


COSTURAR


Para conseguir iniciar as atividades e, de fato, existir como marca, a Zeux precisou “apanhar”, como diz Rafael: como ninguém produzia kimonos de Jiu-Jitsu na Bahia, não havia máquinas de costura apropriadas, materiais e mão de obra qualificada no estado. Os primeiros dois problemas não foram tão difíceis de resolver: sem muita demora, Rafael comprou o equipamento de costura necessário e conseguiu matéria-prima com um fornecedor de tecidos de fora. Encontrar quem soubesse trabalhar com a máquina, acertar a modelagem e entregar um kimono de qualidade, que o próprio Rafael sonhava em usar em treinos competições, foi o verdadeiro desafio.


“Eu já tinha um galpão, tinha as máquinas, mas passei por dificuldades muito grandes, porque existe uma falta de profissionais que saibam mexer nessas máquinas de costura, que geralmente são usadas em indústrias, e exigem um domínio maior. E aí, fui tentando, ligando para o mundo inteiro”, detalha.


E foi então que, ainda em 2019, ele conheceu Raiovana Maria Silva, de 56 anos, que prefere ser chamada de Rai. Na época, ela trabalhava com confecção de kimonos de karatê em Salvador, costurados com a mesma máquina das roupas de Jiu-Jitsu.


Até 2019, Rai coordenou um grupo de costureiras da região da Via Suburbana do Movimento de Cultura Popular do Subúrbio (MCPS). | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On


O empresário descreve esse encontro como um “milagre”: naquele ano, Rai coordenava um grupo de costureiras da região da Via Suburbana, integrantes do Movimento de Cultura Popular do Subúrbio (MCPS), uma organização da sociedade civil parceira do governo do estado, que gere o Programa "Vida Melhor" Urbano (PVM). No período em que foi contemplada pelo projeto, o objetivo de Rai era possibilitar que mulheres mais velhas e jovens mães, moradoras do subúrbio de Salvador, pudessem ter a própria renda.



A gente foi contemplada pelo projeto ‘Vida Melhor’, e recebeu algumas máquinas de costura. Eu via a necessidade de a gente gerar emprego para essas mulheres daqui, que são mais velhas, que estão fora do mercado de trabalho, ou que são mães, precisam de mais flexibilidade nos horários e, às vezes, levar a criança para o trabalho. Então, com o MCPS, eu queria, primeiro, qualificar essas mulheres para trabalhar com costura, e não a costura do dia a dia, e sim costuras que fossem diferenciadas para o mercado de trabalho. O MCPS acolheu o meu projeto. Na época, a gente qualificou 20 mulheres”.



E deu certo: em alguns meses, elas se tornaram produtoras de kimono de karatê e bolsas. Pouco depois, Rai e Rafael se conheceram. “Rafael também trouxe as máquinas de costura dele, e a gente foi qualificando cada vez mais”, relata a costureira. Com a chegada da Zeux, o grupo percebeu que, se criasse o próprio instituto, desvinculado do projeto anterior, o pagamento das trabalhadoras, que ganhavam de acordo com o que produziam, poderia ser maior. “Para um kimono ficar pronto, ele passa por 32 processos. É trabalhoso. Lá [no MCPS], toda a renda tinha que ser rateada meio a meio entre o Instituto. Se a gente criasse nosso próprio espaço, poderia receber o valor completo pelo trabalho”.


Nesses cinco anos de fundação, o Instituto Flor Maior passou a produzir cerca de 150 kimonos por mês. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On


E foi assim, no andar de baixo da casa de uma das costureiras, e com as máquinas cedidas pela Zeux, que nasceu o Instituto Flor Maior. “Hoje, a gente faz todo tipo de kimono das artes marciais, mas, prefere ter poucos clientes, para entregar excelência. Rafael é uma pessoa que a gente gosta muito, porque ele cobra qualidade, e a gente quer isso mesmo, ter uma empresa de qualidade, de referência em produção de kimonos na Bahia. Isso gera renda para elas. Muitas delas vivem desse trabalho aqui. Antes, era mais difícil, era uma renda complementar. Agora, elas tiram o sustento disso aqui”.


Conheça mais dessa história, contada por Rai e Rafael:




Atualmente, o Instituto Flor Maior produz cerca de 150 kimonos por mês — 80% da produção, de acordo com Rai, é de pedidos da Zeux. Antes da criação da instituição, o valor mensal que as trabalhadoras conseguiam faturar era de, em média, R$ 150. Agora, esse rendimento aumentou em cerca de 466%, chegando a R$ 700.


Os kimonos são o carro-chefe do instituto, mas, não são as únicas peças produzidas por lá: para não desperdiçar nem 1 cm de material, as costureiras fazem bolsas com as sobras de tecido. “A gente quer produzir de forma sustentável, e aproveita tudo. Os pedaços pequenos de tecido, a gente usa para fazer faixas, para não desperdiçar nada do material”, detalha Rai. Partes de tecido também são doadas para mulheres da comunidade, que utilizam o pano, que é grosso, para confeccionar tapetes e colchas.


Para não desperdiçar nem 1 cm de material, em parceria com a Zeux, as costureiras fazem bolsas com as sobras de tecido. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On


TRANSFORMAR


Resolvida a situação dos kimonos, Rafael tinha que pelo menos tentar solucionar aquela outra inquietação: a do pouco apoio que projetos e atletas de Jiu-Jitsu recebem na cidade. Hoje, a Zeux apoia três iniciativas do esporte, localizadas em comunidades em Salvador: o “Rato de Tatame”, em Nova Brasília de Itapuã, onde Tainá Santos treina; o "Pérolas da Gamboa", na Gamboa de Baixo; e o "Projeto Boa Luta", na Boca do Rio.


Igor Arcanjo, fundador e professor do Pérolas da Gamboa, que, no momento, tem 60 alunos cadastrados e cerca de 100 frequentadores, explica como esse apoio funciona: “A Zeux já custeou inúmeras inscrições em campeonatos, e dá descontos na aquisição de kimonos”. Além do esporte, o projeto oferece auxílio psicológico às crianças e famílias uma vez por semana na sede da instituição.


No passado, o valor mensal que as trabalhadoras conseguiam faturar era de, em média, R$ 150. Agora, esse rendimento aumentou em cerca de 466%, chegando a R$ 700. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On


Por seis meses, a Zeux conseguiu patrocinar um dos atletas do Pérolas da Gamboa, Henrique Odilon, mais conhecido como Sassaminho, de 18 anos. Ele entrou no esporte em 2019 e, deste então, tem participado de campeonatos. No mesmo ano, pela primeira vez, alcançou o topo do pódio do campeonato baiano de Jiu-Jitsu pela X-Combat. Ele conta: “Passo o dia todo na academia, treinando, e os resultados e aprendizados estão vindo. Sigo na carreira tentando, até dar certo. São poucas as pessoas que apoiam o esporte”.


Para concorrer ao patrocínio da Zeux, Sassaminho precisava vencer o Circuito MVB, organizado pelo lutador Marcelo Vilas Boas. “Fui convocado para lutar em um evento, o GP, em que o ganhador ficaria com o patrocínio de seis meses da Zeux”, explica o atleta. Porém, no dia da competição, Sassaminho acordou doente. “Mesmo assim, eu fui, para você ver como um patrocínio é difícil. Eu não poderia perder essa oportunidade. Lutei mal, lutei doente”. Mas, ainda assim, ele venceu.


Com o patrocínio, Sassaminho ganhou kimonos, camisas e outros materiais de treino.


Sassaminho entrou no esporte em 2019 e, deste então, tem participado de campeonatos. | Foto: Arquivo Pessoal


Além dos patrocínios e do custeio de taxas de inscrições em campeonatos, a empresa de Rafael também doa cestas básicas para atletas que precisam. E, como ele relata, eles são muitos.



São pessoas que têm dificuldades em casa. Tem um aluno que a gente apoia, que precisa de cesta básica. Ele trabalha de manhã, desde os 12 anos, em um lava-jato; de tarde, ele vai para a escola e, a noite, para o Jiu-Jitsu. O dinheiro que ele faz no lava-jato, a mãe utiliza em prol dela mesma. Ou seja, é uma pessoa que passa por diversas situações adversas em casa, e se apresenta com muita irritabilidade, tristeza, e o Jiu-Jitsu deu um propósito. Esse menino é competidor, tem ganhado diversos campeonatos, e está no foco de conquistar mais. Isso acontece muito nos projetos que a gente visita”, afirma o empresário.



A história de Carlos Leonardo, de 16 anos, aluno do Rato de Tatame há dois, seguiu um pouco essa linha: antes de começar a praticar o esporte, o adolescente tinha fama de brigão na escola e no bairro. Por isso, ganhou o apelido de “Cavalo”. “Eu era muito muito desrespeitoso. Brigava na escola, na rua… praticamente em todos os lugares. Não gostava muito quando a pessoa me olhava feio, sabe? Hoje, sou mais calmo”, garante ele. Agora, "Cavalo" dá aula para os mais novos em turmas de campeonato. Lucas Ratto, que foi quem levou ele para o projeto, reflete sobre como essas mudanças acontecem: “Faz com que nossos alunos mudem hábitos. Transforma, crianças tímidas em crianças determinadas e felizes. O esporte transforma a saúde corporal e, principalmente, a mental”.


Pablo Decken, de 29 anos, um dos professores e alunos do Pérolas da Gamboa, confirma que, por lá, as narrativas são parecidas, como se todas fizessem parte de uma mesma antologia. Ele, que começou no projeto como aluno, já é um dos instrutores, e diz: o que o motivou a praticar um esporte foi ser “um cara muito pavio curto”. “Eu tenho o Jiu-Jitsu como válvula de escape. E não sou só eu. Consigo notar no dia a dia, até na conversa com a criança, com a mãe, com o pai, como isso transforma a vida delas. A gente tinha um aluno que, antes, não prestava atenção na aula, só queria bagunçar, só conversava, a gente falava com ele, ele recusava a gente… hoje, é aquele aluno que pede respeito aos colegas, ajuda a desmontar o tatame, a distribuir o lanche. As famílias ficam muito gratas”, ressalta.


Muitos dos alunos, como explica Pablo, sonham em competir, e competir gasta dinheiro — por isso, é essencial que, para se manterem vivos, projetos como esse tenham apoiadores. Atualmente, o Pérolas da Gamboa tem o suporte da Prefeitura de Salvador, por meio dos Editais de Chamamento Público e MROSC, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, de 2022, pelo Instituto Assaí e pela Zeux, que, assim como faz com os outros programas, contribui com kimonos, inscrições em campeonatos e atividades com os alunos.


A maioria dos alunos dos projetos sociais de Jiu-Jitsu em Salvador é composta por pretos e moradores da periferia. Em algumas semanas, quando pegarem os próximos kimonos da Zeux, vão descobrir que a nova coleção da marca celebra deuses da mitologia africana com ilustrações na parte interna da vestimenta. Anteriormente, os homenageados foram os deuses indígenas brasileiros.


A nova coleção da Zeux homenageia deuses africanos. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On


No final das contas, é como costurar: toda essa trama está conectada por uma única linha. A menina que sofre bullying na escola começa a fazer um esporte para ganhar mais confiança e aprender a se defender; para praticar, ela precisa de roupas adequadas; para que essas vestes sejam confeccionadas, a marca deve procurar mão de obra qualificada, e vai atrás de costureiras na cidade; com uma ocupação, as costureiras, mulheres excluídas do mercado de trabalho, passam a ter renda; para que os kimonos, que são caros para produzir e comercializar, consigam chegar na menina que sofre bullying na escola, que mora na periferia, a empresa precisa apoiar projetos sociais; o resto, a gente já sabe.


É como Raiovana Maria Silva, Rai, diz, se referindo à costura, mas de um jeito que se encaixa em todo esse ciclo: “Tudo está conectado, tá vendo? Sem cada partezinha, o processo morre”.


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