De Enheduanna à Maria Firmina: a peleja pela autoria das mulheres e suas nuances
Tentaram nos silenciar de todas as formas, tentaram nos emudecer de todas as maneiras. Tentaram abafar nossos gritos e moldar nossos sussurros. Tentaram nos tirar dos palcos e dos fronts. Tentaram esconder nossa autoria, apagar nossos parágrafos e rasurar nossas estrofes. Se esforçaram pra arrancar de nossas mãos o lápis, o papel. Nos tomaram os cadernos, as folhas pautadas e a máquina de datilografar. Quando não tinham êxito, no fim da história, falaram que não era pra a gente assinar. Mulher não assina nada, mulher faz para o outro assinar.
Esforçaram-se, com músculos e discursos, a nos apagar. Quem é você, mulher, pra achar que tem voz? Quem é você pra escrever? Você acha que vão te ler? Pra publicar, antes, você deve passar por aqui, apagar isso aqui, editar essa parte. Não, essa sua tagarelice é vergonhosa, não fale tanto, escreva menos (ou não escreva), seja comedida.
Quiseram a todo custo nos envergonhar da nossa voz, do nosso timbre, do nosso jeito de andar. Quiseram nos moldar a um modo menos letrado pra com isso, se sentirem menos ameaçados. Nossas palavras afrontam, nossas rimas subvertem, nossos capítulos perturbam. Nós denunciamos nas entrelinhas e isso desconcerta. Nós botamos abaixo uma instituição através da defesa do afeto e do amor... e isso desestabiliza. Nise da Silveira (1905-1999), psiquiatra alagoana, fez revolução no antiquado e violento manicômio afirmando que “o que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito”.
Nós, mulheres, precisamos forçadamente usar codinomes e nos vestir de modo a nos confundir com um deles. Para passar, era preciso não ser vista. Para poder ser e fazer, era preciso ser homem, ou pelo menos parecer com eles. Não era possível ser mulher e ter desejo, ter gana, ter autonomia e ser autora. Foram muitas as que tiveram que “escolher” a estratégia de se esconder atrás de um nome fictício e de uma roupa que a acobertasse da sua real identidade: feminina. Maria Quitéria (1792-1853), primeira mulher a integrar as forças armadas, vestia-se de homem e usava a alcunha “soldado Medeiros”, para, só assim, conseguir participar das lutas independistas da Bahia. Seu corpo de mulher não cabia ali.
Seja no palco, na universidade, nos laboratórios, nos fronts, nas instituições ou nas ruas, nós só conseguimos ocupar esses territórios porque nós o tomamos pra nós, arrancamos através de muita luta e teimosia cada um dos espaços e papeis que insistimos em ocupar, porque sabíamos que queríamos, precisávamos e sabíamos ocupar. E se não soubéssemos, aprendíamos no caminho. Nada nos foi ofertado em uma bandeja, tudo nos foi conquistado através de cada uma dessas mulheres que, sozinhas ou em grupo, tomaram para si os seus direitos. Nós nos assenhoramos dos nossos desejos e pulsões, acomodamos em nossos ventres e colo o nosso projeto de vida, e isso incomoda os que tentam sustentar o falido modelo patriarcal covarde que quer subjugar tudo que não é ele mesmo.
Sim, eles tentaram e muitas vezes conseguiram. Milhares, milhões de vezes eles tiveram sucesso. Foram muitas de nós que viram seus filhos mortos em seus pés por balas (nada) perdidas, mães pretas violentamente silenciadas por um fuzil (mas seus gritos ecoam). Foram muitas que carregaram na cabeça bacias com roupas brancas pra quarar nas pedras do rio Almada e do Rio de Contas e que receberam como pagamento o estupro. Foram inúmeras as que foram raptadas da sua maloca pra ser amarrada em um pé de cama de um coronel do cacau nas terras dos Ilhéus. Mulheres que engoliram o choro e cuspiram esse mesmo choro na cara de quem as arrancaram a dignidade, afinal, sempre nos escapa um tantinho de teimosia e ousadia. Afinal, nunca se doma completamente uma onça.
Tentaram domesticar nossos corpos e tentaram amansar nossa força que nos impulsiona ao estado de liberdade. Foi em 1932, apenas 91 anos atrás, que nos foi “concedido”, pela primeira vez no Brasil, o direito ao voto através do Decreto 21.076. Já o comércio da pílula anticoncepcional no país só surgiu em 1962. Eu falo no passado mas, até hoje, você sabe, desigualdade salarial de gênero existe. Nós ganhamos 21% a menos que os homens nesse país chamado Brasil.
Reivindicar e labutar pela nossa autoria é pauta de luta antiga, é peleja desde os tempos da Mesopotâmia. Enheduanna é considerada pelos historiadores a primeira mulher autora que se tem registro. Ela viveu no século 23 antes da nossa era, na Mesopotâmia, sendo eleita alta sacerdotisa do deus lunar Nana. Ela era filha de um rei, portanto, Enheduanna era uma princesa. O seu pai, o rei Sargão da Acádia, O Grande, é conhecido pelas conquistas das cidades-estados sumérias (séculos XXIV-XXIII a.C). Enheduanna, diferente da tradição que existia antes dela, passou a assinar os seus escritos. Antes dela, nenhuma mulher escriba assinava suas produções. Enheduanna era uma princesa, filha de um rei poderoso, o que lhe abriu o caminho e lhe deu o aval de ser a primeira mulher da história a ser reconhecida como autora.
Peço licença pra fazer um salto temporal e chegarmos em 1959, no Brasil, ano em que a grande Maria Firmino (1822-1917) publica seu primeiro livro, o romance "Úrsula". Mas, um detalhe: ela precisou omitir o seu nome na publicação e as primeiras edições desse seu trabalho intelectual e literário saíram com o nome “uma maranhense” como autora. "Ah..." - você se pergunta - "[...] milênios se passaram e uma mulher em 1959 no Brasil, américa do sul, ainda precisou lutar pela sua autoria?" Sim. Mas essa era uma mulher preta vinda da pobreza.
Maria Firmina foi uma intelectual brasileira, nascida em São Luís no Maranhão, que teve acesso aos estudos por conta de uma tia que tinha recursos para ofertar o mínimo necessário pra ela conseguir as ferramentas que a possibilitassem manifestar sua genialidade na escrita. Maria Firmina foi a primeira romancista negra do Brasil, tendo publicado oito livros, entre eles romances abolicionistas, contos, poesias e composições musicais. Maria Firmina morreu em 1917, em Guimarães, no Maranhão, com 95 anos, na casa de uma ex-escravizada chamada Mariazinha. Maria Firmina morreu cega e em situação de pobreza. E seus direitos autorais? Bom, eu diria que eles encheram o bucho e os bolsos arrogantes de muitos homens brancos que, como abutres, circulavam ao seu redor ao longo daqueles anos de alta produção literária dessa grande e honrada mulher brasileira.
O que existe entre Enheduanna e Maria Firmina? Bom, está escrito nas linhas e nas entrelinhas.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.