Saúde e Bem-Estar

Ritualizar para não comprar - como símbolos podem nos salvar

Vitória Barreto
Colunista On: Vitória BarretoVitória Barreto é psicóloga com onze anos de atuação, é mestra em educação (UFBA), especialista em Dependência Química (UNIFESP), especialista em Psicologia Analítica (IJBA) e coordenadora de grupos operativos (NPSB). Atua como psicoterapeuta junguiana, realiza atendimentos no ambulatório do Hospital Cardio Pulmonar no Programa de Cessação Tabágica, é pesquisadora do fenômeno da escolarização e é defensora da Infância Livre. Já atuou como psicóloga hospitalar (HUPES e HGRS) e psicóloga escolar. Defende uma psicologia crítica, pautada na garantia dos direitos humanos, nos direitos na Terra e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Temos hoje vivido a partir de um imperativo, um modus operandi que nos diz a todo instante: consuma, compre, se aproprie, seja dono. Somos assim condicionadas a associar felicidade, conquista e poder a uma única forma de existir, que é através da força do dinheiro, do domínio do capital. Os nossos colegas historiadores já cunharam um nome para esse atual modelo de sociedade em que estamos inseridas, é o neoliberalismo, uma espécie de aprofundamento e “refinamento” do capitalismo. Como todo modelo de sociedade, ele se faz através das leis da economia, da materialidade e também dos valores e discursos que estão entranhados nesse modelo.
O que nos interessa aqui, é o efeito desse modelo econômico e social em nossas subjetividades e na saúde coletiva. Um dos efeitos imediatos que vemos é a diminuição das ritualísticas, a escassez de ritual é uma expressão do neoliberalismo, na medida em que se aumenta exponencialmente a oferta e produtos e serviços disponíveis para compra. Ritualizar significa não consumir, significa se encontrar, desliteralizar, metaforizar, dialogar com símbolos e imagens que nos conectam com o sentido profundo das coisas, com aquilo que não foi e não será cooptado pela lógica da mercadoria.
Os povos originários do Brasil nos ensinam a importância de fazer um rito de passagem para se despedir da infância. Nesse momento, toda a comunidade se reúne em torno de um ser, de uma vida que está atravessando um momento delicado, potente, de transição e transformação. Todos se reúnem para, estando ao seu redor, desenvolver as práticas que simbolizam essa transmutação de uma fase da vida para a outra. São cantos, rezas, danças e tudo o que cada etnia e povo foi construindo ao longo de séculos, para materializar e simbolizar uma transição. Para fazer uma transição é preciso afeto. Desse modo, aquele ser humano, se sente visto, acolhido, protegido e com isso, inicia uma nova etapa do seu desenvolvimento, com a textura do afeto, da sensação de pertencimento à um grupo através do que é profundo, poroso e humano. Se faz uma transição através do símbolo.
Em paralelo, vejo que muitas vezes, a única forma, o único recurso que nós, da cidade, temos para simbolizar e ritualizar a passagem da infância para a adolescência, é através da compra, por exemplo, de um celular e sua entrega como uma oferta para aquele adolescente. Vemos aqui a precariedade e escassez de vida, de afeto e de símbolo. Além disso, esse gesto traz em si muitas outras afirmações, como, por exemplo, a mensagem de que a chegada da vida adulta se dá através do poder de compra. Não quero aqui, de maneira alguma, olhar para esse gesto de forma simplória e muito menos afirmar que isso não deve ser feito. O meu esforço é para olharmos com atenção e alerta para o processo de redução da nossa capacidade de simbolizar e ritualizar momentos importantes da vida humana e seus efeitos na formação da nossa personalidade.
Quando nossa subjetividade é profundamente cooptada pelos valores neoliberais que, de forma plástica, transformam nossas vidas, vínculos e existências, em números, estatísticas e valores monetários, a substância orgânica e viva da nossa alma perece, se empobrece. Longe de diabolizar o dinheiro, nós precisamos colocar ele no seu lugar. O dinheiro é um meio para e não a coisa em si. Gosto de dizer que dinheiro é a grande ilusão de criação de realidades. Quem tem muito dinheiro, os grandes patrões, sabem que dinheiro é especulação, é ideia, é jogo de poder, é discurso, é imaterial. Os grandes comedores do mundo sabem, os devoradores da Terra sabem muito bem o poder do dinheiro. E quanto mais poder monetário uma pessoa tem, maior a propensão dela se perder na materialidade da vida, se empobrecendo dos símbolos, da simplicidade e dos rituais. Ela passa a acreditar que tudo pode ser comprado, inclusive uma alma. Tentar traduzir a alma comprando produtos sempre será um fracasso, essa alquimia nunca será feita.
Pois bem, ritualizar é uma forma de questionar o poder do capital, é um modo de trazer para o cotidiano aquilo que interrompe as máquinas, os grilhões e os tratores. Ritualizar é afirmar a nossa capacidade de nos encontrar, é se sentir e ser poroso, não plastificado, não acimentado. Falar de saúde mental é necessariamente falar sobre os modos com o neoliberalismo forja a nossa subjetividade, nossos modos de pensar, se enxergar e enxergar o outro. Fugir da completa cooptação pela ilusão do fetichismo da mercadoria é um caminho de promoção de saúde mental e atenuação dos sintomas de vazio existencial, depressão e tudo que escoa a nossa potência de alma!
Ritualizar é parar, é sair da roda que gira sem cessar, é trazer o símbolo para mediar nossas relações, é silenciar o poder tacanho do dinheiro, é desliteralizar a própria ideia de poder. Quanto mais recursos imagéticos, simbólicos e metafóricos nós temos, mais recursos nós temos para lidar com a realidade da dor, da doença e da morte. Desse modo, nós temos léxico para nos relacionarmos com o mistério, com aquilo que nos escapole e que não há poder de compra que responda.
Ritualizar para não comprar significa inverter a lógica, significa gingar com a máquina que tenta nos cooptar do nosso poder de sonhar e realmente desejar os desejos que pulsam vida e não podem ser consumidos, mas sim, vividos, experimentados, compartilhados. Ter autonomia e liberdade para recusar qualquer força que tenta nos tirar a sensação de inteireza em ser e pertencer, silenciando aquela voz que diz que precisamos ter e nos apropriar. Saúde mental é também uma manifestação de desidentificação com os mecanismos perversos que tentam nos enceguerar da nossa real humanidade, aquela que não se submete à ideia de que somos compráveis e vendíveis.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.

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Vitória Barreto

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